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A criação de estéticas e estratégias feministas
na comédia contemporânea
Entrevista com Vanderléia Will
Concedida à Maria Brígida de Miranda
Para citar este artigo:
WILL, Vanderléia; MIRANDA, Maria Brígida de. A criação de
estéticas e estratégias feministas na comédia
contemporânea. [Entrevista concedida a Maria Brígida de
Miranda].
Urdimento -
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v.03 n.56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0503
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A criação de estéticas e estratégias feministas na comédia contemporânea
Entrevista com Vanderléia Will - Concedida a Maria Brígida de Miranda
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-14, dez. 2025
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A criação de estéticas e estratégias feministas na comédia contemporânea
Entrevista com Vanderléia Will1
Concedida a Maria Brígida de Miranda2
Resumo
Vanderléia Will, premiada atriz catarinense, da Cia. de Vento Teatro, criadora da personagem
cômica Dona Bilica e reconhecida internacionalmente por espetáculos de comédia física como o
De Malas Prontas
(2003) e o
Desajustada
(2021), concedeu entrevista à pesquisadora Brígida
Miranda. Na conversa realizada em 23 de outubro de 2024, após a apresentação da peça
Dona
Bilica Naquele Tempo
(2014), no CEART/UDESC, a atriz revelou dinâmicas de criação de
dramaturgia, processos de construção de personagem, levantamento de histórias e "causos" nas
comunidades antigas da Ilha de Santa Catarina e refletiu sobre a transformação de seus
processos de criação teatral a partir do despertar da consciência feminista.
Palavras-chave:
Comicidade. Feminismo. Teatro físico. Atuação. Dramaturgia.
The creation of feminist aesthetics and strategies in contemporary comedy
Abstract
Vanderléia Will, an award-winning actress from Santa Catarina, of the de Vento Theater
Company, creator of the comic character Dona Bilica and internationally recognized for physical
comedy shows
De Malas Prontas
(2003) and
Desajustada
(2021), granted an interview to
researcher Brígida Miranda. In the conversation held on October 23, 2024, after the presentation
of the play
Dona Bilica In Those Days
(2014), at CEART/UDESC, the actress revealed dynamics
of dramaturgy creation, processes of character development, collection of stories and anecdotes
from the old communities of Santa Catarina Island, and reflected on the transformation of her
theatrical creation processes following the awakening of feminist consciousness.
Keywords:
Comedy. Feminism. Physical theater. Acting. Dramaturgy.
La creación de estéticas y estrategias feministas en la comedia contemporánea
Resumen
Vanderléia Will, premiada actriz de Santa Catarina, de la Cia. de Vento Teatro, creadora del
personaje cómico Doña Bilica y reconocida internacionalmente por los espectáculos de comedia
física
De Malas Prontas
(2003) y
Desajustada
(2021), concedió una entrevista a la investigadora
Brígida Miranda. En la conversación realizada el 23 de octubre de 2024, tras la presentación de la
obra
Doña Bilica En Aquellos Tiempos
(2014), en el CEART/UDESC, la actriz reveló dinámicas de
creación de dramaturgia, procesos de construcción de personaje, recopilación de historias y casos
en las antiguas comunidades de la isla de Santa Catarina y reflexión sobre la transformación de
sus procesos de creación teatral a partir del despertar de la consciencia feminista.
Palabras-Clave:
Comicidad. Feminismo. Teatro físico. Actuación. Dramaturgia.
1 Graduação em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Com o extinto Circo
da Dona Bilica, do qual foi sócia fundadora, produziu o Festival Ri Catarina, A Escola de Palhaças e de
Palhaços de Florianópolis. Participou de diversos festivais e encontros de teatro/circo e palhaçaria no Brasil
e exterior, compondo debates e palestras relacionadas à gestão, autonomia e trabalho da atriz cômica, do
circo e da palhaçaria. Correalizou, juntamente com o Teatro de Anônimo (RJ), a equipe de produção das 8º.
