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Da fratura ao religare: Técnica Silvestre e
ecopoéticas do corpo diante da crise ecológico-colonial
Ana Beatriz Coutinho Rezende
Para citar este artigo:
REZENDE, Ana Beatriz Coutinho. Da fratura ao religare:
Técnica Silvestre e ecopoéticas do corpo diante da crise
ecológico-colonial. Urdimento Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v.3, n.56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0107
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Ana Beatriz Coutinho Rezende
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-21 dez. 2025
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Da fratura ao religare: Técnica Silvestre e ecopoéticas do corpo diante da crise ecológico-
colonial1
Ana Beatriz Coutinho Rezende2
Resumo
O artigo analisou a Técnica Silvestre como uma ecopoética dialógica entre corpo, arte e
cosmos, evidenciando como a corporeidade atua como memória, território e possibilidade.
Investigou-se a relação entre corpo, cultura e natureza frente ao Antropoceno e ao
Capitaloceno, mostrando que saberes africanos, afro-diaspóricos e indígenas se destacam
como respostas ancestrais às perguntas contemporâneas. A pesquisa destacou que as artes
não apenas expressam cultura, mas participam ativamente na formação de
cosmopercepções e valores civilizatórios. Assim, apontam-se as artes vivas como
laboratórios de resistência e dispositivos de construção de mundos sustentáveis, éticos e
interdependentes.
Palavras-chave: Técnica Silvestre. Ecopoética. Ecologia Crítica. Saberes tradicionais. Estudos
culturais.
From fracture to religare: Silvestre's technique and eco-poetics of the body in the face of the
ecological-colonial crisis
Abstract
The article analyzed the Silvestre Technique as a dialogical ecopoetics between body, art,
and cosmos, highlighting how corporeality acts as memory, territory, and possibility. It
investigated the relationship between body, culture, and nature in the face of the
Anthropocene and Capitalocene, showing that African, Afro-diasporic, and indigenous
knowledge stand out as ancestral responses to contemporary questions. The research
highlighted that the arts not only express culture, but also actively participate in the
formation of cosmoperceptions and civilizational values. Thus, the living arts are pointed out
as laboratories of resistance and devices for building sustainable, ethical, and interdependent
worlds.
Keywords: Silvestre Technique. Ecopoetics. Critical Ecology. Traditional knowledge. Cultural
studies.
De la fractura a lo religare: Técnica Silvestre y ecopoéticas del cuerpo ante la crisis ecológica-
colonial
Resumen
El artículo analizó la Técnica Silvestre como una ecopoética dialógica entre cuerpo, arte y
cosmos, poniendo de manifiesto cómo la corporeidad actúa como memoria, territorio y
posibilidad. Se investiga la relación entre cuerpo, cultura y naturaleza frente al Antropoceno
y el Capitaloceno, mostrando que los conocimientos africanos, afrodiaspóricos e indígenas
se destacan como respuestas ancestrales a las preguntas contemporáneas. La investigación
evidenció que las artes no solo expresan la cultura, sino también participan activamente en
la formación de cosmovisiones y valores civilizatorios. Así, se señalan las artes vivas como
laboratorios de resistencia y dispositivos de construcción de mundos sostenibles, éticos e
interdependientes.
Palabras clave: Técnica Silvestre. Ecopoética. Ecología Crítica. Sabidurías tradicionales.
Estudios culturales.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Paulo Roberto Nascimento Oliveira. Mestrando em
linguística pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), no campo de linguagem e cognição. Graduação em Letras
Português e Espanhol pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). paulo.roberto19@unifesp.br
http://lattes.cnpq.br/4828668996180036 https://orcid.org/0009-0008-0090-3855
2 Mestranda em Filosofia-Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP/EACH). Especialização lato sensu em
Psicologia Social e Antropologia pela Faculdade Metropolitana. Graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual do
Norte do Paraná (UENP). anaimani@usp.br
http://lattes.cnpq.br/4101911909281895 https://orcid.org/0009-0003-9448-5685
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Semeando as ideias: corpos, temporalidades e ecologias de vida
A desconexão entre vida humana e a natureza é um dos diversos sintomas
do pensamento colonial e capitalista. uma ruptura, uma fratura que faz com
que humanos não se perceba enquanto partes integrantes do cosmos, imersos
em um fluxo multiespécies de interdependência. Do latim, religare significa religar,
reatar, restituir. É nesse horizonte na percepção da urgência de restaurar essa
interdependência multiespécies que se apresenta este estudo, buscando nas
artes vivas formas de reconexão e restituição.
Contudo, a fratura entre humanos e natureza se manifesta de maneira
concreta em nosso tempo, especialmente quando analisamos os debates
contemporâneos sobre Antropoceno e Capitaloceno3. No século XXI, essas
discussões revelam não apenas diferentes diagnósticos sobre a crise planetária,
mas também distintos modos de compreender quem são os sujeitos responsáveis
por ela e quais corpos suportam suas consequências. Nesse contexto, a terra grita.
O ar é pesado, os rios carregam cicatrizes químicas e os corpos vivem sob pressão
contínua, dilacerados entre sobrevivência e produção. Chamamos isso de
Antropoceno: a época em que a humanidade, entendida de forma abstrata, teria
se tornado força geológica.
Por outro lado, ao ocultar quem são os responsáveis e quem paga o preço,
dissolve as diferenças históricas. Não é a “humanidade” em bloco que devasta,
mas um projeto racial-capitalista específico, que funda colônias, mercantiliza a
vida e transforma florestas, oceanos e corpos em máquinas de extração. Aqui se
ergue o Capitaloceno, como denunciam Jason Moore (2016), Donna Haraway (2015).
