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Olhar de IntenCidade: memórias e imagens na
trajetória de André Carreira
Entrevista com André Carreira
Concedida a Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Para citar este artigo:
CARREIRA, André. Olhar de IntenCidade: memórias e imagens na
trajetória de André Carreira. [Entrevista concedida a Natássia
Duarte Garcia Leite de Oliveira].
Urdimento -
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v.3, n.56, p.1-28, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0502
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Olhar de IntenCidade: memórias e imagens na trajetória de André Carreira
Entrevista com André Carreira - Concedida a Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-28, dez. 2025
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Olhar de IntenCidade1: memórias e imagens na trajetória de André Carreira2
Entrevista com André Carreira3
Concedida a Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira4
Resumo
Esta entrevista aborda a trajetória do diretor e professor André Carreira (1960), criador do
Laboratório de Atuação ÁHQIS (2007), em 2025, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina. Neste
encontro, o diretor falou sobre sua infância, seus estudos iniciais, bem como os começos de sua
vida no teatro, revelando suas influências artísticas, particularmente da obra do diretor polonês
Tadeusz Kantor. Nesta entrevista, Carreira refletiu sobre possíveis relações entre os campos do
Teatro e da Direção de Arte, tomando como referência as experiências realizadas no Laboratório
de Atuação ÁHQIS.
Palavras-chave:
ÁHQIS. André Carreira. Encenação. Direção de Arte. Imagem.
Gaze of IntenCity: memories and images in André Carreira's trajectory
Abstract
This interview addresses the trajectory of director and professor André Carreira (1960), creator of
the ÁHQIS Acting Laboratory (2007). It took place in 2025, in the city of Florianópolis, Santa
Catarina. In this meeting, the director spoke about his childhood, his early studies, as well as the
beginnings of his life in theater, revealing his artistic influences, particularly the work of the Polish
director Tadeusz Kantor. In this interview, Carreira reflected on possible connections between the
fields of Theater and Art Direction, taking as reference the experiences carried out at the ÁHQIS
Acting Laboratory.
Keywords:
ÁHQIS. André Carreira. Staging. Art Direction. Image.
Mirada de IntenCiudad: memorias e imágenes en la trayectoria de André Carreira
Resumen
Esta entrevista aborda la trayectoria del director y profesor André Carreira (1960), creador del
Laboratorio de Actuación ÁHQIS (2007), y tuvo lugar en 2025, en la ciudad de Florianópolis, Santa
Catarina. En este encuentro, el director habló sobre su infancia, sus primeros estudios, así como
los inicios de su vida en el teatro, revelando sus influencias artísticas, particularmente el trabajo
del director polaco Tadeusz Kantor. En esta entrevista, Carreira reflexionó sobre las posibles
relaciones entre los campos del Teatro y la Dirección de Arte, tomando como referencia las
experiencias llevadas a cabo en el Laboratorio de Actuación de ÁHQIS.
Palabras-Clave:
ÁHQIS. André Carreira. Puesta en escena. Dirección artística. Imagen.
1 A transcrição da entrevista foi feito por Otair Flôr da Silva Júnior e Larissy Helena Sousa Silva.
2 André Carreira revisou a transcrição bruta do material antes dessa publicação.
3 Pós-doutorado pela Universidade de Évora (EU), Portugal. Pós-doutorado pelo Consejo Superior de Investigaciones
Científicas (CSIC) Espanha. Pós-doutorado pela New York University (NYU) Estados Unidos. Doutorado em Teatro pela
Universidad de Buenos Aires (UBA) Argentina. Graduação Licenciatura em Educação Artística pela Universidade de
Brasília (UnB). Prof. Titular no Dept. de Artes Cênicas, na graduação e pós-graduação (Mestrado e Doutorado) na
Universidade do Estado de Santa Catarina. Prof. do Mestrado Profissional em Artes (Rede). andre.carreira@udesc.br
http://lattes.cnpq.br/4224540229202107 https://orcid.org/0000-0003-1846-4551
4 Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestrado em Arte pela Universidade de Brasília (UnB).
Bacharelado em Artes Cênicas Interpretação Teatral pela UnB. Profa. efetiva da Escola de Música e Artes Cênicas da
Universidade Federal de Goiás (UFG), atuando nos cursos de graduação Teatro’ e ‘Direção de Arte’ e no Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena (PPGAC). Coordena, conjuntamente com outros docentes, o Laboratório de Montagens
Cênicas e Teatro Educação (LabMonTe/ Emac), o Laboratório de Criação de Figurinos, Acervo de Indumentárias e Ateliê
de Costura (LabCriaa/ Emac), Laboratório de Pesquisa Interdisciplinar em Artes da Cena (Lapiac/ FEFED/ Emac). Integra
10 anos, como professora pesquisadora, o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Infância e seus Diferentes Contextos
(Nepiec/ FE/ UFG). natassiagarcia@ufg.br
http://lattes.cnpq.br/2673206479757870 https://orcid.org/0000-0003-1744-2035
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Apresentação
Durante três encontros, todos eles com um café na residência do professor
André Carreira, docente da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC),
pesquisador do CNPq, encenador e diretor, durante meu estágio pós-doutoral
realizado em Florianópolis com Bolsa FAPESC5, conversamos sobre algumas
questões relevantes não só para minha pesquisa sobre direção de arte, mas para
pessoas do teatro interessadas em direção e atuação.
Natássia - Durante o tempo em que nós nos conhecemos, pude perceber
que você é um artista e um intelectual orgânico, como definiria a ideia de
Antonio Gramsci. Sua prática e a sua teoria estão amalgamadas. E,
obviamente, sua história de vida se mescla com essa práxis. A sua biografia
se entrelaça com sua vida profissional, porque você é um contador de
histórias no seu cotidiano e, é um diretor de teatro. Na realidade você é um
acumulador de histórias. E essa convivência entre você e os estudantes, os
pesquisadores, define bem o seu trabalho profissional. Então, no roteiro que
fiz para essa entrevista busca relacionar estes elementos. A primeira coisa
que eu achei fantástica foi conhecer um pouco mais sobre a sua infância,
sobre o menino André e, especialmente, a sua relação com seu pai e a
profissão dele. Você se importaria de falar um pouco para nós sobre essas
lembranças pessoais e como elas determinaram ou, de alguma forma,
contribuíram para a formação do seu olhar sobre a vida e a arte?
André Carreira -
Tive a experiência da infância mais ou menos igual a de
qualquer pessoa que teve pais trabalhadores. No meu caso particular, eu acho que
eu tenho duas linhas de influências muito preciosas que também dizem respeito
a minha profissão, porque o meu pai, e o pai dele, meu avô José, trabalhavam com
a madeira. Meu avô era um operário marceneiro. Então, eu passei muitos verões
em Juiz de Fora (MG), dentro da oficina de madeira do meu avô. Além disso, meu
avô, que era uma pessoa muito séria, também contava muitas histórias. Ele
deixava a gente aprender com as ferramentas, sempre reclamando um pouco dos
netos. Mas, eu gostava muito de estar na oficina dele. E relaciono isso com ele
contando histórias e essa foi uma das coisas que mais marcou minha infância. Ele
contava histórias de medo, causos, mas o curioso é que ele não ria quase nunca.
Ele ria muito pouco. Então, ele dava uma carga interpretativa para as histórias que
5 Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Santa Catarina.
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pareciam que sempre eram verdadeiras. Entendi essa influência muito depois e,
de certo modo, relaciono isso com meu gosto pela atuação. Como meu avô, meu
pai tinha muita habilidade para fazer coisas com madeira e, desde criança, ajudei
muito a ele fazer coisas em casa, por questões econômicas. Papai construiu a
maioria dos móveis da nossa primeira casa em Brasília. Esse foi o treinamento que
eu tive e aprendi a usar ferramentas, o que fez bem para minha atividade no teatro.
Eu sempre fui capaz de fazer elementos para cenografias. Então, quando estou
trabalhando em um projeto eu faço parte da artesania necessária. O que para mim
é um prazer e é muito útil para minha prática no teatro. Subo escada, bato prego,
dou nós nas cortinas, ponho roldanas... Ontem, na montagem do cenário de
Uma
Mulher que se afoga
, você viu como participei da armação do espaço. Eu sempre
que fiz no teatro, fiz e faço coisas assim, físicas. Então, trago algo da minha
infância, que é o prazer de fazer coisas manuais. Eu construo coisas e isso também
tem algo a ver com meu pai, porque ele estudou arquitetura, ainda que
tardiamente. Então, quando eu era criança, por volta dos meus oito ou nove anos,
via meu pai fazendo maquetes na universidade. Muitas vezes ele levou meu irmão
e eu com ele para o Departamento de Desenho na UnB [Universidade de Brasília]
(DF) e passávamos o dia lá. Coincidentemente, eu me formei no mesmo prédio
que meu pai em 1984. Estudei num edifício que eu conhecia muito de criança,
porque frequentava o Desenho. Então, eu vivi esse mundo da construção das
coisas. E como me formei em uma Licenciatura em Artes Visuais quando eu
comecei a dirigir teatro, para mim foi uma coisa natural para fazer objetos de cena
e elementos de cenografia e de imaginar o universo visual. E essa habilidade
marcou também o modo como me relaciono com a ideia de ter um cenógrafo ou
uma cenógrafa que se encarregue disso nos meus projetos. Mas, antes da
Licenciatura, eu estudei no Centro de Criatividade que existia na 508 Sul de Brasília.
Era um espaço muito ativo. Ali tive aulas de gravura com professores como o Luiz
da Rocha Miranda e Fayga Ostrower. Vi Regina Miranda dando oficinas de dança.
Muita gente, artistas locais e nacionais. Eu estudei lá. E um tempo depois eu virei
monitor das aulas de iniciação de desenho.
Essa convivência nos espaços do Centro de Criatividade, do Galpão e do
Galpãozinho foi importante na sua formação. Foi ali que você começou a se
formar e também viu montagens interessantes; e algumas figuras foram
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marcantes e decisivas para você também começar a fazer teatro, não é?
Eu cresci em Brasília, apesar de ser mineiro. No final dos anos 70 [1977/78],
inicialmente o Centro de Criatividade era um projeto da UNESCO6. Creio que depois
o governo do DF assumiu a gestão dos espaços. Nestes três galpões havia um
espaço de aulas de artes visuais, um teatro e um cinema; espaços com uma vida
muito intensa com a qual aprendi muito. Antes de entrar na UnB, minha referência
de formação foi o tempo que passei ali no Centro de Criatividade entre 1976 e 1979.
Como eu era monitor dos cursos tinha acesso aos espetáculos que eram
apresentados no Teatro Galpão, que foi um espaço fundamental da cena candanga
naqueles tempos duros da Ditadura. Ali pude ver, por exemplo, o Grande Otelo; e
montagens de artistas de Brasília como Murilo Eckarth (
A Invasão
), Hugo Rodas
(
Os Saltimbancos
), um espetáculo que eu assisti muitas vezes, Chico Expedito
(
Eles Não Usam Black-Tie
)
,
que também foi uma montagem que eu vi umas vinte
vezes. Eu ia todas as noites e foi esse tipo de conexão com o espetáculo que me
levou a trabalhar com o Chico Expedito em uma importante montagem na cidade:
Galileu Galilei
. Foi então que eu comecei a fazer teatro. Eu não tinha nenhuma
formação técnica. Minha única formação era ver teatro quase todos os fins de
semana, duas ou três vezes a mesma peça. E também frequentava o Teatro da
Escola Parque que tinha um palco mais tradicional, porque o Galpão era um
espaço em formato arena. Ali vi Marcos Nanini em
Filhos de Kennedy
e
Trate-me
leão
do Asdrúbal [Trouxe o Trombone]. Aquela quadra [508 Sul] era o meu
ambiente antes de eu entrar na universidade em 1979 com o projeto de ser artista
visual. Naquela época eu me dedicava a desenhar histórias em quadrinhos e fazia
charges de humor; e publicava uma tirinha infantil de HQ que chamava
O
engraxate
no suplemento infantil do Jornal de Brasília. Meu mundo era o mundo
das artes visuais. E fiz teatro na UnB, porque um colega Fernando Vilar, que
depois veio a ser professor da UnB reuniu um grupo de estudos do
Departamento de Desenho e montou dois espetáculos de teatro. Isso era
companhia Teatro dos Artistas Plásticos; e fizemos dois espetáculos que foram
importantes naquele contexto, em Brasília,
Caneta Azul
e
Vidas Erradas
, [ambas]
6 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura é uma agência especializada das
Nações Unidas (ONU).
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nos anos 1980. Esse era um teatro com pouca técnica, mas com muito empenho
e desejo de fazer algo potente. Uma coisa que caracterizou aquela geração que
estava ávida de liberdade. Não existia escola de teatro em Brasília, tínhamos
oficinas muito eventuais, mesmo assim as pessoas faziam teatro porque estavam
decididas a fazer. Acho que esse era o caso de Fernando Villar, Fernanda Mee, Iara
Pietricovski, Otani di Carli, Chico Expedito. É o meu caso. Muita gente com quem
compartilhei um tempo muito intenso, porque era plena ditadura, mas era
também o começo das greves estudantis, as greves do ABC paulista, e logo viria a
campanha das Diretas Já.
Figura 1 -
Caneta Azul
. Acervo: André Carreira.
Por que
Caneta Azul
e
Vidas Erradas
foram espetáculos tão marcantes para
aquela geração?
Primeiro, porque a
Caneta Azul
começa com uma ideia muito interessante do
Fernando Villar, algo que hoje nós chamaríamos de uma performance breve.
Fizemos algo para apoiar uma greve estudantil, uma greve muito grande na UnB.
Fernando articulou um trabalho de teatro no contexto de um curso que não era
de teatro, com uma boa recepção no momento da greve. Daí, a partir daquela
estrutura pequena, o Fernando escreveu um roteiro dinâmico e autorreferencial; e
nossa montagem estava centrada na experiência com os autoritarismos em
nossas trajetórias escolares desde o primário até a universidade. Esse espetáculo
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teve uma excelente recepção, primeiro dentro da universidade e logo [depois] em
uma sala da cidade. Éramos nós falando de nós mesmos com nossas palavras.
Posso dizer que era uma forma de trabalhar algo diferente da geração anterior que
tomava, por exemplo, um texto Bertolt Brecht, ou Dias Gomes para falar dos
problemas políticos do momento.
Caneta Azul
era um texto sobre a ditadura, no
meio da ditadura, pela juventude que cresceu dentro da ditadura. Meu pai tinha
sido preso quando a polícia invadiu o campus em 1968; e foi neste mesmo edifício
que a gente apresentou
Caneta AzuI
. Fernando Vilar e todo nosso grupo foi
muito lúcido ao tratar esse tema da forma como fizemos em
Caneta Azul
. Mas, é
importante dizer que isso foi parte de um fenômeno nacional, porque mais ou
menos neste mesmo momento Julio Conte e o grupo ‘Do Jeito que Dá’ em Porto
Alegre, montou
Bailei na Curva
que também falava da nossa geração e dos
problemas onde as pessoas viviam com uma estrutura dramatúrgica muito
semelhante. Havia uma sincronia que associo ao momento político; e ao
aparecimento de jovens que estavam cansados de viver com medo das batidas
policiais.
Mas, esse movimento também teve muita influência da turnê nacional
do grupo carioca ‘Asdrúbal Trouxe o Trombone’. Vimos os espetáculos do Asdrúbal
e, impactados com aquela vitalidade, fomos escrever roteiros, ensaiar e apresentar
nossas próprias histórias. Nos dois trabalhos que fiz com direção de Fernando Vilar
havia uma variedade de pessoas, uma diversidade muito grande em cena. Eram
elencos muito grandes e com muito impulso e vontade de atuar. Obviamente,
quase todos com muita pouca técnica no que se refere à dramaturgia, direção e
atuação. Todo mundo fazia alguma coisa, mas a gente improvisava muito. Essas
montagens foram uma escola incrível. Eu acho que todo mundo que passou por
ali aprendeu bastante.
Vidas Erradas
foi um espetáculo muito importante no
contexto cultural de Brasília, porque teve uma resposta de público tão boa que
ficou um ano em cartaz. Muitas vezes a gente lotou a Sala Martins Pena do Teatro
Nacional de Brasília. Durante aquela temporada tive experiências muito curiosas
como, por exemplo, com pessoas me reconhecendo na rua porque eu tinha uma
cena que eu fazia um Jesus Cristo que era fuzilado sob o som de um rock pesado.
Mas, a minha continuidade na atividade teatral depois destes dois espetáculos não
foi no Brasil, porque me mudei para Buenos Aires, depois da minha formatura eu
fui embora do Brasil em 1984.
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Figura 2 - André Carreira no papel de Jesusinho em
Vidas Erradas
(1983).
Acervo: André Carreira
Você falou sobre a sua participação no movimento político de Brasília, tanto
no estudantil quanto no partido. E, parece-me que isso tem relação inclusive
com seu trabalho que foca as ocupações do espaço público. Como você
isso, na forma de trabalhar com as pessoas, na busca de autonomia e
liberdade no seu processo criativo. De alguma maneira essa experiência
política interfere no seu trabalho?
Agora em 2025, já com 64 anos, parece bem fácil entender as relações entre
minha experiência política e o olhar que fui desenvolvendo sobre o espaço público.
Mas, evidentemente, isso não se deu de uma forma simples; e me tomou muito
tempo organizar ideias e ver como elas repercutem no meu trabalho artístico e de
pesquisa. Eu fiz uma tese de doutorado sobre o teatro na cidade. E quando
comecei esse trabalho eu ainda chamava esse teatro de “teatro de rua”; e via
essa modalidade teatral como uma forma de teatro de ação política direta. Um
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teatro muito centrado nos seus aspectos temáticos. Mas, logo fui me situando em
uma posição que me permitiu ver o trabalho na cidade de um modo mais
complexo. Isso me permitiu posteriormente realizar espetáculos de rua, e publicar
textos que discutem muito o próprio conceito de teatro no espaço urbano. Mas,
vou tentar retomar um elemento da sua pergunta para dar uma referência mais
concreta. Eu acho que minha história de militância não repercutiu diretamente no
meu interesse pela rua, ainda que haja conexões, sobretudo, de caráter ideológico.
Eu militei na Convergência Socialista e tive uma formação política de esquerda
trotskista. Militei na criação do PT7 e, por um período muito breve, eu fui inclusive
membro do diretório do PT do Distrito Federal, junto com o presidente do diretório
eleito no ano em que fui embora do Brasil (Vladimir Palmeira, antigo líder
estudantil). Mas, logo depois eu fui embora para Buenos Aires, onde militei no
Movimiento al Socialismo (MAS). Vivi por 11 anos, onde defendi minha tese de
teatro. Estudei direção teatral na Escuela Municipal de Arte Dramática (EMAD)8,
mas não terminei o curso. Antes de ir embora do Brasil eu tinha feito um curso
com Augusto Boal, na sua volta do exílio, ainda em Brasília. Neste curso tive o
primeiro contato com a ideia de um teatro na rua, mas eu nunca fiz teatro de rua
no Brasil. Nem me lembro de que houvesse uma companhia de teatro de rua em
Brasília, ainda que houvesse pessoas que faziam alguns espetáculos ao ar livre
como Ari Pararrayos. No que se refere ao trabalho na cidade tive um rápido contato
com a experiência artística do ‘Viajou sem Passaporte’ em São Paulo, cujas ideias
foram importantes para eu começar a entender de forma mais complexa o espaço
público e as possibilidades do teatro na cidade.
E sobre seu pai e a influência da arquitetura?
Meu pai, Getúlio Ivan Carreira, estudou com muitos nomes importantes dos
anos [19]50 e [19]60. Ele falava muito de urbanismo e era fascinado pelo projeto
de Brasília, porque foi um arquiteto formado no pensamento moderno da
arquitetura brasileira e com uma base solidamente humanista. Ele afirmava que a
cidade devia ser para as pessoas. Como eu agora, meu pai andava na rua
7 Partido dos Trabalhadores.
8 Atualmente, esta escola se chama Escuela Metropolitana de Arte Dramático.
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reclamando de tudo que os governos fazem de ruim para os cidadãos, sempre
dizendo: por que não tem um caminho aqui? Por que tem essa cerca cortando o
caminho? Por que o governo não faz uma praça neste local? Então, eu passei
minha infância vendo o meu pai reclamar da gestão pública de Brasília, da falta de
respeito ao patrimônio e ao projeto original. Assim, cresci com a ideia de que a
cidade deve pertencer às pessoas. Eu não precisei ler sobre isso, aprendi em casa,
ouvindo meu pai. Isso, evidentemente, me marcou profundamente. Desde a
infância soube que a cidade é um lugar público, e deveria privilegiar as pessoas e
não os carros. Mas, meu pai nunca conseguiu me explicar como. Se essa era a
ideia de cidade, por que o Lúcio Costa e todas as pessoas que idealizaram Brasília,
não deixaram preparada a infraestrutura básica para a posterior implantação do
metrô na cidade? Por que eles não fizeram os buracos e deixaram isso para o
momento que houvesse recursos? Essa foi uma polêmica persistente que eu levei
com o meu pai. Porque de fato, se pode constatar que o projeto original de Brasília
pensou numa cidade para se andar de carro. Essa contradição a gente não pôde
resolver nunca. Minha experiência militante também me ajudou a formar um ponto
de vista sobre a ideia da coisa pública e da reivindicação do coletivo. Isso também
me influenciou muito a pensar criticamente com relação às formas burguesas de
administrar a cidade em benefício do capital. Porque esse é, de fato, o grande
problema da cidade. Meu contato com urbanismo me forneceu elementos que
influenciaram meu olhar sobre o teatro de rua, mas não de um modo mais
convencional, o da apresentação no formato estático do círculo. Eu estava mais
interessado na ideia e fluxo, de ruptura da ordem do espaço. Apesar da minha
militância e do curso que fiz com Boal, tão pouco me interessava uma ideia de
que se ia para rua para oferecer arte às pessoas que não tinham acesso ao teatro.
Sempre pensei que são modalidades muito distintas e que uma não substituiria a
outra experiência estética. De fato, todo mundo deveria ter acesso ao teatro de
sala
Você também é um observador na cidade. Eu percebi isso com a gente
caminhando aqui por Florianópolis. Você vai contando a história da cidade, a
história dos lugares e, ao mesmo tempo, os lugares vão te chamando de
alguma forma a criar. O seu olhar, bem específico, percebe como os espaços
te convidam a criar dramaturgias, ou a levar seus trabalhos para lá,
dialogando com aqueles espaços?
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Você diz que sou um contador de história, mas na verdade, creio que sou
mais um “reclamador”. Eu ando na cidade reclamando das coisas, eu acho que as
administrações desrespeitam muito as pessoas comuns, aquelas que habitam os
espaços públicos. Então, quando conto essas histórias da cidade, quase sempre
estou criticando o uso que o
establishment
faz da cidade em todos os lados. Mas
você tem razão, artisticamente eu penso como você falou: sinto que os espaços
me convocam. Isto é, eu não penso que a cidade é como um espaço cenográfico
para onde levo as minhas peças. Para mim, a cidade é um texto que me faz fazer,
é um texto que eu leio para minha prática criativa no espaço urbano. A partir desta
ideia que é importante no meu trabalho, trato de não ver a cidade como espaço
cenográfico, mas sim como dramaturgia. Então, isso implica tratar de entender
quais são os usos do espaço público, como isso se relaciona com as construções,
as coisas que dão forma ao espaço urbano e, principalmente, me deixar mobilizar
pelas pessoas e seus comportamentos na cidade. Ao mesmo tempo, trato de
compreender o público e seu comportamento como texto, porque é isso o que
molda o repertório de usos da cidade. Eu tenho muito interesse na cidade como
espaço vivo, habitado, feito pelas pessoas; elas olham o espetáculo e são olhadas
ao mesmo tempo. Gosto de pensar que minha educação informal me fez ver a
cidade como algo que está falando comigo.
E você vive a cidade, não é?
Sim, eu tenho uma relação permanente com isso. E quando eu trabalho
criando na cidade, trato de propor aos elencos um olhar que veja a cidade como
construção, mas também como prática. Ainda que isso variando, porque eu
também vou mudando de ideias. Mas, via de regra, nos processos na cidade trato
de que o elenco olhe para a cidade não como simples espaço cenográfico, onde
vamos colocar um trabalho pronto. Espero que atores e atrizes possam ver como
é que a cidade demanda um tipo de prática, um tipo de experiência, um tipo de
construção específico que se relaciona com algo que está em permanente
movimento. Faço isso para que seja possível explorar ao máximo as possibilidades
que a cidade e a rua, com sua multiplicidade de elementos, nos oferecem para a
criação. Simultaneamente, proponho que se entenda as pessoas que andam pela
cidade, não apenas como público e muito menos como um público cativo. Meu
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teatro é muito diferente de um teatro que faz em uma meia lua estática, que
busca que as pessoas se sentem aqui na cena como uma plateia fixa; ou que usa
uma escadaria e coloca um palco na frente para oferecer a melhor recepção
possível, quase emulando um teatro de sala. Nessas condições se pode fazer um
teatro que pode ser legal de assistir, pode ser muito interessante, mas,
pessoalmente, me parece que este teatro se separa da cidade como problema,
como vida, como dinâmica. É um teatro que oferece outra coisa às pessoas. Não
digo isso como se fosse um problema, só proponho uma diferenciação. Não estou
dizendo que o meu teatro seria melhor. digo que me interessam as formas que
pensam a cidade, principalmente, considerando práticas que invadam o espaço
do outro, penetrem o espaço daquela pessoa que circula pela cidade como um
desafio. Quando se está na rua, sempre estamos invadindo o espaço de alguém,
porque quando não ninguém na rua, eu posso ir em uma linha reta, mas se tem
alguém, eu tenho que desviar meu caminho. Se não carros circulando, eu posso
atravessar a rua por onde eu quiser, mas se tem carro, tenho que correr ou
atravessar no sinal. Então, os carros também invadem meu espaço, não é verdade?
O uso do espaço se como negociação, e eu acho que o teatro mais vivo na
cidade é aquele que negocia com essas tensões e com todas as contradições do
espaço público. Por isso, penso que fazer teatro na cidade não passa pelo desejo
de controlar, mas sim de negociar. O teatro no espaço urbano às vezes empurra
e, às vezes, é empurrado.
Você também trabalha com ocupações de prédios como, por exemplo, na
montagem que você está apresentando no Museu da Escola Catarinense da
UDESC,
Razões do Bosque
, da autora argentina Patrícia Zangaro.
Sim, Patrícia Zangaro, uma autora muito importante que foi responsável pela
criação do movimento argentino chamado ‘Teatro por la Memória’, que é um
movimento de criadores de teatro que produzem textos e eventos teatrais em
apoio à luta da associação das
Abuelas de Plaza de Mayo9
, que é uma organização
de direitos humanos dedicada a buscar seus netos que foram apropriados pelos
repressores que deram ou apoiaram o golpe militar de 1976. Os netos e netas são
9 Abuelas foi fundada em 1977, um ano depois do golpe de estado de Videla, responsável pelo
desaparecimento forçado de 30.000 pessoas.
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filhos de pessoas desaparecidas durante a ditadura encabeçada por Jorge Videla.
Figura 3 e 4 - Espetáculo
As Razões do Bosque
, com Andre Francisco, Lara Matos,
Rod Bratti e Suelen Grimes. Acervo: André Carreira
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Você é uma figura do teatro brasileiro que traz muita dramaturgia argentina
para os palcos nacionais. contou sobre sua mudança para Buenos Aires,
na Argentina, ainda jovem; e disse como isso foi importante e fundamental
para sua formação. Você mencionou alguns encenadores com os quais teve
contato lá na Argentina e que mudaram o seu olhar sobre a cena. Em Buenos
Aires, você pode ver espetáculos como de Tadeusz Kantor, que nunca esteve
no Brasil. Creio que toda essa experiência tem relação com essas ocupações
prediais e a proposta de um outro teatro que pensa o espaço. Quando
estávamos no ensaio do espetáculo
Razões do Bosque
na sala do MESC, que
reproduz uma sala de aula no início do século XX, pensei como isso evoca
uma espacialidade a qual permite uma referência a Kantor. Gostaria de falar
um pouco sobre isso?
Eu me mudei para Buenos Aires em 1984, assim que eu me formei e vivi
até 1995, quando vim viver em Florianópolis. Fui para Buenos Aires por razões
pessoais e também motivado por um desejo de fazer uma experiência fora do
país. O Brasil era um país que, naquele momento, não me oferecia nenhum
atrativo. Acho que é uma história muito pessoal, mas que talvez tenha sentido
comentar. Fazia pouco tempo que eu tinha sofrido um assalto muito violento em
Brasília e logo também tive uma decepção política muito grande com a questão
da campanha das Diretas, onde eu fui muito ativo. Mas, minha decepção não foi
com a derrota da votação da [Emenda] Dante de Oliveira no Congresso. O que me
decepcionou foi a passividade da população frente ao resultado da votação. As
manifestações gigantescas que a gente tinha feito pelo Brasil foram incríveis e
colocaram, de fato, a ditadura no chão. Então, eu me perguntava por que as
pessoas achavam que a gente tinha sido derrotado? Eu estava seguro que o que
deveríamos ter feito era ter seguido na rua e derrotado o Congresso. Mas, as
pessoas se deixaram convencer pelo PMDB10 e PT, e outras forças políticas, que
deveriam aceitar esse voto como uma fatalidade. Então, o ânimo das ‘Diretas Já’
se perdeu e eu falei “tá bom” e fui embora. Em Buenos Aires se vivia uma primavera
democrática muito diferente do ambiente do Brasil, algo que a gente não tinha
experimentado aqui. Nem no processo da Constituição, depois da ditadura, houve
[no Brasil] uma crítica e condenação aos militares como eu vi na Argentina.
Naquele momento era impossível ver um militar andando na rua uniformizado. A
polícia tinha um comportamento em Buenos Aires muito assustado, porque as
10 Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
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Entrevista com André Carreira - Concedida a Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
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manifestações democráticas botaram tudo no limite. Tanto é assim que nós
estamos aqui, a duras penas, lutando para condenar as pessoas que fizeram o 8
de Janeiro11. E na Argentina tem muitos militares condenados à prisão perpétua.
Os militares que atuaram na Ditadura estão presos ou morreram na prisão. E a
gente foi incapaz não de condenar os torturadores dos anos [19]60, como
estamos vacilando para prender as pessoas que destruíram o Senado, o
Congresso, o Supremo Tribunal Federal, e os que planejaram o golpe. Esse país
que não mudou muito, é um país reacionário. Com isso, não quer dizer que a
Argentina seja um país melhor, que nesse aspecto político eu vivi um período
muito intenso nos anos [19]80. Os artistas estavam muito ativos recuperando os
espaços democráticos, trabalhando muito. Havia um movimento muito
interessante com o qual eu me associei, um movimento ao redor das atividades
das
Madres de la Plaza de Mayo
, das
Abuelas.
Eu participei de ações junto ao
coletivo
Taller de la Puerta Roja
. Várias dessas ações aconteciam na rua e isso foi
me permitindo uma relação mais intensa com uma ideia de arte na rua. Logo eu
abandonei a expressão “Teatro de Rua”. Essa é uma terminologia que eu não uso
mais, quer dizer, eventualmente eu uso porque é como muitas pessoas a utilizam,
mas eu acho que o nome apropriado para isso é Teatro na Cidade. Relaciono isso
com algo da tua pergunta, pois para mim, estar em uma rua ou estar pendurado
em uma fachada, ou atuar dentro de um banheiro público, implica estar na cidade.
Tudo aquilo que não é uma sala teatral fechada com acesso restrito é espaço de
fluxo urbano, é cidade. A montagem de
Razões do Bosque
ocorre em uma réplica
de uma sala de aula histórica em um museu, é um teatro de sala. O espaço é algo
estranho, mas não tem fluxo livre de público, então, não situo como teatro na
cidade. Também trabalhei na fachada desse mesmo prédio com o espetáculo
Ofélia e a Fantasma – Série Teatral
, mas aí já era um teatro na cidade. Voltando à
montagem do
Bosque,
o princípio de trabalho foi experimentar naquela sala que
me remetia ao espetáculo
A Classe Morta
,
de Tadeusz Kantor, diretor cuja obra
conheci em Buenos Aires e mudou completamente a minha forma de entender o
teatro. Eu assisti
Que reviente los artistas
e
Wielopole Wielopole
no Teatro San
Martin de Buenos Aires
.
Essa primavera democrática atraiu a Buenos Aires artistas
11 Essa entrevista ocorreu antes do histórico julgamento do golpista Jair Bolsonaro e seus comparsas,
condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
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Entrevista com André Carreira - Concedida a Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira
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muito importantes da cena contemporânea, alguns que nunca vieram ao Brasil ou
vieram pouco. A primeira vez que vi Kantor, saí da sala com a certeza que o teatro
era outra coisa totalmente diferente daquilo que eu acreditava antes. Foi uma
experiência muito importante, porque eu estudava direção teatral na escola que
mencionei antes, a EMAD. E eu fui ver o espetáculo com um par de colegas da
minha turma; e nenhum de nós tinha a menor ideia de quem era esse diretor
polonês. Foi um espetáculo comovedor e toda plateia estava muito tocada. Saí do
teatro com a sensação que não havia nada novo que se fazer no teatro depois de
Kantor. Primeiro pensei que eu tinha vivido uma experiência bem pessoal, mas
depois, conversando com outras pessoas do teatro daquele momento, fui
descobrindo que tinha sido algo coletivo. Um autor e diretor muito importante na
cena argentina, Daniel Veronese, me disse: “O espetáculo passou por mim como
uma máquina”. Muitos de nós que vimos Kantor fomos influenciados por seus
espetáculos. Antes, minha ideia de encenação era: pego um texto, entendo ele,
então elaboro a encenação fiel ao texto porque tenho coisas que quero falar com
esse texto. isso. Sei que era um pensamento muito básico, mas era o que
aprendíamos na escola de teatro. Obviamente, muita gente faz teatro assim e faz
coisas interessantes. Mas, depois de Kantor passar por mim comecei a pensar de
outra maneira. E tinha uma coisa que me aproximava de Kantor: ele era
originalmente artista plástico e ele foi fazer teatro depois. Sabendo isso, aceitei
algo em mim com o que eu tinha um pouco de conflito na escola, porque para
mim as ideias surgiam primeiro em forma de imagens, bem antes de pensar em
um texto para montar. Depois, percebi que penso nos espetáculos a partir de
imagens e não a partir da dramaturgia. Mas, na escola os meus professores me
ensinaram: você o texto, faz a análise do texto, faz uma decupagem, depois
disso conversa com o cenógrafo, com o figurinista, tudo em função de uma
encenação que está centrada nos sentidos do texto. Mas, eu não conseguia fazer
isso e era um fracasso tentando trabalhar com esse modelo. Faz tempo que
trabalho de outra maneira muito distinta. Eu trabalho sempre com textos (e com
textos memorizados por atores e atrizes) mas penso os projetos e os textos a
partir de imagens prévias. Não trato de conceber uma imagem completa da
encenação com antecipação. Chego nos textos por imagens que passam por mim.
Proponho imagens para os atores e atrizes, produzo imagens para mim mesmo; e
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vou deixando que as imagens que circulam nos ensaios me ofereçam uma leitura
dos materiais sobre os quais estamos trabalhando. É a partir disso que vou
tentando interpretar o texto, mas com o texto vivendo na voz das atrizes e
atores. Um texto que vai sendo experimentado nos corpos, mas atravessados
pelas imagens que circulam. Isso faz uma diferença. Aqui, vou fazer um parêntesis,
porque eu penso que como trabalho assim, eu me divirto muito quando uso textos
do autor russo Anton Tchekhov. Porque, como ele fala sempre de teatro em suas
peças, as imagens que me ocorrem, acabam voltando ao universo do teatro e
nesta permanente luta por produzir algo que me afete enquanto afeta os outros
também. Ver atrizes e atores tomarem minhas imagens como material de criação
é comovedor. Compartilho isso com o diretor argentino Guillermo Cacace12. Em
uma conversa recente nos perguntamos: “por que a gente gosta do Tchekhov?”,
rimos e nos respondemos “porque na realidade gostamos de ver as atuações”. No
meu caso os materiais dramatúrgicos que me interessam são aqueles que
permitem que as atrizes e os atores façam aquilo que é mais bonito, intenso e
importante no teatro: atuar de modo a atravessar as pessoas que estão na cena e
na plateia. Voltando ao tema da relação entre texto e encenação vale à pena falar
da experiência que fiz com você em Goiânia, a montagem
Antígona
na rua.
Trabalhamos com um texto sem priorizar a discussão de como deveria ser a
encenação do texto, nosso processo passou pela experiência de atuação com o
texto. Posso dizer que na montagem de -
As razões do Bosque
, o mais divertido
foi o jogo do elenco com o texto, mas não tanto focado nos sentidos e significado,
mas na materialidade do texto. Eu não penso esses processos do ponto de
vista técnico. Trato de fazer com que os processos de criação sejam permeáveis
às ansiedades, necessidades e demandas em relação ao mundo das pessoas que
estão em cena. Por isso, penso que a experiência de atuar deve estar conectada
com todas as inquietações vividas pelos elencos, de modo que nos atravessemos
pelas questões da realidade perturbadora na qual estamos imersos. Isso deve
habitar a sala de ensaio, mas não somente do ponto de vista da temática do texto.
Eu queria discutir um pouco mais a questão da imagem nos seus processos.
Tem um espetáculo, o primeiro que eu assisti dirigido por você, que se
12 Cacace havia estado pouco tempo no Festival de Curitiba com sua montagem de A Gaivota, de Tchekhov.
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passava em uma lona de circo:
O Gran Circo Máximo
. Assisti no Sesc de
Campinas, em São Paulo.
Sim, foi no jardim do Sesc Campinas que a gente armou a lona.
Figura 5 -
O Gran Circo Máximo
. Acervo de André Carreira
Eu fiquei muito curiosa e achei muito interessante porque era como um
movimento de experiência mesmo. A gente chegava e, de fato, tinha
bilheteria…
Tentávamos confundir o público: “você veio ver circo ou teatro?” Tinha um
trailer com as personagens assistindo novela antes da função, venda de maçã do
amor…
A gente, de fato, entrava num circo. Mas, o que acontecia não era
necessariamente o espetáculo circense. Não sei se foi a partir disso que
começamos uma conversa sobre os seus processos com as imagens, como
você constrói seus espetáculos a partir das imagens. Então, eu queria que
você falasse um pouco mais sobre a ideia de “criar por imagens”.
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O Gran Circo Máximo
foi um trabalho muito bonito que eu fiz com a Melissa
dos Santos e Alice Possani, duas atrizes muito delicadas. O
Circo
surgiu de uma
imagem muito simples: eu desci de um avião aqui em Florianópolis e, ali perto do
aeroporto, vi uma lona de circo muito pequena com umas poucas luzes e um
cartaz pequeno na entrada anunciando o espetáculo da noite. Era uma lona muito
pequena, eu parei o carro e fui ver o que era aquilo, porque me deu uma sensação
de melancolia atroz, mas tinha uma beleza. Comprei a entrada, custava muito
pouco, não me lembro quanto agora, mas era muito barato. Entrei. Na plateia tinha
umas oito crianças, eu e um senhor. A melancolia foi se aprofundando. O
espetáculo era feito por um casal e duas crianças, acho que pai, mãe e os filhos.
E esse era todo o elenco. O circo era, era isso. A família fazia tudo, eles vendiam
pipoca, vendiam maçã do amor no intervalo. Faziam todos os números. A menina
fez o número da lira tremendo muito; e também tinha número de mágica,
equilibrismo. Aquele circo muito pequeno, muito melancólico, e, ao mesmo tempo,
muito heroico. Essa família ali, batalhando, comprometida. Não senti um clima do
tipo “ajudem a gente”. Mas, era de certo modo triste. No final, quando fui embora
cheio de sensações e imagens, me lembrei de um desenho de uma lona de circo
que eu tinha feito muito antes. Um desenho em um dos meus cadernos, que
finalmente aparece no programa do espetáculo. Eu faço muitos desenhos, como
um hábito, desde a infância. Desenho muitos espaços e alguns deles se
transformam em algo concreto nos meus trabalhos. A maioria é divertimento.
Mas, juntando a sensação de melancolia e aquele desenho da lona, eu me disse
“tem um espetáculo aqui”. Fiquei com essa ideia do espetáculo dando voltas na
minha cabeça. E isso acabou encontrando o desejo de Alice e Melissa pois elas
queriam montar alguma coisa comigo. Eu apresentei o roteiro que tinha na minha
cabeça “é um circo que ali”, mas como eram duas, eu pensei em duas
irmãs. Então, montei o roteiro. Geralmente, o que eu faço? Eu tenho muitos
desenhos e eu imagino espetáculos. Eu trabalho muito com a ideia de imaginar
espetáculos, desenho espaços e cenários para os meus espetáculos. Eu imagino
espetáculos com imagens, De vez em quando, tomo um desses desenhos e digo
“conheço um texto que encaixa com esse desenho”. E isso dispara uma
encenação. Essa é uma prática que faço muito. Leio um texto e penso que seria
legal montar esse material, mas volto aos meus cadernos para ver se tenho
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alguma imagem que me alimenta para trabalhar com o texto. Então, busco
aproximações com os textos que tenham algo de imagem como referência. É
importante dizer que prefiro trabalhar com textos e começando com o texto
memorizado pelas atrizes e atores. Além disso, eu não trabalho com improvisação
de situações nos ensaios. Proponho que os atores e atrizes saibam de memória
os textos para poderem ter máxima liberdade criativa nos ensaios. Prefiro começar
projetos procurando textos para as imagens que eu tenho, mas isso pode variar.
Por exemplo, em Goiânia eu montei
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote
dala Mancha e seu Fiel Escudeiro Sancho Pança: um capítulo que poderia ter sido
com o Teatro que Roda na sua formação inicial, vivi uns dias de dificuldade porque
o grupo me chamou para fazer um espetáculo a partir do livro de Cervantes. Eles
tinham isso como projeto. Eu tive que me adaptar, mas, falei “vamos fazer o
seguinte: vamos para o centro de Goiânia, para a avenida Anhanguera com a
avenida Goiás, vamos, vamos fazer experiências no centro, esquecendo o Quixote
por enquanto. Vamos fazer essas práticas para ver que imagens nos aparecem”.
Comecei perguntando para as pessoas do grupo o que elas gostariam de fazer em
cena, que fosse arriscado e parecesse um desafio. Isso tinha o objetivo de gerar
imagens para dar uma estrutura ao projeto na cidade. O ator Dionísio Bombinha,
uma das pessoas mais incríveis com quem eu trabalhei, disse “eu queria me
pendurar em um lugar alto”. Foi isso que nos fez pensar na possibilidade de usar
um edifício, creio que se chama Acrópolis, para que ele pudesse experimentar com
esse desejo. Como ele queria se pendurar em um rapel, foi esse desejo e sua
imagem pendurado que me deu a ideia: “então, Quixote é um advogado que desiste
da sua vida corriqueira e está no alto de um edifício e escapa pela janela em busca
de sua Dulcinéia, chega no chão e encontra uma pessoa que mora na rua e a
transforma em Sancho Pança”. Assim funcionou o impulso da imagem no Quixote.
Logo, a atriz Liz Eliodoraz fez o morador de rua e o mecanismo do espetáculo
começou a andar. E o ponto de partida foram imagens que não tinham nada a ver
com o romance de Dom Quixote. Nós não fomos procurar ideias no texto para
montar o Quixote na rua. Fizemos práticas e deixamos que as imagens nos
oferecessem a possibilidade de compreender o texto a partir da experiência na
rua. A montagem de
Macunaíma na Terra de Pindorama
, também com o ‘Teatro
que Roda’ surgiu de uma imagem que o grupo propôs, pois eles queriam montar
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um espetáculo no qual atores e atrizes ficassem nus na rua. Partimos desse desejo
para a escolha do texto de Mário de Andrade, porque ele nos permitia inventar a
cena da transformação dos indígenas em migrantes; e isso nos ofereceu o
momento no qual as pessoas ficavam nuas.
Figura 6 - Projeto do espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu
Fiel Escudeiro Sancho Pança
: um capítulo que poderia ter sido. Acervo: André Carreira
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Figura 7 -
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu Fiel Escudeiro Sancho
Pança
: um capítulo que poderia ter sido. Na foto a atriz Yeda Marçal. Acervo: André Carreira.
No caso de outros trabalhos, às vezes, você começa pelos textos? Por
exemplo, quando você usa os textos de Daniel Veronese, como em
Women’s
,
esse espetáculo tão marcante do ponto de vista da imagem, a ideia surgiu a
partir do texto?
Não, quase sempre da imagem. Chego nos textos do Veronese, mas em todas
as montagens que fiz tive uma imagem que me fez escolher este ou aquele
material. A encenação de
Women’s
nasceu de uma crise de grupo e de uma
urgência em montar algum espetáculo para superar a crise. No início dos anos
2000 nosso grupo em Florianópolis, o Experiência Subterrânea, entrou em crise de
repente porque uma pessoa decidiu ir embora da cidade no meio de um processo
de criação. Sobramos eu e as duas atrizes que, então, em uma semana decidimos
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fazer algo rápido para superar a crise séria. Passei um fim de semana pensando e
me lembrei de um desenho em um dos meus cadernos; e tinha um muito simples
que lembrava um necrotério. Na segunda feira falei para as atrizes (Vanessa
Damasco e Jaqueline Valdívia)13: “vamos fazer uma peça no cenário que é um
necrotério?”. Eu tinha essa imagem. Mas, o texto é um monólogo que faz parte de
uma trilogia e não tem nada que ver com um necrotério. Logo propus um roteiro
de ações que também nasce numa imagem, a de um corpo que espera uma
autópsia. O texto acabou sendo dito por uma personagem de uma faxineira que
está limpando o necrotério e se relaciona com o corpo nu que está na mesa. Essa
foi a ideia básica. Eu não sabia se o corpo ia falar ou não, se ia voltar à vida. Mas,
essas imagens foram nos dando as formas de criar o espetáculo. Assim, também
ocorreu com a montagem de
Guarda Chuva
, um espetáculo de rua feito a partir
de desenhos e imagens…
Figura 8 - Projeto de cenário de
Women’s
. Acervo: André Carreira
13 A montagem
Women’s
ficou em cartaz em 2001; e no ano de 2002 fizemos uma segunda montagem com
Luana Raitter e Lara Matos. Mas, posteriormente, com Lara Matos e Ana Luiza Fortes ficamos em cartaz por
15 anos com diferentes turnês pelo Brasil e América Latina, entre elas pelo Palco Giratório do SESC.
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Figura 9 -
Women’s
, com as atrizes Ana Luíza Fortes e Lara Matos.
Acervo: André Carreira
Figura 10
-
Desenho panorâmico de
Guardachuva
. Acervo: André Carreira
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Figura 11 - Encenação de
Guardachuva
, com as atrizes Ana Luíza Fortes e Lara Matos.
Acervo: André Carreira
Quando a gente falou sobre essa criação a partir das imagens, queria
completar porque eu achei interessante ver o caderno que você mostrou. As
produções imagéticas não são desenhos que você faz, têm também
apontamentos com relação às imagens…
Falo muito dos desenhos porque eu desenho o tempo todo, em toda reunião
que eu estou, eu desenho. Também faço quadros como os que estão aqui nas
paredes da minha casa e, de vez em quando, faço história em quadrinhos. Mas,
como você diz, muitas destas imagens que estão na minha cabeça, não se
transformam em desenhos porque são mais variadas. Às vezes a imagem tem a
ver com imaginar um ator fazendo um determinado movimento, então eu anoto
para pensar depois. Quando fiz o projeto de
Alice no País das Ambulâncias
, que foi
um espetáculo que eu dirigi para o Festival de Loja, no Equador, a imagem
persistente na minha cabeça era uma ambulância no centro de uma cidade, com
uma sirene ligada e uma noiva saindo de dentro da ambulância. Uma imagem
como essa eu não preciso desenhar; e foi isso o que me deu a ideia dramatúrgica
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de
Alice
. Esse projeto comecei fazendo com Liz Eliodoraz, de Goiânia, era para o
Teatro que Roda, mas por muitos motivos não avançou. Alguns dos meus
espetáculos têm a figura de uma noiva, justamente porque é uma imagem
poderosa e sugestiva e que também é estranha. A noiva é Dulcinéia no
Dom
Quixote
, aparece em
Ofélia e a Fantasma – Série Teatral
do ÁHQIS14 (2025). Então,
as imagens aparecem e eu jogo no trabalho porque sei que podem produzir coisas
interessantes, mesmo que eu não saiba bem o quê. Relaciono isso com a
influência dos espetáculos do Kantor, que foram tão importantes para mim; e
depois eu fiz uma viagem longa para ver
A Classe Morta
,
em Madri. Tomo de
Kantor o trabalho com as imagens como alimento da criação.
Figura 12 - André Carreira e Patrícia Barrufi em ensaio do Laboratório ÁHQIS.
Acervo: André Carreira
Sobre a questão do trabalho com as visualidades no seu grupo de pesquisa,
o ÁHQIS. Eu percebi que no ÁHQIS vocês não trabalham especificamente com
a ideia ou o termo de direção de arte. Mas sinto que, de alguma maneira, isso
faz parte do seu fazer artístico; e vocês colocam em prática com todo mundo
mesmo sem um responsável específico pela concepção e produção dos
14 Instagram do Laboratório ÁHQIS:
https://www.instagram.com/laboratorioahqis?igsh=MXY4a28wN2pzbHB3YQ==.
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elementos da encenação teatral. Me refiro aos figurinos, à maquiagem, à
cenografia e à sonoplastia. Como se tem se dado esse trabalho no processo
do ÁHQIS ao longo dos anos?
Hoje em dia, depois de quase 20 anos de trabalho no Laboratório de Atuação
ÁHQIS, a gente pode falar sobre isso de maneira mais clara. O processo de gestão
das visualidades dos nossos espetáculos-laboratório15, um elemento central de
nossa prática no Laboratório, começou muito concentrado em mim, porque eu
sou artista plástico de formação; e naturalmente ia propondo alternativas técnicas.
Mas, quanto mais foquei no processo de direção da atuação, que é o foco do
Laboratório, outras pessoas foram assumindo as decisões sobre roupas, luz e
espaços. Assim, vejo que nossas escolhas também se relacionam com o fato de
que quando estamos criando os materiais fazem parte desde o início do
processo de criação. Então, sempre somos muitas pessoas propondo ideias e isso
está em cada sessão do Laboratório. Assim, vamos deformando os espaços,
buscando texturas, experimentando tipos de roupas e quem tem mais interesse
vai ocupando mais espaços. No final tudo passa por uma conversa bem aberta. É
com esse tipo de processo de experimentação do Laboratório de Atuação ÁHQIS
que os atores e as atrizes propõem materiais relacionados com a visualidade. Mas,
caracteriza nossos processos o fato de que uma das primeiras coisas que são
incorporadas na criação são roupas (figurinos) para ensaiar, para dar
materialidades no corpo. Discutimos as sugestões de roupas, a partir de imagens
e desejos dos atores e atrizes, porque consideramos a roupa como um elemento
compositivo do trabalho da atuação. E ainda que isso tenha a ver com o que a
gente chamaria a “esfera” da direção de arte, priorizamos a experiência corporal
de quem atua. No Laboratório, o trabalho com a imagem, com a visualidade do
espetáculo, não está prioritariamente a serviço representação de um referente ou
de um sentido central do texto, está mais a serviço da experiência da atuação. Isso
porque nossa lógica é a do espetáculo-laboratório. Nossa pergunta não é: “que
tipo de imagens dão substância para a atuação”? Mas sim, que tipo de roupa serve
às pesquisas das atrizes e atores? Então, se eu tivesse que usar o termo direção
de arte, eu diria que a direção de arte no Laboratório de Atuação do ÁHQIS está
15 O ÁHQIS define suas produções como espetáculos-laboratório porque a premissa é a criação para que
atores e atrizes possam pesquisar procedimentos de atuação, como é o foco do Laboratório de Atuação.
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disseminada através do olhar de cada pessoa que está trabalhando no processo.
Isso não exclui que alguma pessoa concentre, eventualmente, a tarefa de propor
um caminho específico; e que não nos interesse ter uma abordagem que unifica
os impulsos que surgem no coletivo. Mas, acho importante reiterar que se
algum elemento ou ação que conformaria aquilo que é da substância da direção
de arte, isso apareceu com certeza lá no início do próprio processo de atuação. É
assim que eu entendo o trabalho de criar o mundo visual, a maquiagem, a roupa,
como aquilo que interfere no espetáculo do ponto de vista do trabalho da atuação.
A criação dos atores e atrizes é nosso referente, e se uma peça transcorre, por
exemplo, em determinada época, nossos ensaios iniciais vão marcar a forma como
vamos compor nossa direção de arte, isso vai nascer no ensaio mais que em uma
reunião técnica com todas em uma mesa e o texto na mão. A gente vai primeiro
escolher roupas para experimentar e ver onde elas nos levam do ponto de vista
da atuação. Assim, fizemos no processo de -
Uma mulher que se afoga
(2023-
2025). A peça se situa no final do século XIX, e usamos referências de época, mas
nos interessou primeiro ver como as atrizes desfrutavam do trabalho com um
figurino de época; e como isso produzia estímulos para nossa pesquisa de uma
atuação por estados. Usamos muitos figurinos de ensaio (parecidos com os
definitivos) nos exercícios. Em síntese, no nosso Laboratório, a direção de arte deve
primeiro produzir elementos que afetem atrizes e atores, deve importar para o
processo de ensaio, e por isso não é pensada prioritariamente do ponto de vista
do efeito junto ao público. Como as decisões de visualidade chegarão ao público
será o resultado da experiência do elenco.
Referencias
ÁHQIS. Disponível em: https://www.udesc.br/ceart/laboratorioatuacaoahqis.
Acesso em: 09 set.2025.
Recebido em: 14/09/25
Aprovado em: 17/10/25
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br