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A poética das forças, o Artaud de
Kuniichi Uno – e o
corpo por vir
em arte educação
Cláudia Madruga Cunha
Icaro Iago Santos de Almeida
Para citar esta Resenha:
CUNHA, Cláudia Madruga; ALMEIDA, Icaro Iago Santos
de. A poética das forças, o Artaud de Kuniichi Uno – e
o
corpo por vir
em arte educação.
Urdimento
Revista
de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 56,
dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0801
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A poética das forças, o Artaud de Kuniichi Uno e o
corpo por vir
em arte educação
Cláudia Madruga Cunha | Icaro Iago Santos de Almeida
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-15 dez. 2025
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Resenha da obra
UNO, Kuniichi.
Artaud - pensamento e corpo
. Tradução de Christine Greiner e
Ernesto Filho. São Paulo: N-1 Edições, 2022. 280 p.
A poética das forças, o Artaud de Kuniichi Uno e o
corpo por vir
em arte educação
Cláudia Madruga Cunha | Icaro Iago Santos de Almeida
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-15 dez. 2025
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A poética das forças, o Artaud de Kuniichi Uno e o
corpo por vir
em arte educação1
Cláudia Madruga Cunha2
Icaro Iago Santos de Almeida3
Resumo
Antonin Artaud dispensa apresentações quando se trata dos estudos das artes do corpo e
da arte contemporânea de modo geral. Em
Artaud pensamento e corpo
, Kuniichi Uno
observa a poética artaudiana pelo viés da noção de força, que entende estar presente nos
processos artísticos desenvolvidos pelo poeta, roteirista e dramaturgo. Percorre nos diversos
registros que compõem essa obra, as variações dessa noção, dividindo esse conjunto em
quatro fases. O resultado nos convida a repensar, na arte educação e nas artes do corpo, a
preponderância do corpo na relação deste com o pensamento e a linguagem.
Palavras-chave
: Noção de força. Corpo sem órgãos. Investigação do corpo. Educação e arte.
The poetics of forces, Kuniichi Uno's Artaud and the
body to come
in art education
Abstract
Antonin Artaud needs no introduction when it comes to studies of body arts and
contemporary art in general. In
Artaud Thought and Body
, Kuniichi Uno observes Artaud's
poetics through the lens of the notion of force, which he understands to be present in the
artistic processes developed by the poet, screenwriter, and playwright. He explores the
variations of this notion in the various registers that make up this work, dividing this set into
four phases. The result invites us to rethink, in art education and body arts, the
preponderance of the body in its relationship with thought and language.
Keywords
: The concept of strength. The body without organs. Investigation of the body.
Education and art.
La poética de las fuerzas, el Artaud de Kuniichi Uno y el
cuerpo por venir
en la arte educación
Resumen
Antonin Artaud no necesita presentación en el ámbito de los estudios sobre arte corporal y
arte contemporáneo en general. En
Artaud Pensamiento y Cuerpo
, Kuniichi Uno analiza la
poética de Artaud a través del prisma de la noción de fuerza, presente en los procesos
artísticos desarrollados por el poeta, guionista y dramaturgo. Explora las variaciones de esta
noción en los distintos registros que componen su obra, dividiéndola en cuatro fases. El
resultado nos invita a repensar, en la educación artística y el arte corporal, la preponderancia
del cuerpo en su relación con el pensamiento y el lenguaje.
Palabras clave
: Noción de fuerza. El cuerpo sin órganos. La investigación del cuerpo.
Educación y arte.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Eduarda Ritzel. Doutoranda e Mestrado em Educação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2 Pós-doutorado em Educação pela UNIVATES. Pós-doutorado na Universidade de Porto (UP), Portugal. Doutorado em
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduação Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas
(UFPEL). Profa. Titular do Depto. de Artes e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e Mestrado Profissional em
Educação: Teoria e Prática de Ensino Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenadora do Grupo Rizoma: Laboratório
de Pesquisa em Filosofia da Diferença e arte educação. cmadrugacunha@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3002442586103574 https://orcid.org/0000-0002-2867-5566
3 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado -
Licenciatura em Artes pela UFPR. Membro do grupo de pesquisa Rizoma: Laboratório de Pesquisa em Filosofia da
Diferença e arte educação (UFPR/CNPq). icaroa85@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8339212119368437 https://orcid.org/0009-0005-2785-6241
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em arte
educação4
Desde a década de 1960 a obra de Antonin Artaud vem ganhando recepção
no Brasil. São muitas as contribuições disponíveis na leitura da obra deste autor,
que revisou o lugar do corpo tomando-o como o lugar da transformação do
pensamento e da expressão, especialmente por via da arte e dos campos
correlatos que dialogam com a educação. O livro
Artaud - pensamento e corpo
5,
resulta da tese de Kuniichi Uno defendida em 1980, na Universidade Paris VIII,
orientada por Gilles Deleuze.
Kuniichi Uno,6 pode-se dizer, é pesquisador, filósofo e tradutor de obras que
envolvem o tema do corpo, da dança, da arte e da literatura. Esteve no Brasil pela
primeira vez em 2006. Desde então, tem contribuído para borrar os limites entre
Oriente-Ocidente, traçando linhas de pensamento que produzem trocas entre
Japão e França, que se espraiam e se ramificam para outros continentes. Fica bem
demarcada na leitura do texto a proximidade deste autor com os autores do
Anti-
Édipo
(Deleuze; Guattari, 1995). Greiner na Apresentação, relata que o Kuniichi de
1980, que então concluía a tese de doutorado, não é o mesmo que retoma o
texto para compor esse livro, 40 anos depois. A obra em questão resulta de um
outro momento de vida do autor japonês. Kuniichi Uno teve seu entendimento
sobre a relação entre pensamento e corpo e a arte como expressão desse elo
alterado –, após a defesa da tese, ainda na França, quando conhece o coreógrafo
Min Tanaka e no retorno ao Japão, quando é apresentado a Tatsumi Hijikata,
criador do butô.
O que Kuniichi nos apresenta com seu
Artaud – pensamento e corpo
, é uma
análise do improvável e do impreciso. Trata-se de algo que percebeu na
perspectiva artaudiana que é prévio ao dualismo corpo e mente e ao mesmo
tempo ultrapassa essa binariedade – e veio a ser chamado de corpo sem órgãos.
No prefácio, o autor comenta que se deve reconhecer Artaud como um
5 Conforme relata Christine Greiner, tradutora das obras de Kuniichi Uno no Brasil, a tese foi apresentada com
o título:
Artaud et l´espace des forces
, mas sofreu alteração quando o texto foi atualizado pelo autor.
6 Kuniichi possui outros livros traduzidos por Greiner, que tiveram repercussão no Brasil:
A gênese de um
corpo desconhecido
(2016) e
Hijikata tatsumi pensar um corpo esgotado
(2018).
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experimentador de forças, pois seu estudo percorre processos poéticos que
demonstram essa hipótese. O que Artaud tomou por força, perpassa o
pensamento, a forma e a linguagem, é uma espécie de linha que se bifurca em
uma obra que se parece a unidade flutuante. Como tudo em Artaud foi
intensamente vivido, fatos biográficos compõem as demarcações da análise. Para
nos apresentar este Artaud das forças, Kuniichi Uno organiza seu estudo em quatro
fases, são elas: i) pensamento sem imagem; ii) a pesquisa da linguagem; iii)
Heliogábalo, a história das forças; e, iv) a pesquisa do corpo. A seguir, as fases
serão comentadas separadamente, destacando o que nos parece fundamental
para o entendimento de cada uma delas.
Pensamento sem imagem
A fase (i) refere-se ao Artaud jovem da década de 1920, que sofre de uma
doença nervosa, renuncia ao seu bacharelado e é dispensado do serviço militar.
Esse período é marcado pela escrita de poesias e pela correspondência com
Jacques Rivière7 e tem como característica o anúncio de um pensamento sem
imagens ou do impensável ligado ao problema do corpo, pelo qual perpassam as
questões que envolvem o ser. Na leitura de Kuniichi, o pensamento é entendido
como o que é produzido na densidade que se instala entre o corpo e outros
materiais: “As pedras, os sons e a terra são tipos de força material” (Uno, 2022).
Nesse sentido, a pedra é uma força que possui flexibilidade e respira. Os poemas
da juventude artaudiana8 perseguem imagens pré-históricas, neles é possível
encontrar uma mineralogia e uma geologia dos materiais, terra, carvão, gelo, fogo,
são elementos que interagem com uma dinâmica dos nervos.
O corpo nestas escritas é exposto como um ente estranho, em
metamorfoses e em transformação pela captura de sons da pedra em terra. No
7 A correspondência de Antonin Artaud com Jacques Rivière, importante escritor, crítico e editor francês, está
publicada em português. Artaud, Antonin.
Correspondência com Jacques Rivière
. Tradução de Olivier Dravet
Xavier. Belo Horizonte: Moinhos, 2020.
8 Willer, que traduziu e escreveu as notas da obra
Os escritos de Antonin Artaud
, em nota biográfica comenta
que Artaud produziu uma obra imensa, com poemas, cartas, textos de palestras, ensaios, artigos, manifestos,
narrativas, traduções e adaptações, peças de teatro, entrevistas, depoimentos, roteiros, sinopses de cinema
etc. Artaud se considerava em primeiro lugar um poeta, embora os escritos da sua juventude possuíssem
esse perfil.
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jogo entre densidade e intensidade, uma pedra mental corresponde a uma geologia
do pensamento, que busca por forças excluídas ou falsificadas, desviadas, quem
sabe, pela modernidade. A crise mental acompanhada da impossibilidade de
pensar e dos estados agonizantes que o paralisavam perpassam seus escritos.
Estes estados produzem uma tonalidade na sua visão, vinda de uma paralisia que
o impede de raciocinar, de fazer uso das operações que se atribui comumente ao
pensamento, é nesse sentido que a dor o conduz a uma reorientação do seu
entendimento.
Pensar passa a envolver estados de dor e a força é a própria dor ou o que
vem dela. No expressar repetidamente “eu não consigo pensar”, faz manifesto de
um pensamento que se esvazia, se torna sem forma, perde as operações racionais.
Contudo, esse vazio assume uma força e se torna produção de uma vitalidade
desconhecida. Esse pensar por meio da dor parece espiar uma pureza corporal,
um nada, que é pura intensidade produtiva. Assim, a sensação da dor implica o
corpo e o pensar e, nessa implicação, ela é intensificada, gesto que perturba o
pensamento e impõe o esvaziamento de imagens e de ideias.
Na poética artaudiana o vazio é produtivo e torna o corpo um autômato, uma
pedra que balança. Porém, a imagem corporal desse autômato é capaz de
transformar, deformar a falsa espontaneidade do pensamento. Um pensar-corpo
se revela autômato ou pura corporalidade, capaz de desorganizar a falsa
organicidade espontânea e produzir uma outra espontaneidade inorgânica que é
desordenada. O corpo desorganizado e esvaziado, despojado do seu corpo
orgânico, passa a se encontrar na pele. Os escritos da década de 1920
prenunciavam o que Artaud mais tarde chamaria de “corpo sem órgãos”, pois
entendia que o corpo que recusa os modos de pensamento que lhe são impostos
é despojado e autômato. Nesse sentido, Kuniichi percebe que junto a este corpo
esvaziado e autômato uma relação com a morte, o que Artaud entende como
antecipação e não como posterioridade ou futuro: a morte vem porque nossa
vitalidade é maltratada, o que a torna algo que se relaciona com o corpo
permanentemente e de algum modo se faz produtiva.
Opondo-se à tradição ocidental, o pensamento em Artaud é informal, sem
forma, sem imagem, sem representação, se constitui por forças em devir. Se o
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pensamento é força e devir, as formas, as imagens e as representações
correspondem à identidade e são os organismos do pensamento. Logo, para lidar
com a própria desorganização do pensamento é exigido que ele seja um absoluto
informal, algo inominável à mente. Essa junção do pensamento imobilizado como
vazio e do corpo paralisado como autômato conduz, entretanto, a estados
transformadores. O que pode ser conferido no
Teatro e seu duplo
(Artaud, 1999),
é que a força do informal ou o informal da força coexistem, assim que a noção de
pensamento puro e pensamento caótico das forças se interrelacionam (Uno,
2022).