Essas leituras, embora relevantes, permanecem limitadas por não integrarem
plenamente a experiência histórica de povos racializados e originários e por pouco
reconhecerem a centralidade da racialização e da colonialidade na crise ecológica.
Em outra direção, Malcom Ferdinand (2022) traz a ecologia decolonial como uma
abordagem que coloca a racialização e a colonialidade no centro da reflexão sobre
3 O termo Antropoceno, criado por Eugene F. Stoermer e popularizado por Paul Crutzen para designar a era em
que a ação humana se tornou força geológica planetária. Já o conceito de Capitaloceno, formulado por Jason
W. Moore, desloca a responsabilidade para o sistema capitalista e suas dinâmicas de exploração.
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a crise planetária.
Este artigo parte dessa fenda para propor outra leitura/escuta: a de corpos
que dançam com a natureza. Na contramão da hierarquização de humanos sobre
outros seres e da instrumentalização radical do corpo e da natureza, a Técnica
Silvestre, criada por Rosângela Silvestre, se inscreve como um território de
resistência, fabulação e cuidado. Sua prática recusa o corpo-mercadoria e a
independência entre humanos e outros seres, abrindo espaço para corpos-
cosmos, corpos-rios, corpos-árvores. Esse deslocamento não é apenas estético,
mas epistemológico, pois reposiciona a dança como prática de pensamento e de
produção de conhecimento sobre corpo e natureza. A Técnica Silvestre, nesse
sentido, contribui para o debate acadêmico ao propor o corpo e as artes vivas
como território de resistência ecológica e política.
Nossa intenção é dupla: primeiro, analisar criticamente como as noções de
Antropoceno e Capitaloceno iluminam e ao mesmo tempo limitam as formas de
pensar corpo e natureza; posteriormente, mostrar como epistemologias africanas,
afrodiaspóricas e indígenas oferecem outras cosmologias capazes de romper a
lógica hierarquizante e produtivista. Nesse percurso, destacamos a Técnica
Silvestre como exemplo concreto de prática artística que não só dialoga com tais
cosmologias, como também as reativa no presente, criando brechas no imaginário
colonial-capitalista.
Metodologicamente, o artigo se apoia em pesquisa bibliográfica e análise
crítica, articulando autores dos campos dos estudos culturais, da dança e da crítica
colonial-capitalista, em diálogo com experiência vivencial, relatos e
sistematizações sobre a Técnica Silvestre. A escrita assume caráter político e
autoral, pois entendemos que, diante do colapso ambiental e da necropolítica
global (Mbembe, 2016), a neutralidade não é opção. É preciso escrever, dançar e
pensar a partir do lugar da contestação e da criatividade.
O artigo se organiza em quatro movimentos principais. Primeiro, discutimos
as noções de Antropoceno e Capitaloceno, problematizando suas implicações
políticas e epistemológicas. Em seguida, voltamo-nos para cosmologias africanas,
afrodiaspóricas e indígenas, que propõem modos outros de compreender a relação
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entre corpo e natureza. Num terceiro movimento, analisamos a Técnica Silvestre
como prática artística que encarna e reativa essas cosmologias, abrindo caminhos
de resistência, cuidado e criação. Por fim, retomamos o percurso para apontar
como a arte-dança pode atuar como um gesto contracolonial4 diante das crises
ambientais e sociais contemporâneas. E, com os pés arraigados na terra e o olhar
atento ao fluxo da vida, seguimos adentrando o tecido dos saberes que podem
apontar para alternativas outras de existência e bem viver.
Entre a ferida da ruptura corpo-terra e a mercantilização dos fragmentos
Falar em Antropoceno é falar de uma ferida aberta que atravessa corpos e
territórios. Como lembra Ferdinand5 (2022), trata-se da marca de uma ruptura
histórica entre corpo humano e Terra, instaurada pelo “navio colonial” que
transportou não apenas pessoas escravizadas, mas também instituiu, para além
disso, a própria separação entre vida e mundo. Essa ruptura criou uma ecologia da
desconexão: a água deixa de ser fluxo vital e vira recurso a ser controlado; a terra,
antes solo sagrado de sustentação, torna-se matéria-prima; o corpo, antes
dançante e produtivo em harmonia com ciclos naturais, é disciplinado para servir
à exploração. O Antropoceno, nesse sentido, não é apenas uma era geológica, mas
uma narrativa política que denuncia o esgotamento da modernidade e sua
incapacidade de sustentar a vida. Cada gesto humano – plantar, colher, caminhar,
dançar – passa a carregar as marcas de uma história de separação e apropriação.
O Antropoceno não surge como um fenômeno isolado: ele é consequência
de séculos de colonização, escravização e exploração territorial. O “navio colonial”
não transportou corpos africanos e indígenas, como também a imposição de
uma visão do mundo que separa humanidade, corpo e natureza. Territórios foram
apropriados, recursos naturais expropriados e comunidades destruídas,
4 O termo contracolonial’, cunhado por Antônio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo), aponta para diferenciar práticas
de resistência que não se orientam apenas pela reação ao colonialismo, mas pela afirmação de lógicas
próprias de existência.
5 Embora seja a principal referência mobilizada neste estudo, Malcom Ferdinand representa um desdobramento
contemporâneo de uma sólida tradição intelectual caribenha que examinava a formação do mundo
moderno, suas desigualdades e os legados coloniais da plantação. Autores que o antecedem, como Antonio
Benítez-Rojo, Sylvia Wynter, