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Iyá Mìn
: processos de resistência a partir dos saberes
ancestrais das Yabás no Coletivo Boca 07
Carlos Henrique Vidal da Silva
Jonas Karlos de Souza Feitoza
Para citar este artigo:
SILVA, Carlos Henrique Vidal da; FEITOZA, Jonas Karlos
de Souza. Iyá Mìn: processos de resistência a partir dos
saberes ancestrais das Yabás no Coletivo Boca 07.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0117
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Iyá Mìn: processos de resistência a partir dos saberes ancestrais das Yabás no Coletivo Boca 07
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Iyá Mìn: processos de resistência a partir dos saberes ancestrais das Yabás no Coletivo Boca
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Carlos Henrique Vidal da Silva2
Jonas Karlos de Souza Feitoza3
Resumo
O artigo apresenta abordagens afrorreferenciadas em processos de criação, resistência e
afirmação identitária do Coletivo Boca 07. Com base nas danças afro-brasileiras e nos
saberes ancestrais das Yabás, o coletivo construiu uma prática artística que tensiona o
racismo religioso, a intolerância e os apagamentos institucionais, articulando arte e
espiritualidade como formas de resistência. A partir de uma perspectiva metodológica
autoetnográfica e performática, a pesquisa propôs uma reflexão sobre o corpo como
território de memória, rito e insurgência, em diálogo com epistemologias afro-diaspóricas e
decoloniais na Licenciatura em Dança.
Palavras-chave: Dança afro-brasileira. Saberes ancestrais. Performance. Intolerância
religiosa. Resistência cultural.
Iyá Mìn: resistance processes based on the ancestral knowledge of the Yabás in the Boca 07
Collective
Abstract
The article presents Afro-referenced approaches to the processes of creation, resistance,
and identity affirmation of the Boca 07 Collective. Based on Afro-Brazilian dances and the
ancestral knowledge of the Yabás, the collective built an artistic practice that challenges
religious racism, intolerance, and institutional erasure, articulating art and spirituality as forms
of resistance. From an autoethnographic and performative methodological perspective, the
research proposed a reflection on the body as a territory of memory, ritual, and insurgency,
in dialogue with Afro-diasporic and decolonial epistemologies in the Undergraduate Program
in Dance.
Keywords: Afro-Brazilian dance. Ancestral knowledge. Performance. Religious intolerance.
Cultural resistance.
Iyá Mìn: procesos de resistencia a partir de los saberes ancestrales de las Yabás en el Colectivo
Boca 07
Resumen
El artículo presenta enfoques afrorreferenciales sobre los procesos de creación, resistencia
y afirmación identitaria del Colectivo Boca 07. Basado en danzas afrobrasileñas y en el
conocimiento ancestral de las Yabás, el colectivo construyó una práctica artística que desafía
el racismo religioso, la intolerancia y el borrado institucional, articulando el arte y la
espiritualidad como formas de resistencia. Desde una perspectiva metodológica
autoetnográfica y performativa, la investigación propuso una reflexión sobre el cuerpo como
territorio de memoria, ritual e insurgencia, en diálogo con epistemologías afrodiaspóricas y
decoloniales en la Licenciatura en Danza.
Palabras clave: Danza afrobrasileña. Saberes ancestrales. Performance. Intolerancia religiosa.
Resistencia cultura.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Jardel Karlos de Souza Feitoza. Graduação em Letras
pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG/PB).
2 Mestrando em Artes Cênicas na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Licenciatura em Dança pela Universidade
Federal de Sergipe (UFS). renatacarlos336@outlook.com
http://lattes.cnpq.br/7061965485694444 https://orcid.org/0009-0003-2947-8390
3 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorado Interinstitucional (DINTER -USP/UFS - Com
bolsa CAPES) . Mestrado em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Licenciatura em Dança pela UFBA. Prof.
Adjunto do Departamento de Dança da Universidade Federal de Sergipe (UFS). jonaskarlos1@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4463428603561835 https://orcid.org/0000-0002-8520-041X
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Introdução
As experiências vividas por coletivos artísticos que atuam na interseção entre
arte, espiritualidade e resistência têm ganhado relevância nos estudos das práticas
encantadas4 e das religiosidades no cotidiano. Este artigo tem como objetivo
refletir sobre os processos criativos e as estratégias de resistência do Coletivo
Boca 07, grupo artístico surgido na Universidade Federal de Sergipe, que atua com
danças afro-brasileiras, especialmente aquelas relacionadas às simbologias e
corporeidades dos Orixás femininos, as Yabás.
Partindo da articulação entre a cena artística e os saberes ancestrais oriundos
das religiões afro-brasileiras, este trabalho compreende o corpo como território
de insurgência, memória e espiritualidade5 . As coreografias criadas pelo coletivo,
como Abre Caminho, Deixa o Exú Passar! e Festa das Yabás”, são
compreendidas aqui como expressões cênicas de uma estética de resistência, cuja
potência se revela tanto no enfrentamento do racismo religioso quanto na
proposição de uma epistemologia afro-diaspórica encarnada no gesto dançado.
O artigo se insere no campo das epistemologias e pedagogias decoloniais,
dialogando com autoras e autores como Leda Maria Martins (2021), Luiz Rufino
(2022), Sidnei Nogueira (2020), Jarbas Ramos (2017), Cida Bento (2022), entre
outros, cujas contribuições teóricas sustentam a análise da performance como
território sagrado e ferramenta de ressignificação dos corpos racializados e
espiritualizados.
Este artigo tem como abordagem autoetnográfica performativa o diálogo
entre os autores do texto com as narrativas e análises das experiências com o
Coletivo Boca 07, a partir de uma perspectiva situada e crítica. Nesse sentido,
como aponta Flick (2004, p. 21), a pesquisa qualitativa busca compreender a
4 Os estudos das práticas encantadas referem-se às narrativas das experiências artísticas do Coletivo Boca
07 que atua na interseção entre arte, espiritualidade e resistência, articuladas com epistemologias afro-
diaspóricas e decoloniais, compreendendo o corpo como um "corpo-saber" (Sodré, 2002) e um "corpo-
encruzilhada" (Ramos, 2017).
5 Neste artigo, compreendemos Insurgência, Memória e Espiritualidade como termos co-implicadoscc. A
Insurgência manifesta-se na defesa do corpo como território de oposição aos apagamentos institucionais e
ao racismo religioso. A Memória é entendida como a atualização do ancestral (Martins, 2021) e das histórias
coletivas no corpo (Sodré, 2002). A Espiritualidade articula-se com a arte em forma de resistência,
fundamentada nas epistemologias afro-diaspóricas (Rufino, 2022) e nos saberes ancestrais das Yabás.
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realidade a partir das perspectivas dos sujeitos envolvidos, privilegiando as
experiências vividas, as interações e os sentidos construídos. Tal orientação
sustenta a articulação entre o pessoal e o político, o artístico e o acadêmico,
tecendo narrativas que integram experiência e reflexão teórica..
A performance, aqui, não é apenas objeto de análise, mas, também, método:
os espetáculos e coreografias do coletivo constituem práticas de pesquisa,
produção de conhecimento e intervenção no mundo. Como destaca Leda Martins
(2021), o tempo espiralar das tradições afro-diaspóricas permite a atualização do
ancestral no presente, reconfigurando o futuro através de ritos e poéticas
encarnadas no corpo.
A análise das experiências performativas é construída a partir de registros
fotográficos, relatos e memórias dos processos criativos. O texto assume,
portanto, um caráter híbrido, entre ensaio crítico, relato de experiência e
proposição teórica, respeitando o lugar da oralidade, da corporeidade e da
espiritualidade como fundamentos de uma prática acadêmica insurgente.
Chorar é a mágoa em pérolas, diluir
Mas quem quiser amar
Certo há de chorar
Há de sentir morrer o coração [..]
(Maria Bethânia. Lágrima. Mar de Sophia. Rio de Janeiro (RJ). 2006).
Corporificando sonhos, criando memórias
As formas de resistência dos praticantes da cultura afro-brasileira foram a
chave para entender o que o Coletivo Boca 07 enfrentaria, e como deveriam-se
comportar diante de tanto preconceito e ignorância, e foi em diálogo com a arte
em movimento que buscaram a resistência para às tamanhas provações que
passariam. Diante da escassez de espaços, projetos, instituições, companhias,
grupos ou coletivos que trabalhassem com as danças-afro brasileiras ou com as
danças dos Orixás, o surgimento de um grupo dedicado a essa causa foi pensado
e dirigido pelo diretor do grupo, Henrique Vidal, no seu último ano do curso de
Licenciatura em Dança pela Universidade Federal de Sergipe, em 2022.
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Foi pela força com axé que tudo foi se corporificando. E o Coletivo Boca 07,
aos poucos, se materializou. O coletivo nunca foi acalentado, nem o coreógrafo,
nem os que caminham com ele. Nunca poderiam imaginar as tempestades ao
assumir o abrigo de um projeto de dança, de arte, com essência afro-cultural, o
coletivo se revestiu com as armas contra o racismo religioso, ergueram seus
escudos contra o cansaço, e fizeram da necessidade e da sua existência, um
caminho, um novo traço. O diretor do grupo assumiu um compromisso, antes de
tudo, com sua ancestralidade, por isso, desistir nunca foi uma opção. Na busca
por caminhos que brindassem o corpo ancestral e artístico na cena contra os
olhares e a incompreensão para com os objetivos, o Coletivo Boca 07 encontrou
o delírio eurocentrista, ainda ecoando de um profundo poço de alienação.
Pela insistência da colonização, reformulamos ideias, erguemos sapienciais,
reinventamos caminhos para o ser artista na pele, na fé, na visão afro-brasileira
de existir no mundo. Em 2022, o coletivo Boca 07 tomou o palco, fez da arte à
educação, e como resultado, nasceu o espetáculo: Abre caminho, deixa o Exú
passar!" partindo como inspiração da música que ecoa, na voz do cantor: Baco Exú
do Blues. Mediante a isso, o coletivo trouxe ao mundo um canto, um passo, um
ato, em busca de uma fragmentação nas estruturas acomodadas da dança na
cidade de Aracaju (SE).
No rito do primeiro espetáculo, foi imprescindível saudar Exú. Sem ele, não
palavra, não verbo que cruze os mundos, não sopro que mova o corpo.
Seus atributos são chaves, seus caminhos são portais, e para aqueles, que dançam
no tempo ancestral e esférico, compreendem que sem sua presença, a travessia
seria vã. A presença cênica no Coletivo Boca 07 carrega marcas do rito e da
oralidade que, como Paul Zumthor (2007) propõe, constitui uma performance viva,
situada e efêmera. Cada coreografia torna-se um gesto ancestral que atualiza o
tempo do mito no tempo presente. Zumthor lembra que: “A performance é o ato
de presença: ela acontece quando o corpo, a voz, o gesto e o espaço se entrelaçam
em um tempo compartilhado” (Zumthor, 2007, p. 25).
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Figura 1 - Coreografia Encruzilhada. Foto: Débora Sales
Exú, que brinca com os instantes, é ponte e mensageiro, elo entre os
humanos e os Orixás, entre orum (céu) e ayê (terra). Trazer suas simbologias para
o cerne da arte produzida pelo Coletivo Boca 07 foi desafio e destino, mas, acima
de tudo, foi aproximar o coletivo ao que mais alegra os Orixás, a humanidade.
O nome Boca 07 nasce desse cruzamento de signos que Exú carrega em suas
três cabaças. Ele, a boca que tudo devora, de fome insaciável, que nem mesmo a
morte pôde conter. Conta a tradição que, após sua morte, Exú continuou a
consumir tudo em seu caminho, até que Orunmilá determinou: "Para que Exú não
provoque catástrofes, toda oferenda aos Orixás deverá, primeiro, servi-lo" (Prandi,
2001, p.45). Assim, o movimento de dar e receber inicia-se sempre por ele, o
primeiro a ser lembrado, o primeiro a ser honrado.
Nos saberes afro-brasileiros, aprendemos que o número 7 pertence a Exú.
Ele é o ponto central da encruzilhada, onde quatro caminhos se abrem — frente,
trás, laterais —, mas, também, o eixo vertical que liga o alto e o baixo. E, por fim,
somos nós mesmos a encruzilhada, atravessados e atravessantes, sendo e
tornando-se também 7.
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Exú é Bara, o dono do corpo, aquele que individualiza os seres e manifesta
potências nos suportes físicos. Na dança, isso implica reconhecer a corporeidade
como lugar de ancestralidade, memória e experimentação. A criação a partir de
Exú significa valorizar a corporeidade como território de conhecimento, onde os
gestos são inscrições de histórias e forças coletivas. Exú é a potência de todas as
formas de linguagem e comunicação. A dança, pode ser atravessada por essa ideia
ao incorporar signos, ritmos e elementos narrativos que evocam a oralidade e a
performance das culturas afro-diaspóricas.
Dessa forma, a criação coreográfica se torna um campo de resistência, onde
os corpos dançantes se colocam como agentes de novas histórias e possibilidades,
significa abrir-se ao múltiplo, ao movimento em constante transformação e à
potência das encruzilhadas como espaços de invenção. É fazer do corpo um lugar
de escuta e expressão, reconhecendo a dança como um caminho de insurgência
e recriação do mundo. Pensando em Exú como simbologia metodológica e
artística, Luiz Rufino (2022, p.70) discorre:
Pensar Exú é fundamental para o enfrentamento de nossas demandas
contemporâneas e para a abertura de novos caminhos. Assim, nos
coloquemos na escuta dos ensinamentos de seus praticantes. O Orixá é
a boca que tudo come, é a potência de todas as formas de linguagem,
comunicação e criação. Exú é Bara, o dono do corpo, o princípio que
fundamenta os suportes físicos e individualiza os seres. Exu é também
Elegbara, o senhor do poder mágico e do movimento como um todo, o
princípio que fundamenta todas as potências que baixam nos suportes
físicos. Exu é o múltiplo no uno, por isso é por excelência o senhor das
encruzilhadas, símbolo máximo dos caminhos enquanto possibilidades.
Enquanto coletivo, trazer Exú à cena foi pulsante e urgente. E com ele, vieram
também os Catiços (Exús e Pombagiras da linha da Esquerda), que imprimiram no
espetáculo a força de sua presença, arrancando-nos o fôlego e expandindo o
campo do possível. O Boca 07 arriou essa oferenda cênica para as instituições de
Aracaju/SE, ajustando o rito ao tempo e ao espaço de cada apresentação. Foi nesse
percurso que, diante do palco e do público, o coletivo pôde compreender as faces
do racismo e da intolerância, que, como malabaristas, transmutam formas para
manter-se de pé.
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Mas esse movimento de reinscrição da ancestralidade nos corpos e na cena
não se sem conflitos. Ao reterritorializar saberes e cosmologias de origem
africana, o trabalho do Coletivo Boca 07 inevitavelmente confronta os sistemas de
poder que historicamente silenciaram ou demonizaram essas práticas. Nem todos
os integrantes do coletivo pertenciam às religiões afro-brasileiras. Na verdade,
apenas quatro pessoas mantinham ou haviam mantido contato direto com essas
tradições. Por isso, muitos momentos foram marcados pela dor e pela
incompreensão, perceptíveis na ausência de respostas diante de situações nunca
antes vividas pela maioria. A pergunta que levamos à reflexão vem de: “Como se
defender diante dessas adversidades?”.
Os olhares pousavam sobre o coletivo, e neles foi possível enxergar, face a
face, o medo, o ódio, o rancor, a negação. Ainda assim, o Boca 07 aprendeu a olhar
para a própria arte com ternura, a gerar acolhimento no abraço uns dos outros,
enquanto coletivo aprenderam a cultivar o compromisso com a arte e com o
corpo para que pudessem seguir adiante. Sidnei Nogueira (2020) reforça o princípio
da construção da intolerância religiosa ao argumentar:
As ações que dão corpo à intolerância religiosa no Brasil empreendem
uma luta contra os saberes de uma ancestralidade negra que vive nos
ritos, na fala, nos mitos, na corporalidade e nas artes de sua
descendência. São tentativas organizadas e sistematizadas de extinguir
uma estrutura mítico-africana milenar que fala sobre modos de ser, de
resistir e de lutar (Nogueira, 2020, p. 55).
A análise de Nogueira nos permite compreender que a rejeição que
enfrentamos não é individual, mas expressão de um projeto ideológico maior, que
visa desarticular as raízes civilizatórias africanas presentes no Brasil. Essa tentativa
de apagamento, ao contrário do silenciamento que o coletivo sofreu, fortaleceu o
desejo de visibilizar, de tornar presente o que por séculos foi ocultado. A cena
tornou-se nossa resposta. E no ato performático que o Boca 07 exerceu, os corpos
dos participantes foram atravessados por memórias, axé e resistência,
reafirmando que a arte é também território de disputa simbólica e espiritual.
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A festa das Yabás
Eu vi mulheres comuns
Virando rainhas
Eu vi um povo inteiro
Perseguindo a poesia
Eu vi a rua bela
Bela como elas
Enfeitadas de Nanãs, Iansãs
E Oxuns e Iemanjás[..]
(Daniela Mercury. Dara. Salvador (BA). Sol da Liberdade. 1999).
Na tessitura dessa coreografia que ganhou o nome de "Festa das Yabás", ela
se tornou a segunda criação do Coletivo Boca 07. O movimento nascia como parte
de um futuro espetáculo, mas, naquele instante, serviu para dar corpo a duas
apresentações. A primeira delas aconteceu em 18 de agosto de 2023, na
reinauguração do CULTART6, espaço que também abriga o Departamento de
Dança da Universidade Federal de Sergipe.
Figura 2 - Colagem Fotográfica da apresentação “Festa das Yabás”. Foto: Aislan Chaves
6 O Departamento de Dança da Universidade Federal de Sergipe (UFS) funciona atualmente nas dependências
do Centro de Cultura e Arte. Link da divulgação do evento: https://www.ufs.br/conteudo/72786-apos-
reforma-ufs-reabre-cultart-com-exposicoes-e-apresentacoes-artisticas
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O convite ocorreu pelas mãos do coordenador do curso de Dança. Uma
resposta à frustração coletiva diante da seletividade estética-epistemológica que
permeia as apresentações vinculadas à Universidade Federal de Sergipe. Ainda
hoje, os critérios de convite para os grupos que residem o Departamento de Dança
seguem envoltos em uma nuvem de subjetividades. O coletivo pode ser
considerado pequeno, mas portador de uma voz potente. O que para alguns são
"detalhes", para o Coletivo Boca 07 é identidade; o que chamam de "batido", para
eles é ancestralidade.
No link disponibilizado acima, em uma nota de rodapé compartilhamos a
divulgação oficial do evento no Centro de Cultura e Arte/UFS. Mas, é curioso
perceber que não sequer um registro fotográfico da apresentação realizada
pelo coletivo. O próprio Departamento de Dança, que ocupa quase integralmente
o espaço, segue subvalorizado. Naquele mesmo dia, os departamentos de Música,
Teatro e Artes Visuais, também, apresentaram seus trabalhos e foram
amplamente divulgados. Eles ocuparam as capas; o Boca 07, o apagamento.
Mas a falta de registro vai além do apagamento rotineiro. As câmeras estavam
lá, os olhares também. E por que aquela dança de saberes ancestrais não foi
celebrada? Por que não teve seu espaço na divulgação oficial? Justamente naquele
instante em que, por entre os panos, tinham reencontrado a universidade, depois
da apresentação anterior no Teatro Tobias Barreto/SE, quando dançaram juntos à
orquestra da instituição na comemoração de seus 55 anos7.