A poética artaudiana das forças aposta na linguagem como potência
transformadora. Por meio da linguagem, alcançam-se os intervalos das
intensidades, ou intervalos e intensidades, com os quais as palavras podem
interferir nas forças vitais, impedindo os signos de vibrarem. Os signos se
expressam no movimento do corpo: o signo nasce e lê por meio do corpo e uma
linguagem articulada é aquela que se faz em um movimento corporal intensivo.
Por isso, é preciso comer as palavras. Notadamente, um ataque à linguagem
institucionalizada, que convoca a largar esse sistema articulado em busca de um
gaguejar, capaz de engolir e regurgitar palavras e linhas traçadas. em Artaud,
um necessário refazer das palavras na profundeza do corpo, um criar palavras
desorganizadas, sem órgãos.
Estas ponderações podem ser reunidas à noção de que Artaud reinventa o
teatro, a linguagem e a geometria teatral: por propor uma linguagem corporal e
incorporal, capaz de despedaçar as palavras e os signos conhecidos; por sugerir
que se ocupe um espaço não geométrico, desorganizado, entregue ao movimento
puro e à pura vibração vital. Sugere Artaud, que se perceba o espaço como
membrana ou invés da linha, um plano vazado em gradação de intensidade,
contíguo a diferentes forças e graus de vibração. Junto a isso, uma máquina de
som que nunca para de funcionar. A musicalidade favorece o acesso e a
distribuição das forças. Mente e corpo são cúmplices um do outro, porém quando
o pensamento é organizado o corpo automaticamente é excluído, desviado das
intensidades que o atravessam. Em um culto ao corpo, Artaud inverte a tradição
ocidental racionalista e carteziana, ao fazer do corpo o lugar do pensamento e, por
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meio dessa atenção ao corpo, tenta borrar os limites entre o corporal e o
incorporal.
A pesquisa da linguagem
A fase (ii) intitulada “a pesquisa da linguagem”, contígua à anterior, trata do
tempo de fundação do Teatro Alfred Jarry, no ano 1926, período em que Artaud
escreve roteiros e ensaios para o cinema, até decidir deter-se no
Teatro da
Crueldade
. Uno (2022) encontra em Artaud uma pesquisa voltada à nova linguagem
e à busca por novos signos, em um pensamento que se reinventa por meio de
crises. A crueldade surge como tema junto à peste, ao teatro balinês, à alquimia
e à tragédia e é reinventada ou atravessada por novas forças, ritualizadas em
performances que se distanciam do formato ocidental. Essa busca por reconstituir
formas estéticas encontra no cinema e no meio tecnológico novas inspirações.
Esse tempo vivido, em parte na década de 1930, será marcado por experimentar
novas linguagens e signos para e entre a relação corpo e pensamento.
Conforme Kuniichi, na obra de Artaud, o cinema parecia o encontro com uma
linguagem buscada. Além da urgência em transformar o teatro, o cinema foi
percebido como um meio de expressão do impossível, experimentação capaz de
exprimir seu estado mental. Uno (2022, p. 80) comenta que Artaud “cria seu próprio
universo do cinema”, o que será reconhecido na obra de Gilles Deleuze,
Imagem e
tempo
(2005). O cinema favorece Artaud a operar com imagens que através dos
meios técnicos, fogem do real. É percebido como uma linguagem experimental
por meio da qual sonhos e escritas automáticas podem se expressar de um modo
mais eficaz. No cinema um efeito fisiológico direto, que se desprende da
máquina de luz. Por meio das imagens, expressam-se coisas que perpassam o
pensamento, o interior da consciência, não tanto pela sequência das cenas, mas
por via de uma relação direta com a matéria em que se chega ao imponderável e
ao não representado.