Edição do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro, em Florianópolis. Pesquisadora de
músicas, poesias, ditados populares e de histórias sobre a cultura popular de Florianópolis, é criadora da
conhecida personagem Dona Bilica, figura carismática que eterniza o jeito de ser do nativo morador da
cidade mais de 33 anos. Texto informado pela atriz na página Linkin: Vanderléia Will - Atriz , diretora e
palhaça / Cia Pé de Vento Teatro | LinkedIn Acesso em: 13 out. 2025.
2 Pós-doutorado em Teatro pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorado em Teatro pela
La Trobe University (LTU), Austrália. Mestrado em Master of Arts pela University of Exeter (EU), Inglaterra.
Graduação Licenciatura em Educação Artística pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Titular da
área de Interpretação e Direção Teatral do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação
em Artes Cênicas (Doutorado e Mestrado) da Universidade do Estado de Santa Catarina. Coordenadora da
Pesquisa CURARTE - Práticas cênicas para o bem-viver: estudos de gênero e feminismos nas artes da cena
(CNPq e UDESC).
Membra do grupo de pesquisa Imagens Políticas. maria.miranda@udesc.br
http://lattes.cnpq.br/6580699080518678 https://orcid.org/0000-0002-0828-8585
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Introdução
Figura 1 Maria Brígida de Miranda Figura 2 Vanderléia Will
Foto: Valentina Orlandi (Núcleo de Comunicação Foto: Renato Turnes
do Centro de Artes CEAT/UDESC)
Em 23 de outubro de 2024, Vanderléia Will carinhosamente conhecida
como Vandeca apresentou o espetáculo teatral
Dona Bilica Naquele Tempo
(2014), uma peça cheia de humor e histórias fantásticas, com direção de Renato
Turnes3. Comemoramos em dose dupla o Dia do/a Servidor/a Público/a e do/a
Professor/a em duas sessões no Espaço 2 do Departamento de Artes Cênicas do
Centro de Artes, Design e Moda da UDESC, com a plateia lotada de docentes,
discentes, técnicos/as, terceirizados/as e pessoas da comunidade externa que
vieram prestigiar uma das mais conhecidas atrizes de Florianópolis cuja
personagem, Dona Bilica, tornou-se um ícone da cultura ilhoa. A ação organizada
pela Direção de Centro do CEART integrou a programação da VI Mostra Rosa
3 Renato Turnes é ator e diretor de teatro e cinema, roteirista e documentarista. É um dos fundadores da La
Vaca Cia. de Artes Cênicas, junto a qual dirigiu espetáculos como
Mi Muñequita
,
Kassandra
e
Uz
, além de
atuar em
Le Frigô
e
Ilusões
. Também dirige, escreve e atua em
Homens Pink
, projeto de filme e teatro
documentário. É também diretor convidado em projetos de outros grupos e artistas. Espetáculo "Dona Bilica
Naquele Tempo" mergulha na cultura original dos manezinhos - Portal Making Of. Acesso em: 13 out. 2025.
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Teatral4 evento extensionista, sob minha coordenação, que tem como foco a
celebração da vida e da saúde das mulheres por meio de atividades artísticas
durante o mês de outubro, quando ocorre a campanha de prevenção contra o
câncer de mama.
A proposta de trazer a produção de Vanderléia Will e Renato Turnes ao CEART
diz tanto sobre a trajetória de ambos os artistas, que se formaram na Graduação
em Artes Cênicas da UDESC, como dialoga com a temática do evento, uma vez
que a peça aborda as experiências e histórias de mulheres locais. Em matéria
recente no jornal NSC Total, Mariana Barcellos (2025) informa que
Dona Bilica foi criada em 1991, quando Vanderléia ainda era aluna de Artes
Cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), após
Geraldo Cunha convidá-la para criar a parceira do Seu Maneca. Para dar
uma cara e um jeito para a personagem, a jovem atriz fez um longo
processo de pesquisa. Fez vários encontros com nativos da Ilha, em um
exercício de mimese corpórea técnica em que a atriz não apenas copia
sotaques e trejeitos, mas incorpora histórias de vida e memórias da
comunidade.5
Ao caracterizar-se como “manezinha”, a atriz formada pelo Departamento de
Artes Cênicas da UDESC passou a carregar não apenas a arte do teatro, mas um
baú de histórias e memórias de comunidades locais em seu próprio corpo. Seja
debaixo de uma tenda ou na inauguração de uma obra do município, ou no salão
de uma escola, ou em espaço aberto, Vanderléia demonstra técnicas aprimoradas
de atuação e jogo, e um repertório de histórias de comunidades rurais e pesqueiras
de Florianópolis.
No espetáculo
Dona Bilica Naquele Tempo
, construiu com a direção de
Turnes uma dramaturgia que aprofunda as questões da memória coletiva do povo
de Florianópolis e a cultura ilhoa.
O premiado documentário produzido pela dupla durante o processo de
4 “Udesc divulga programação da Mostra Rosa Teatral”. Notícia. Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC.
Notícia - Udesc divulga programação da 6ª Mostra Rosa Teatral. Acesso em: 13 out. 2025.
5 Mariana Barcellos. “Sou mais que a Dona Bilica”, diz a atriz Wanderléia Will sobre peça sobre etarismo. Home,
DC, Entretenimento. NSC Total. Postado em 05 out. 2025 - 10:00 - Atualizada em: 09 out. 2025 - 15:20. "Sou
mais que a Dona Bilica", diz a atriz Vanderléia Will, que lança peça sobre etarismo - NSC Total. Acesso em:
14 out. 2025.
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pesquisa de campo para a criação cênica, intitulado
Dona Bilica Naquele Tempo6
,
demonstra como comunidades locais em 2013 estavam rapidamente se
transformando enquanto seus saberes e culturas tradicionais desapareciam. O
mais interessante ao assistir primeiro ao curta-metragem é constatar o método
cuidadoso e humano do processo de pesquisa etnográfica. É possível observar o
afeto entre a artista e as várias senhoras e senhores nativos; nas conversas feitas
na cozinha, no velho engenho, percebemos a cumplicidade de quem está em uma
casa de pessoas conhecidas e amigas. E foi particularmente tocante para mim,
que sou nascida e criada em outro estado, observar como a atriz Vanderléia Will
trabalhou no campo da comédia todos esses afetos e memórias coletivas de
mulheres ilhoas de forma respeitosa e feminista.
A sinopse do espetáculo anunciava o seguinte: “Dona Bilica é uma lavadeira,
benzedeira e rendeira que abre as portas de sua casa para contar como era viver
antes do progresso chegar.”7 A impressão que tive ao fim do espetáculo é que a
personagem Dona Bilica sempre diz o que pensa, e a atriz, por meio de números
mais longos ou mais curtos, parece transmitir um recado: a memória de um povo
está em seu jeito de falar, de se mover, de pensar sobre o que e o que ouve, de
tomar decisões e de agir. E o palco, a cena teatral é onde a memória quase perdida
pode ser restaurada.
Sobre o texto da conversa, é preciso informar que a entrevista foi realizada
de forma presencial no Espaço 2, para o vídeo
intitulado A Criação de Estéticas e
Estratégias Feministas na Comédia Contemporânea8
(2024), uma realização do
Projeto de Pesquisa “CURARTE - Práticas cênicas para o bem-viver: estudos de
gênero e feminismos nas artes da cena (CNPq e UDESC)9, sob minha coordenação
6 “O curta-metragem catarinense Dona Bilica - Naquele tempo, da Cia de Vento Teatro , com direção de
Renato Turnes, foi o maior vencedor do 19º Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM 2015). A obra recebeu
cinco prêmios - do júri oficial e popular na categoria produção catarinense, documentário, direção e
montagem - A película conta a história da Dona Bilica, personagem criada há 20 anos pela atriz Vanderléia
Will. Rodado em 2013, o filme mostra o encontro da atriz com antigos moradores de Florianópolis para
recolher material para a montagem de um novo espetáculo.” Documentário Dona Bilica Naquele Tempo -
completo com Vanderléia WIll Canal do Youtube: Pé de Vento Teatro. Acesso em: 13 jul. 2025.
7 “Udesc divulga programação da 6ª Mostra Rosa Teatral”. Notícia. Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC.
Notícia - Udesc divulga programação da 6ª Mostra Rosa Teatral Acesso em 13 out. 2025.
8 Acesse o vídeo e assista a entrevista: Curarte - Práticas Cênicas Feministas - YouTube
9 Projeto de Pesquisa aprovado na Chamada CNPq/MCTI Nº 10/2023 - Faixa A - Grupos Emergentes. Processo:
407191/2023-2 Vigência: início: 26/02/2024 fim: 28/02/2027 - Título: Curarte - Práticas Cênicas para o bem-
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junto ao Grupo de Pesquisa Imagens Políticas no PPGAC/UDESC. A filmagem foi
realizada pela Dra. Luciana Aires Mesquita como parte de seu pós-doutorado em
Artes Cênicas como bolsista da FAPESC (2024-2025), sob minha supervisão, no
PPGAC, e editada pelo cineasta e professor da Universidade de Brasília (UnB) Dr.
Armando Bulcão. O vídeo, disponível no Canal Curarte: práticas cênicas para o
bem-viver10, conta com
inserts
de cenas de espetáculos e documentários
escolhidos pela atriz Vanderléia Will. Para esta publicação, a entrevista foi
transcrita por Geane Salasário Albino, graduanda de Licenciatura em Artes Cênicas
e bolsista do Projeto de cultura CURA: Teatro, autodescoberta e cuidado de si
(Procult/UDESC), sob minha coordenação. O texto foi editado para facilitar a
leitura, mas buscou manter a fluidez e naturalidade das falas, e posteriormente foi
revisado por Denize Gonzaga.
A Entrevista
Maria Brígida de Miranda - Vandeca, queria saber sobre seu processo, visto
que tem 30 anos de criação da Dona Bilica, personagem cômica muito
importante na história do teatro de Santa Catarina, principalmente aqui de
Florianópolis. Você consegue agregar muita coisa com ela, que é muito
querida por todos/as. Mas, além dela, você também tem um trabalho com
outras personagens, de construção de cena, com teatro físico, com
elementos de palhaçaria e teatro físico muito bem estruturado. E me falou
de um espetáculo novo. Então, eu queria que você falasse um pouco do que
percebe como artista criadora desses elementos que escolhe para tratar a
cena: seria a partir de uma comicidade? Se você identifica essa comicidade
como uma comicidade feminina, feminista, se essa comicidade não tem
gênero. Como é isso?
Vanderléia Will
- A minha forma de criar meus espetáculos na cena... partem
dessa linguagem cômica. E eu tenho espetáculo com fala, sem fala, de comédia
física. Eu não parto de um texto; a minha dramaturgia é criada coletivamente.
Então são processos mais... demorados. Os espetáculos levam nove meses, um
viver: estudos de gênero e feminismos nas Artes da Cena. Instituição de Execução: Universidade do Estado
de Santa Catarina.
10 Acesse o canal no
Youtube
: Curarte - Práticas cênicas para o bem viver -
YouTube
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ano para ser criados. Porque a gente vai para a sala, começa a treinar, a
experimentar, a improvisar. No [espetáculo]
De Malas Prontas
, eu não tinha essa
consciência. Era um outro momento da minha vida. Quando eu saio e me torno
consciente, tudo se abre, tudo modifica. A própria personagem, Dona Bilica, que
existia antes, também se modifica, se transforma.
O poder da arte está nisso, de entrar na sua forma de pensar o mundo e ele
também vai te transformando. Tu vai tendo visões sobre temas, vai abrindo a
cabeça, se descolonizando. Meu pensamento vai vendo: Nossa! Isso aqui afeta o
meu gênero, isso aqui diz respeito à minha condição de gênero, isso aqui diz
respeito à desigualdade. Então, coisas me afetaram ao longo da minha trajetória
artística, e eu quis falar sobre isso.
A minha consciência enquanto mulher, pessoa física, afeta diretamente a
construção dos meus processos criativos na cena. Então, quando eu saio da gaiola,
quando eu vejo, os véus caem e eu me torno feminista. Assim, toda a minha forma
de conceber e de criar os meus espetáculos muda também. Eu também estava
dentro daquele sistema, estava oprimida e não sabia. Quando eu me torno
consciente, tudo isso explode. Tudo me afetou quando eu me tornei consciente.
Quando eu sofri opressão, quando eu sofri violência, quando eu vi as violências
que aconteciam.
Eu me mudei para uma casa na pandemia [de Covid-19], no dia sete de março
[de 2020] e, [no dia] nove, começou a pandemia. Eu não conhecia ninguém.
Quando eu vi, o vizinho começava a gritar dentro de casa. E eu percebi que ele
estava gritando com uma mulher, mas eu não escutava uma mulher. Aquilo me
moveu de uma maneira, né? Televisão bombardeando: feminicídio, feminicídio,
feminicídio, coisas assim. Eu falei: Gente! A gente precisa gritar e falar disso.
Na pandemia, eu criei o [espetáculo]
Desajustada
, que é uma mulher
encarcerada dentro de uma gaiola, presa às suas condições limitantes. É um
espetáculo feminista que fala sobre o patriarcado que oprime as mulheres. Então,
eu só pude criar esse espetáculo porque a minha consciência e a minha forma de
pensar mudou completamente. Tudo isso foi muito forte para eu criar esse
espetáculo. As mulheres presas, encarceradas, que não conseguem se libertar da
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sua condição de gênero, dessa estrutura social, heteronormativa, que oprime. E
o espetáculo estourou. Então, a gente achou, criou a estrutura do espetáculo toda
inspirada nisso tudo que a gente respira, e transformou em arte.
Figura 3 –
Desajustada.
Foto: Luiza Felippo
Eu queria que você falasse um pouquinho desse processo de construção da
dramaturgia de um teatro físico. Como é?
Você cria um texto, trabalha com elementos documentais. Como é o dia a
dia da Vandeca como escritora, dramaturga, dramaturga de teatro físico?
Sim. Então, por exemplo, eu agora estreei esse espetáculo e ele está uns
três anos girando. E eu começo a pensar num novo espetáculo. O que me move?
Eu começo a pensar num tema. Se esse tema está me tocando o coração...
Sempre parte de coisas que eu sinto vontade de falar. Então isso me toca, eu
quero falar disso. eu começo, eu penso num diretor, numa diretora, nas pessoas
com quem eu gosto de trabalhar. E eu tenho me identificado... Eu gosto muito de
trabalhar com pessoas que me apoiam, acolhem, entendem a minha linguagem.
Como é uma linguagem muito específica, muito autoral, é um tipo de trabalho que
não é uma interpretação de texto, então eu trabalho muito com o Renato Turnes.
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Foi o diretor do [espetáculo] Naquele Tempo, e eu estou pensando nele para
dirigir meu novo espetáculo. Então eu já converso com ele, a gente troca: Ah, o
tema é esse! a gente vai trocando uma ideia sobre o tema, falando, colocando
o que eu penso sobre o tema, e depois a gente faz pesquisa de campo, entrevista
com pessoas… A partir dessa documentação mais pessoal também, partindo de
coisas, histórias tuas, pessoais, da tua mãe, de amigos, de pessoas próximas, você
vai vislumbrando possíveis cenas e começa a improvisar as cenas e tentar jogos,
jogos que podem surgir.
No
Desajustada
, a gente estava num computador, ela [Lily Curcio]11 em São
Paulo e eu em casa; nós duas presas, né? Então a gente começou assim. Ah, eu
tenho uma cena que aconteceu comigo, que era eu lavando roupa. Me incomodava
demais, porque eu lavava roupa, e aí, quando eu ia pendurar a roupa, o varal estava
cheio de roupa pendurada, que eu não consegui recolher porque eu não tive
tempo. eu recolhia aquela roupa, pendurava a outra, e quando eu ia botar a
roupa suja para lavar na máquina, a máquina estava cheia de roupa para pendurar.
Era um ciclo vicioso que eu tinha na minha vida cotidiana. Sobrecarregada, com
dois filhos, fazendo coisas que eu não queria, sabe? Então, assim, a vida, a minha
individualidade, a minha liberdade enquanto mulher inexistia, porque eu tinha que
fazer o que um outro, um homem, queria que eu fizesse para suprir os sonhos e
desejos dele. A partir daí, a gente criou uma cena, que é a cena da palhaça lavando
roupa.
Então, parte muito disso também, de estímulos e coisas que tu vai cavando
nas tuas memórias, vai pesquisando, faz entrevista com mulheres. Às vezes a
história de uma mulher pode virar uma cena. Ou a gente mistura elas. Com o
[espetáculo] Dona Bilica Naquele Tempo foi assim. A gente cria um roteiro, faz a
mesma pergunta para todos, sabe? Então isso também vai te dando um esboço,
11 Lily Curcio - “Natural de Buenos Aires/Argentina, Lily chegou ao Brasil em 1994. Em Búzios/RJ começou a
desenvolver o trabalho dos Seres de Luz Teatro, criando e apresentando seus espetáculos. Em 1998 mudou-
se para o distrito de Barão Geraldo Campinas/SP, onde escolheu viver e criar laços. Lily foi atriz, palhaça,
pesquisadora, antropóloga e diretora. Vivia em Campinas, mas era uma artista do mundo. Apresentou-se
em dezenas de países e, frequentemente, era convidada a participar de direções e festivais nacionais e
internacionais. Ela faleceu no dia 07 de novembro de 2023, na Colômbia, onde realizaria uma oficina”.
Home Arte e Lazer
“Artistas e amigos de Lily Curcio fazem homenagem no Sesc Campinas. Nesta terça-feira (9) a atriz e palhaça
completaria 70 anos”,
Home, Arte e Lazer
. Hora Campinas. Postado 8 de julho de 2024. Artistas e amigos de
Lily Curcio fazem homenagem no Sesc Campinas - Hora Campinas Acesso em: 13 out. 2025.
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né? De documentar vários relatos e histórias, e a gente criou a história da vida da
Dona Bilica.
A Dona Bilica é uma representante dessas mulheres aguerridas, que
cuidavam da família toda, que eram rendeiras, benzedeiras, que ficavam sozinhas
muito tempo. Então, elas se uniam. Porque o marido ia pescar, e ela ficava sozinha.
Todas as senhoras com quem eu conversei falavam assim: “Antigamente era muito
ruim, agora é bom, a gente tem ônibus. A gente pega o ônibus”, porque elas tinham
que fazer tudo a pé. Era muito sacrifício para fazer as coisas todas. Lavar uma
roupa, ela lavava na lagoa. “Agora tem máquina de lavar, agora é muito bom.” Elas
estão sempre ligadas ao servir alguém, né?
Figura 4 – Dona Bilica Naquele Tempo. Foto: Cristiano Prim
Eu sempre gostei da [pesquisa sobre] memória. Quando eu comecei a fazer
a personagem da Bilica, com 20, 21 anos, muito jovem, era estranho pra mim. Então
eu fazia uma coisa mais... Me maquiava, fazia uma coisa a mais. Com o tempo,
com a minha habilidade, eu comecei a não precisar me maquiar mais. Não é a
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maquiagem que importa, é a tua interpretação mesmo e dar vida a essa
personagem. Então, eu faço tanto tempo que ela é como uma segunda pele
para mim. Na idade de casar, tipo 14, 15 anos, tinha que casar. Então também, tipo
assim, ó, você vai casar agora. Essa mulher, né, ela casa com alguém que ela não
queria e ela separa. Foi bom enquanto durou. E ela não quer mais falar do assunto.
Ela começa a viver um outro tempo, né? Que não era tão... Essa coisa da
obrigatoriedade, estar casada. Então, nos tempos de hoje...
Você toca na história privada das mulheres, na vida íntima. Quando cai
alguma mulher na cama de ficar doente, doente, doente, vem uma outra. São
várias mulheres, os homens, os parceiros, que somem, que desaparecem, ou
outros que se estabelecem e que ajudam mulheres também a se
desenvolver, que não fica uma coisa maniqueísta.
Mas o que eu achei interessante é esse foco que você na história dessas
mulheres da Ilha. Muitas faleceram, e você faz também áudio
provavelmente de entrevistas e dos cantos que são parte da história das
comunidades de Florianópolis, das comunidades de mulheres pescadoras,
de pescadores. Tem muitas histórias que você soma ali de um povo, de uma
maneira de produção e de viver que está desaparecendo rapidamente. A Ilha
tinha um povo autossuficiente, em vários aspectos, e essas comunidades
estão perdendo isso. Os engenhos estão sendo desmanchados para virar
móvel de decoração.
Sim, de decoração, exatamente. Muita história tem desse jeito de ser. Então,
a Ilha tem uma coisa muito peculiar, eu acho, por essa mistura de sabedorias,
entende? Um pouco do povo açoriano se misturou com os povos originários e com
os escravos que vieram, que estavam aqui. A história é para botar medo, olha, tu
não enfrenta.
O Desconhecido?
Tu não enfrenta, né? Se a igreja está falando que tu tem que ficar em casa,
tu não sai de casa. Que os mortos podem te pegar. Essas histórias todas, esses
mitos sobre bruxa, lobisomem e tal eram coisas que vinham muito desse modo
de pensar sem cientista dos açorianos, né? Que era um resquício dos
colonizadores açorianos que vieram e trouxeram essa coisa do medo. Eles
andavam à noite numa trilha, aí mexia uma bananeira lá, uma folha da bananeira
com reflexo da lua, aquilo era uma bruxa. Todo medo era muito bem trabalhado
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desde a infância para a pessoa ser bem contida. E são histórias que viraram, tanto
que ficou a “Ilha da Magia”, que pegou, hoje é
souvenir
, hoje se vende. Realmente,
a Ilha é encantadora. E o jeito de ser do ilhéu, do nativo, esse nativo que vem dessa
geração, que passa de pai pra filha, é isso que tu falou, se acabando. Estão
morrendo. E é uma identidade, é uma forma de pensar, de agir, de ser, que quem
viu, viu. E quem não viu, não vai ver mais.
Ah, e outra coisa é a questão da comicidade, né? Foi muito importante para
mim esse processo de pesquisa, porque eu sou de uma época que não tinha um
celular e não tinha internet. Então, quando a gente começa a fazer a comicidade,
a gente está desamparada completamente. Os professores vão nos assessorando,
dando o xerox, a gente vai lendo livros e tal, quando eu me interesso por palhaçaria.
Naquela época não se falava palhaçaria, se falava
clown
. Então, também aquilo
me incomodava um pouco, essa coisa meio colonizada.
Claro, é um aprendizado que vem de fora, porque aqui não tem, mas a gente
também perde muito a referência da nossa comicidade brasileira, dos povos
originários, da cultura popular brasileira... E aí você começa a ter uma visão muito
eurocentrista do que que é a comédia, essa coisa do clown, do [Jacques] Lecoq12,
aquela coisa toda. E eu bebi dessa fonte, porque era o que tinha na época, que
alguém que fez o curso com alguém, que fez o curso com alguém, que fez o curso
com alguém, que fez o curso com alguém, que fez o curso no Lume13, sabe, essa
coisa? Respinga em você.
Então, até eu me desvencilhar de todo esse aprendizado que eu tive e pensar
numa comicidade feminina, própria, não replicando gagues masculinas, piadas
masculinas... O que é o politicamente correto? Você entender que, quando aponta
o dedo para alguém ou faz uma piada sobre a aparência física ou sobre o gênero
de alguém, isso é errado! Então, tudo isso eu fui aprendendo estudando, fazendo
12 Para saber mais sobre as técnicas do professor francês Jacques Lecoq acesse o vídeo: Jacques Lecoq -
Tout Bouge - Conférence - Démonstration - 1985 - Subtitles - Remasterisé 2025 - 4K.
13 Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais na Unicamp: Fundado em 1985, LUME Teatro se tornou uma
referência internacional na pesquisa da arte da atuação. O grupo se apresentou em mais de 30 países,
atravessou quatro continentes e vem desenvolvendo parcerias com coletivos, universidades, pensadores,
mestres, mestras e artistas da cena mundial. Vencedor do Prêmio Shell 2013 em pesquisa continuada, o
LUME possui um repertório diversificado de ações artísticas e acadêmicas que abrange uma grande
diversidade de processos experimentais no campo artístico e pedagógico das artes presenciais.”
www.lumeteatro.com.br Lume Teatro Acesso em: 13 out. 2025.
A criação de estéticas e estratégias feministas na comédia contemporânea
Entrevista com Vanderléia Will - Concedida a Maria Brígida de Miranda
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-14, dez. 2025
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muita oficina.
Figura 5 – Dona Bilica Naquele Tempo. Foto: Vanessa Soares
Quando eu tive o espaço cultural, a gente fazia o Festival Internacional de
Palhaços. Então, eu recebi muitas pessoas. Tudo isso foi construindo também essa
minha forma de ver e pensar sobre o que é comicidade. Hoje estou em um outro
momento, olhando mais para comicidade feminina, vendo como as mulheres se
colocam num lugar de objeto ainda, fazendo comédia. As palhaças, né?
Objetificando o corpo delas, né? Falando sempre dessa questão de querer casar,
ou de precisar de alguém, de um homem para casar ou em relação à casa, à
limpeza da casa ou ao corpo delas, né?
O que mais? O que mais uma mulher sonha, ambiciona, vislumbra? Além
dessas necessidades, que é cuidar da casa, do filho e do marido? E ficar
preocupada se é magra ou se é gorda, sabe? Então, quando eu dou as oficinas, o
treinamento, eu compartilho essa minha experiência e tento falar sobre isso com
as pessoas: Espera aí, quem é você? Você quer fazer rir. Como? Por que você quer
fazer rir. Onde quer chegar com isso? Porque o riso é libertador, mas ele também
A criação de estéticas e estratégias feministas na comédia contemporânea
Entrevista com Vanderléia Will - Concedida a Maria Brígida de Miranda
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-14, dez. 2025
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aciona emoções, pode tocar em outros lugares. Então, eu estou bem feliz que eu
estou conseguindo através dos espetáculos chegar nesse lugar e nas pessoas...
Porque as pessoas vêm no final e me comentam [sobre o que sentiram sobre
espetáculo].
Ai, eu estou muito feliz, gente, muito feliz! A liberdade é algo que não tem
preço, e eu não negocio nunca mais. A liberdade é só minha.
Recebido em: 22/10/2025
Aprovado em: 22/10/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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