Os passos do coletivo não foram registrados, mas, outro coletivo do
Departamento de Dança teve a sua imagem estampada. E a ironia se revela: na
capa de divulgação do evento do ano seguinte (56 anos da universidade), estava
o Boca 07. A imagem dessa apresentação anterior sendo imagem usada como
símbolo, mas não como presença. A "pseudo valorização" institucional se desenha
assim: o Boca 07 é capa, mas não matéria. É imagem, mas não narrativa.
O evento seguinte foi o Festival de Arte CECH, que aconteceu em 31 de
agosto de 2023, onde o Boca 07 representou esta coreografia. É importante
7 https://www.ufs.br/conteudo/71978-orquestra-coro-e-danca-pelo-aniversario-da-ufs
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ressaltar que, desde a formação do coletivo, sempre conseguiram realizar essas
apresentações dentro da Universidade a partir da gestão administrativa do
coordenador de curso em exercício, em parceria com a instituição. No entanto,
nunca foram remunerados por essas performances, a Universidade tampouco
arcou com quaisquer despesas referentes aos coletivos que a representam e nem
mesmo o transporte, foi disponibilizado.
A composição coreográfica "Festa das Yabás" era um fragmento do
espetáculo que o Coletivo Boca 07 ainda montaria naquele mesmo ano (2023). A
ideia inicial contemplava cinco coreografias, trazendo uma mescla de formações:
solos, duos, trios e o grupo completo. O objetivo era evidenciar e aprofundar a
expressão de cada Yabá Iemanjá, Oxum, Nanã e Iansã dentro desse contexto.
Desde o início do processo criativo, se dedicavam a investigar, e cenicamente,
trabalhar as características das mulheres ancestrais afro-brasileiras, valorizando
suas essências e presenças.
Figura 3 - Colagem Fotográfica da apresentação Festa das Yabás. Foto: Aislan Chaves
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Devido ao curto prazo para a participação do coletivo na reinauguração do
espaço do Centro de Cultura e Arte/SE, as decisões acerca do figurino, coreografia
e formação foram tomadas de maneira rápida e precisa. A introdução da
coreografia reunia todas as meninas do grupo o coletivo, naquele momento,
contava apenas com dois meninos. Dessa forma, a distribuição dos papéis e das
propostas performáticas ocorreu de maneira intuitiva e fluida, sem complicações.
Ao longo do processo, o coletivo acrescentou na coreografia Ewá e Obá à
lista das Orixás que iriam representar. Para embalar a dança, escolhemos a canção
"As Ayabás", interpretada por Maria Bethânia (2015), que menciona quase todas
elas em uma ordem de apresentação. A primeira evocada pela voz de Bethânia é
Iansã, a senhora dos ventos, de força indomável. Em seguida, Obá é exaltada como
uma guerreira destemida e independente. Ewá surge depois, descrita como a
cobra da mata virgem, dos lábios doces como o mel. Oxum, a quarta, é
apresentada ao som do ijexá, rio sereno de beleza resplandecente, encantadora
como o ouro. Nanã e Iemanjá não são mencionadas nessa canção, mas, aparecem
na música "Dara", de Daniela Mercury, que dá continuidade à coreografia.
No desfecho da performance, a menção a Oxalá era imprescindível. Dentro
das tradições afro-religiosas, conta-se que Oxalá é o único Orixá permitido a
participar da “Festa das Yabás". O nome dessa coreografia também remete a um
itan (lenda), que narra o momento em que todas as Yabás se reúnem para celebrar
e festejar. Oxalá, porém, recebe um castigo de Nanã ao tentar desvendar seus
segredos sobre a morte: como punição, ele é obrigado a vestir-se com roupas
femininas e por isso, dança na festa.
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Mãe
Figura 4 - Colagem da sessão de fotos do coletivo Boca 07 para o espetáculo Iyá Mín.
Foto: Henrique Vidal
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Após as duas primeiras apresentações do coletivo Boca 07, com a coreografia
"Festa das Yabás"8, chegava o momento de dar vida ao espetáculo completo. A
proposta era criar novas montagens anualmente e abrir espaço para que outros
alunos integrassem o grupo. Foi assim que, antes mesmo da finalização desta
coreografia, quatro novos integrantes se juntaram ao coletivo.
Na primeira montagem, como mostra a imagem inicial deste artigo, o grupo
contava com cerca de doze pessoas. Contudo, ao fim daquela etapa, apenas três
permaneceram. Razões diversas motivaram essa redução: falta de tempo,
mudança de interesses, a direção coreográfica que não agradava a todos. No
entanto, um fato era inquestionável: a experiência da dança-afro e da dança de
Orixá foi transmitida, permitindo que corpos sem vivência prévia sentissem e
revivessem essa energia ancestral.
Muitos dos que partiram do coletivo eram discentes do primeiro período da
Licenciatura em Dança, sem familiaridade com a linguagem afro-brasileira,
imersos em referências eurocêntricas, excludentes e estilizadas. Para dança dos
Orixás, foi necessário desconstruir padrões e reinventar movimentos, preparando
o corpo para a narrativa do espetáculo sobre Exú. O segundo grupo de integrantes
seguia um caminho semelhante, repetindo esse processo de ressignificação.
No primeiro ato, ao som de Falta de Silêncio, de Lia de Itamaracá (2019), os
corpos emergem, carregando tigelas de vidro azul e transparente. Dentro, a água
misturada com alfazema; nela, braceletes de miçangas nas cores de Iemanjá: azul
escuro cristalino e puro. Dois espectadores são escolhidos ao acaso por cada
intérprete, banhados nesse líquido sagrado e presenteados com os adornos.
Com o espetáculo estruturado e reafirmando a tradição do afro-brasileira, o
coletivo Boca 07 recebeu o convite da professora (Sandra Leite), a iyálorixá (do
diretor do coletivo), para levar a apresentação ao Ministério Público de Sergipe.
Naquela apresentação, no primeiro ato, o diretor pôde honrá-la e apresentá-la. O
fazer artístico e ancestral encontra coerência pela escuta atenta aos
ensinamentos dos que vieram antes, e com eles, a da sua iyá.
Em um dos atos, diante do público, o Coletivo Boca 07 entoa em cadência
8 https://youtu.be/otMpL44FoA4?si=bXV64sdNKTQF0PLA
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marcada os nomes de suas mães e avós. O objetivo era reafirmar que suas raízes
e existências traçam-se por fios matriarcais. A ancestralidade permanece viva
quando transmitida, jamais esquecida; aprende-se, reinventa-se, molda-se o
futuro com memórias do passado.
Esse gesto ritualizado de nomear suas matriarcas não é apenas simbólico, é
ancestral. Existe um princípio vital que organiza a prática artística do coletivo e sua
presença no mundo. Como diz Leda Martins (2021, p. 62):
A ancestralidade é o princípio base e o fundamento maior que estrutura
toda a circulação da energia vital. Os ritos de ascendência africana,
religiosos e seculares, reterritorializam a ancestralidade e a força vital
como princípios motores e agentes que imantam a cultura brasileira e,
em particular, as práticas artístico-culturais afro. Quer nos saberes
medicinais curativos, na fabricação de tecidos e utensílios, nas formas
arquitetônicas, nas texturas narrativas e poéticas, nas danças, na música,
na escultura e na arte das máscaras, nos jogos corporais, nas danças do
Maracatu, do Jongo, do Samba, na Capoeira, nos sistemas religiosos, nos
modelos de organização social, nos modos de relacionamento entre os
sujeitos e entre o humano e o cosmos e, em particular, na concepção do
tempo espiralar.
Cada nome dito em cena no Coletivo Boca 07 espirala como uma vibração
que atravessa o tempo, convocando o passado a participar do presente. É nesse
entrelaçar de memórias e ações que o corpo em dança se torna também corpo
de reza, escrita e enunciação. A cena, portanto, não apenas representa, mas
consagra.
Orí burúkú í gbé mi l'sẹ" , orí rere ni mo fẹ# . - Uma cabeça ruim não me
guiará, desejo uma cabeça boa
O segundo espetáculo do Coletivo Boca 07 ecoou com a força que
pretendiam. O Boca 07 chegou aos palcos que por vezes foram negados, quando
reverenciam Exú, Orixá e Catiços. A arte que o coletivo apresenta segue como um
ato de resistência, rompendo as amarras do preconceito. O diretor do coletivo,
Henrique Vidal, sempre comentou com seus intérpretes e dançarinos, que este
coletivo nasceu como um refúgio, um caminho para que ele pudesse se
reencontrar e buscar a sua salvação ancestral. Para isso, ele precisou riscar o
ponto, clamar por ajuda, e foi por Obaluayê que Iemanjá se fez farol.
Iyá Mìn: processos de resistência a partir dos saberes ancestrais das Yabás no Coletivo Boca 07
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Orí, a cabeça, é o ponto de equilíbrio. Essa gestualidade, que vai além do
símbolo, atravessa o corpo e se traduz em movimento. No espetáculo "Iyá Mìn",
essa presença se fez intensa, sustentando narrativas que o coletivo nem imaginava
enfrentar. O Boca 07 sempre foi um espaço aberto, acolhedor e sem seletividade.
Mas, com o tempo, foi possível compreender que o preconceito se moldou
dentro de infraestruturas que insistem em causar silenciamentos. Ainda assim, a
existência do coletivo segue sendo um ebó, uma oferenda que resiste e se refaz.
Cada adereço, cada objeto cênico, figurino ou traço de maquiagem, tudo foi
pensado com propósito. Não se trata apenas de estética, mas de ancestralidade
viva. Para Muniz Sodré (2002), o corpo nas práticas afro-brasileiras é um corpo-
saber, dotado de uma epistemologia própria que se comunica pela gestualidade,
pela música, pelo rito e pela dança. No Boca 07, esse corpo-signo manifesta o
sagrado e desafia os discursos normativos da branquitude acadêmica. Sodré
afirma que: “O corpo na cultura afro-brasileira não é apenas biológico, é um corpo-
signo, corpo-mensagem, corpo que sabe” (Sodré, 2002, p. 89).
Como aponta Leda Martins (2021), o corpo em cena é um corpo-tela, um meio
de comunicação pulsante. No Boca 07, esse corpo dança, fala, evoca memórias.
Os elementos que acompanham este coletivo carregam travessias, reafirmam
histórias no palco. O Boca 07 se constitui como um corpo-encruzilhada, como nos
lembra Jarbas Ramos (2017), um ponto de encontro entre tempos, saberes e
existências.
Conceitualmente, o corpo-encruzilhada é um corpo-espaço atravessado,
entrecruzado pelos elementos e saberes-fazeres que compõem o
universo em que ele se encontra. Carrega uma noção de tempo-espaço
espiralado, curvilíneo, que aponta uma gnosis em um movimento de
eterno retorno, não ao ponto inicial, mas às reminiscências de um
passado sagrado, para o fortalecimento do presente e o deslumbramento
do futuro. É, desse modo, uma característica que se apresenta na
dimensão performativa do corpo nos rituais e que pode ser experienciado
como elemento técnico e estético pelos artistas da cena (Ramos, 2017,
p.297).
Quando o Coletivo Boca 07 apresentou a coreografia "Festa das Yabás", novas
questões emergiram, revelando reflexões antes adormecidas. Comentou-se que o
coletivo fazia apenas "performance", como se essa palavra carregasse um peso ou
limitação. No entanto, para aqueles que se aprofundam nos estudos da cena,
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torna-se evidente que performar é um ato intrínseco à existência, uma linguagem
que atravessa todas as camadas do mundo.
Na dança, a performance se torna ponte entre o sagrado e o corpo,
transpondo para a cena os saberes e rituais do terreiro. Esse movimento não é
mero artifício, mas um modo de instrumentalizar e ressignificar práticas
ancestrais, transformando-as em experiência cênica. No artigo Performance: um
fenômeno de arte-corpo-comunicação”, Fernando Gonçalves aprofunda essa ideia,
ressaltando como a arte utiliza a performance para ampliar percepções e
ressignificar o olhar sobre o mundo.
Assim, longe de ser um obstáculo, a performance se revela um portal, um
espaço de travessia onde corpo, memória e espiritualidade se entrelaçam,
permitindo que a cena reverbere além do palco, alcançando o invisível e tornando-
se voz de resistência.
A performance surge, portanto, como uma manifestação artística em que
o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação e arte que se
apropria de objetos, situações e lugares - quase sempre naturalizados e
socialmente aceitos para dar-lhes outros usos e significações e propor
mudanças nas formas de percepção do que está estabelecido
(Gonçalves, 2015, p.88).
Ainda que possa ser compreendido o que foi dito, pode-se reconhecer que o
termo performance não captura, por completo, a essência produzida por este
coletivo. Se o axé não é sentido, vibrado e compartilhado, nem a arte nem o
sagrado se fazem presentes. No entanto, o Candomblé sem arte perderia sua
essência, pois os Orixás descem ao ayê (terra) para celebrar, seja na dança dos
corpos ou no pulsar da natureza.
Essas reflexões se entrelaçam à trajetória do Coletivo Boca 07, às dificuldades
que os atravessam e às barreiras que ainda persistem. As instituições os silenciam,
e essa produção artística segue à margem, sem incentivo, sem reconhecimento. A
intolerância ecoa, afastando aqueles que se deixaram levar por falácias sobre a
existência do Coletivo Boca 07. O financiamento nunca veio de fora, ele nasce das
mãos, dos sonhos e dos esforços daqueles que constroem esse coletivo. O
Coletivo Boca 07 carrega feridas durante a sua trajetória quando são comparados
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esteticamente com outros grupos artísticos da Universidade Federal de Sergipe.
Diante da ignorância dos que questionam a presença de Henrique Vidal,
diretor do coletivo, por ser branco, o mesmo rebate com verdade: “o Boca 07
surgiu da escassez da dança afro-brasileira na cidade de Aracaju (SE)”. Ele não
encontrava espaço para dançar o que seu corpo ansiava, então o terreiro que
frequenta desde os 14 anos, o acolheu. Foi naquele espaço sagrado que o diretor
aprendeu as movimentações dos Orixás, onde cada gesto que ele carrega à cena
tem sua raiz no axé. Ainda que sua posição à frente do coletivo tenha aberto
algumas portas, ele compreende que a branquitude permanece como um pacto
velado (Bento, 2022), permitindo que seu corpo atravesse lugares onde muitos não
entram. Mas, que isso não transpasse o que verdadeiramente importa: o Boca 07
não é um símbolo, é um corpo que dança, resiste e insiste em existir.
De fato, branquitude, em sua essência, diz respeito a um conjunto de
práticas culturais que são não nomeadas e não marcadas, ou seja,
silêncio e ocultação em torno dessas práticas culturais. Ruth Frankenberg
chama a atenção para a branquitude como um posicionamento de
vantagens estruturais, de privilégios raciais. É um ponto de vista, um lugar
a partir do qual as pessoas brancas olham a si mesmas, aos outros e à
sociedade (Bento, 2022, p. 62).
Essas palavras não surgem apenas para relatar as vivências do Coletivo Boca
07, nem se limitam a descrever um processo coreográfico ou a responder às
inquietações que os atravessaram. Elas são um entrelaçar de todas essas
dimensões, pois compreender a resistência cultural através da arte é reconhecer
que esse caminho, embora árduo e muitas vezes exaustivo, também é refúgio e
fortaleza.
O palco do Boca 07, enquanto espaço de arte-educação, é a reafirmação da
sua permanência dentro das instituições de ensino. Ali, o coletivo lança e planta o
obì (semente de noz-de-cola) com a esperança de colher sabedoria ancestral e
construir um futuro em que a cultura dos povos tradicionais brasileiros seja
celebrada em toda sua magnitude. Que as estruturas erguidas pelo pensamento
colonial se desfaçam, permitindo que novos caminhos, enraizados na memória e
na resistência, floresçam.
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A Dança como reza, o corpo como legado
A performatividade do corpo, tal como pensada por Judith Butler (2003),
amplia a compreensão de que a identidade não é um dado fixo, mas, se constitui
a partir de repetições, atos e rituais. Assim, quando o Coletivo Boca 07 dança sobre
Exú ou as Yabás, os integrantes do coletivo não apenas representam, mas, criam
modos de existência que rompem com normas impostas, reconfigurando o corpo
como território político e espiritual. Como afirma a autora: “O corpo é um efeito
performativo da norma, não a expressão de um núcleo interior” (Butler, 2003,
p.217).
Dentro das instituições de ensino ou eventos artísticos, o Coletivo se
compromete, até os dias de hoje, a perpassar pelas danças os ensinamentos
ancestrais herdados da cultura afro-brasileira. A dança, como campo educacional
potente, atua como contadora de histórias dos encantamentos que os Orixás
presentearam à humanidade.
Trabalhar com a cultura afro-brasileira como forma de reeducação social
permite que os ensinamentos orais não se percam no tempo ou fiquem restritos
aos espaços sagrados. O cotidiano brasileiro é banhado pelo ouro de Oxum e pelas
filosofias de vida dos seus antepassados. O reconhecimento dessa perspectiva de
mundo se torna possível quando a ressignificamos por meio da arte e do corpo.
Somos uma sociedade que se constitui por meio desses saberes ancestrais
como resistência. O Boca 07 atua artisticamente pela preservação desses
ensinamentos, evidenciando a ancestralidade afro-brasileira. É por meio dos
nossos movimentos que o corpo reconhece esses saberes, seja nas ações políticas
ao adentrarmos os espaços institucionais, seja nas simbologias que carregamos
nos gestos e danças.
É graças a Oxum que herdamos os ensinamentos da cozinha; a Obaluayê, o
cuidado com a terra; de Exú, o poder da comunicação; de Nanã, a sabedoria
ancestral; de Oxalá, a paciência e a serenidade. Com Ogum, aprendemos a moldar
o ferro dos nossos destinos; com Ossaim, a medicina das folhas; com Oxóssi, a
caça e a fartura; Iemanjá nos ofereceu o equilíbrio emocional; Oxumarê, o brilho
da transformação; Ewá, a beleza da continuidade. Oxaguiã nos ensinou que,
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mesmo sendo da paz, haverá momentos em que será preciso ir à guerra e
devemos estar prontos. Xangô nos deu a justiça; Obá, o amor-próprio mesmo após
a dor; Iansã nos ensinou a manejar as situações com liberdade e força; Logunedé
nos deu a possibilidade de sermos múltiplos em um só, com autonomia.
Todos esses ensinamentos, que partem de quem essas entidades são,
possibilitam compreender que a ancestralidade afro-brasileira está no mundo e
nós, como artistas, pedimos a liberdade de mostrar que somos frutos dela.
Na Universidade Federal de Sergipe, onde o coletivo atua, o mesmo enfrenta
uma guerra milenar não apenas do coletivo, mas, que também atravessa os
corpos dos nossos antepassados. É uma guerra por reconhecimento, por
valorização, por credibilidade. Lutam para mostrar que seus movimentos são
comunicadores dos nossos povos, que a dança que produzem tão marginalizada,
descredibilizada e posta à margem – é e sempre será resistência.
O Boca 07 não dança apenas pelo movimento. Também não realiza apenas
uma representação simbólica. Não trabalha somente os signos ou os arquétipos.
O que o coletivo faz com a dança afro-brasileira é utilizá-la como um modo de
sentir, de existir e de viver. Com ela, todos os integrantes se sentem vivos,
enraizados e encantados.
Referências
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2022.
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de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2007.
Recebido em: 19/09/2025
Aprovado em: 07/11/2025
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