O inconsciente e o sonho lidam com as forças do imponderável, permeadas
de intensidades brutas. O cinema se mostra um meio possível para movimentar
estas forças sombrias, é uma forma de traduzir situações psicológicas, afinal a
reunião do jogo de luz, com a música e o movimento, favorecia o encadeamento
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de ações e as montagens, que buscavam escapar da linguagem articulada e da
imagem discursiva. O jogo da luz, o olhar lançado ao fluxo sonoro das imagens, a
música visual, intensa e excepcional se mostrava um conjunto apropriado para
desafiar a linguagem articulada e expressar os episódios de angústia e de dor.
As motivações de Artaud (1986,
apud
Uno, 2022, p. 85) para criar são:
“erotismo, crueldade, gosto de sangue, violência, obsessão pelo horrível, dissolução
dos valores morais, hipocrisia social, mentiras, falsos testemunhos, sadismo,
perversidade etc”. Na sua busca pela noção de força, Uno (2022) observa um
deslocamento da noção de corpo em Artaud que o corpo plástico do roteiro
de
A concha e o clérigo
, que também se mostra em
O teatro e a peste
, nestes
textos teatrais e no
Teatro e seu duplo
, é alterado. A violência e velocidade
caracterizam o cinema de Artaud, que propõe um o corpo entre objetos e luzes,
aberto à continuidade fluídica que o alterna entre metamorfoses e petrificações.
A noção de metamorfose é ampliada e se apresenta nos roteiros dessa época
como constantes deslocamentos, coisas se apresentam com seus sentidos
alterados. Movimento, velocidade, vertigem, variação, fragmento, estilhaço, tudo
que tem a ver com a experiência da dor se traduz em cenas. A máquina do cinema
exterioriza os pensamentos informais, explora a flutuação e a multiplicação do
sujeito. O corpo é estado de comunicação entre outros estados de comunicação,
o corpo é signo. O que Artaud experimenta nas suas criações cinematográficas é
a busca por uma nova linguagem; no entanto, quando o cinema passa a ser falado,
esse se afasta e se volta ao teatro.
O teatro que Artaud apresenta é aquele capaz de exteriorizar as crises
internas, as experiencias do vazio, o estado autômato em torno do corpo e das
palavras, é lugar de expressão das forças puras e informais. Esse teatro singular
pouco se parece com o que se reconhece por teatro. Uno (2022) atenção ao
fato de que Artaud quer criar um outro teatro, redimensionado por uma relação
entre pensamento, corpo e linguagem. Um teatro revolucionado implica revisar
sua espacialidade, torná-la intensa, profunda, capaz de escavar nesse plano os
vazios de um corpo paralisado por forças diversas. Refundir o teatro, salvar o
teatro, reinventá-lo é a tarefa que Artaud se impõe: um teatro que trate de vida
onde ela não é mais possível.
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Heliogábalo
, a história das forças
A terceira fase (iii) chamada
Heliogábalo
, refere-se à obra de Artaud publicada
em 1934. O conteúdo dessa obra traz o interesse por livros sobre as civilizações
orientais, segundo o estudo de Kuniichi. Outra influência nesse texto cênico é a
viagem ao México e a vivência com o grupo indígena Tarahumara. Desse contexto,
sai a ideia de uma outra civilização possível, que reúne o momento antropológico
na busca por um homem das forças, envolvido com um caos original – caos pelo
qual perpassam forças materiais, rituais, sexuais, religiosas, poéticas e políticas.
A teoria das forças é proposta por Nietzsche, que não apenas desenvolveu
uma crítica à consciência moderna, mas tratou a consciência como reativa e
ressentida, disponível por dois tipos de forças: as ativas e originais e as reativas.
Essas últimas são as que dão origem ao ressentimento, pois vêm de sujeitos que
não criam nada, apenas reagem ao meio. O anárquico em
Heliogábalo
busca ser
uma experimentação extrema para eliminar as forças reativas que podem compor
o mental, o social e as instituições. Para Uno (2022), Artaud pretendeu uma
experimentação impossível, tal que se colocasse como uma força original ativa.
Essa obra teatral exemplifica o Teatro da Crueldade, quando quer reencontrar a
vibração máxima da comunicação com o mundo caótico.
Nem
Heliogábalo
é um romance, nem os personagens ali são criados para
representar a sociedade moderna e seus conflitos psicológicos: são sim tipos que
encarnam e apresentam as modalidades das forças puras. O uso do espaço denso,
a voz, o fluxo, a história que começa pelo fim, diz de uma redação circular e em
espiral, que quer representar a relação entre vitalidade e reconstrução da vida.
Nesse curioso sistema narrativo um "eu" intervém bruscamente, em um discurso
que se faz em primeira pessoa, mas não se refere à voz de Artaud, mas a um
emissário das forças e dos espaços que elas ocupam, como ondas e dobras. Não
é uma obra psicológica, representativa, não visa verossimilhança, pessoalidade,
mas se expressa como uma estética e uma narrativa contra o romance moderno.
Com ponto de partida, desenvolvimento e desfecho, a narrativa está
construída em três partes: “O berço do esperma”; “A guerra dos princípios” e “A
anarquia”. A primeira parte traz uma pré-história ou uma Síria antiga, descrita
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como tendo ritos e uma curiosa história das pedras, do matriarcado, templos e
culto ao sol; a segunda é essencialmente teórica, cita livros esotéricos, elabora
certo tom filosófico para dizer do modo como a vida de Heliogábalo, o
personagem,
se manifesta e se realiza em demonstrações superiores e estas se
referem a tipos ou figuras das forças; a terceira parte narra a epopeia de um
anarquista coroado através do manifesto das forças que transbordam e flutuam
em uma vida sem organismo. Por meio da guerra, Heliogábalo chega ao trono
quando coloca no seio do império a anarquia descrita com uma simplicidade
condensada, com ar de arcaísmo. O interessante de observar nessa obra são os
elementos colocados no jogo cênico através das personagens, pois por se
apresenta o papel do princípio feminino, a sexualidade em oposição às categorias
binárias, uma sexualidade andrógina, um esboço do Devir-Mulher. Esse último
elemento é percebido por Uno (2022) como algo que marca toda a narrativa.
A obra
Heliogábalo
mostra, de um lado, o mundo latino bem-organizado e
reativo à desordem e, de outro, o caos e as forças puras da vida, que condizem
com uma vida inorgânica potente e cruel representada pela pedra. A pedra é mais
próxima da vida do que a arquitetura gótica, porém o que expressa não condiz
com a matéria, pois nasce da negação, da desmaterialização da matéria. Ou seja,
a pedra figura como vida sem organismo e aquilo que é uma coisa inorgânica,
inanimada, petrificada, é visto como potência do corpo, algo que se abre e se
exprime no espaço das forças. Templos e espaços sagrados favorecem a
comunicação das forças e constituem a cena principal para a vida de Heliogábalo
e para o Teatro da Crueldade.
Heliogábalo
apresenta um personagem (com o mesmo nome do título da
peça), descrito por tipos de forças, que é despersonalizado como corpo para
manifestar uma composição de figuras que são forças. Por fim, não é o feminino
no homem, andrógino, sexo desterritorializado, mas é feito de metal como corpo
sem órgãos, é um “fluxo criador" ilimitado.
A pesquisa do corpo
Na fase (iv) do estudo das forças em Artaud, Uno (2022) observa as produções
que vieram após a viagem ao México e as outras sequentes. Tão logo Artaud
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retorna à França, viaja para a Irlanda para devolver uma tal bengala a St. Patrick.
Esse episódio envolve o dramaturgo e poeta em acontecimentos que sequestram
o curso da sua vida. Artaud é preso pela polícia irlandesa e no retorno à França
condenado à prisão hospitalar: primeiro é internado em Paris, depois é transferido
para o hospital de Rodez, onde permanecerá entre os anos de 1937 a 1946. Rodez
foi um local da França que não teve ocupação alemã e por ali Artaud escreve e
desenha sem tréguas. Desse período se organizam as cartas de Rodez, escritos
em cadernos e obras, inclassificáveis do ponto de vista literário, segundo Kuniichi.
Contudo, esse momento permite que se observe que uma outra dimensão se abriu
para o tema do pensamento e do corpo. No retorno final à Paris (1946-1948),
escreve
Para acabar com o juízo de Deus
(
Pour un finir avec le jugement de dieu
)
e
Van Gogh, o suicidado da sociedade
(
Van Gogh le suicide de la société
), obras
consensadas de teor inesquecível (Uno, 2022). Nesse período, se apresenta de um
modo mais intenso à busca de um corpo ainda não existente, por fazer, um “corpo
sem órgãos”.
Os escritos de Artaud que resultam deste período de internação remetem à
noção de que as palavras são o manifesto de um corpo puro do pensamento. O
ser desse corpo é figura estranha e impensável que surge da obscuridade e
manifesta sua condição de devir. Reconstruir o pensamento leva em conta uma
outra concepção de linguagem e de espaço teatral, pensar é passar nervos” (Uno,
2022, p. 185). Logo, pensamento e corpo são compreendidos como separados,
devido as determinações organizacionais impostas. Tratar do corpo visa romper
com a linguagem teatral e psicológica, ambas não passam de um conjunto de
simulacros que fecham o corpo e o isolam das forças que poderia acessar. Esse
corpo organizado diz respeito a um modo de ser, que é impedido de acessar as
forças e potências naturais que atravessam humano e natureza; é constituído
pelas forças que vêm das noções de humanidade, sociedade e política, enquanto
as outras forças têm a ver com a relação potencial do corpo com a natureza, com
o cosmos e com a
physis
. Sendo assim, o corpo biológico tem suas forças ativas
tornadas reativas, uma vez que ele fica limitado às engrenagens que concernem à
moral moderna e cristã.
A proposta do Teatro da Crueldade é de uma experiência capaz de refazer o
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corpo buscado, corpo que opera sob o signo das forças que a sociedade ocidental
excluiu. As fases de Artaud antes analisadas, mostram que o poeta e dramaturgo
precisou passar por períodos de maturação de suas questões, até se dar conta de
que para alcançar esse corpo-pensamento é preciso uma técnica ou processo.
Heliogábalo
reúne teatro balinês, pesquisa filosófica, esoterismo e religião do
oriente em uma narrativa experimental, que busca liberar o corpo das
determinações, simulações, imposições morais e normativas que vêm do Estado
e em nome de uma civilização ocidental.
Artaud quer reforjar o corpo, o que significa liberá-lo dos diversos organismos
e organizações que nele interferem e o reduzem, tais como: a racionalidade, a
espiritualidade, a ciência, a sociedade, a noção de individualidade e até mesmo a
arte e a literatura. Desorganizar o corpo significa reencontrar as fontes da vida,
significa abandonar um corpo alienado, individual, isolado e submisso e expô-lo a
um outro lado das coisas. É preciso desfazer deste corpo a matéria inerte e
indeterminada e se jogar na indeterminação e estrangeiridade de um devir
indígena. O uso de peiote conduz ao acesso a novas intensidades, que é também
o espaço da crueldade de uma vibração que quer recuperar um corpo ilimitado.
Assim que ritos, peiote e dança farão parte do Teatro da Crueldade.
Durante o período da internação em Rodez (1937-1946), Artaud pesquisa um
outro corpo. Corpo que acessa as forças que alimentam sua vitalidade, porém a
vivência de um corpo adoecido faz com que surja na sua poética um ódio ao corpo.
Crítico do cristianismo, Artaud declara um retorno a Cristo, nesse mesmo contexto
o corpo que faz objeção é o corpo com órgãos, corpo pelo qual passa a
sexualidade, o excremento e a alimentação. Essa fase é marcada pela busca de
um corpo glorioso, contra o idealismo excessivo do corpo orgânico. São tempos
de retomada do culto à carne e do entendimento de que se pureza na vida,
essa vem do corpo.
A crueldade diz de uma anti-identidade, de um existir múltiplo e aberto às
florestas, às chamas. Antes do retorno definitivo a Paris, depois da longa internação
em Rodez, Artaud repensa sua posição em relação ao Deus e a Cristo, pois passa
a conceber o corpo como substância irredutível. É quando exclui o dualismo corpo
e mente e passa a conjecturar que não é mais Deus que é infinito, mas o corpo é
A poética das forças, o Artaud de Kuniichi Uno e o
corpo por vir
em arte educação
Cláudia Madruga Cunha | Icaro Iago Santos de Almeida
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-15 dez. 2025
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o infinito, embora seja Deus quem estabelece a infinitude do corpo. Essa
associação Deus-corpo-infinitude o conduz à questão: o que é o corpo? Para
Artaud o corpo não é uma matéria extensa, não é menos que o espírito. Ele
questiona como o corpo pode se unir à mente. Esse contexto parece a Uno (2022),
algo essencial à criação de um corpo sem órgãos, isto é, do corpo como o lugar
da imanência e de todas as ideias da transcendência.
Por fim, para chegar a esse corpo sem órgãos é preciso liberar o corpo dos
julgamentos religiosos e metafísicos, uma vez que o corpo está profundamente
interferido pela moral, política, gestão, economia, disciplina e tecnologia. Estes
inimigos do corpo o espreitam por toda parte, por isso a necessidade de trabalhos
especiais (de empurrar, forçar, amassar), engenhosos e contínuos para encontrar,
perceber e transmutar esse corpo sua condição infinita e opaca. O corpo
encarnado é como um fora desse corpo, o corpo é afinal gesto e é “contrafigura”.
Uno (2022) não deixa de tratar das ressonâncias entre Nietzsche e Artaud, dois
pensadores que abordam o corpo e doença, que possuem uma perspectiva
terapêutica e vitalista e concebem um teatro inovador e original. O primeiro com
a noção de teatro dionísico e o segundo com o teatro da crueldade; ambos
criticam a primazia da imagem e concebem o teatro como uma inspiração musical
ao trazerem o corpo para o debate filosófico, criticando o dualismo moderno
espírito e corpo, consciente e inconsciente e a subordinação do corpo à
consciência e à razão.
Concluindo Artaud e a arte educação
O que convida à leitura deste estudo é que Uno (2022) não se limita a dizer
que o corpo é na obra de Artaud o lugar do sentido. A atualização do texto original
perpassa um corpo que dança, que está nas artes visuais, na poesia e na literatura,
mostrando que as formas que o pensamento se expressa não são inseparáveis
dele, do corpo. Desse modo, nos convoca a uma pedagogia das artes que priorize
esta perspectiva, afinal, a arte é aprendida na medida em que é experimentada! O
convite é se deixar contagiar e aprender com o Artaud de Kuniichi, que tem muito
em comum com o que propuseram Deleuze e Guattari e outros pensadores que
foram movimentados pelas noções de corpo e corpo sem órgãos artaudianas.
A poética das forças, o Artaud de Kuniichi Uno e o
corpo por vir
em arte educação
Cláudia Madruga Cunha | Icaro Iago Santos de Almeida
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-15 dez. 2025
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Corpo descontruído e reconstruído constantemente que, vindo de Artaud, apela a
nós a construção de outros modos narrativos, outras expressões do que afinal
perpassa, percorre, atravessa a vida do corpo e o dobra ao improvável, ao
inverossímil, ao duvidoso, àquilo que ele ainda não é, não chegou a ser e nem
nenhuma palavra que acolha. O que faz pensar que às artes do corpo cabe educar
para o que esse corpo ainda não é, cabe à educação criar os caminhos de
expressar e acolher esse corpo por vir!
Referências
ARTAUD, Antonin.
Escritos de Antonin Artaud
. Tradução de Cláudio Willer. Porto
Alegre: L&PM, 1986.
ARTAUD, Antonin.
Correspondência com Jacques Rivière
. Tradução de Olivier
Dravet Xavier. Belo Horizonte: Moinhos, 2020.
UNO, Kuniichi.
A gênese de um corpo desconhecido
. Tradução de Christine
Greimer. São Paulo: N-1 Edições, 2016.
UNO, Kuniichi.
Hijikata tatsumi. Pensar um corpo esgotado
. Trad. Christine Greiner
e Ernesto Filho. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.
O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia
.
Tradução de Joana M. Varela e Manuel Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.
DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo. tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo:
brasiliense, 2005.
Recebido em: 31/09/25
Aprovado em: 14/10/25
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br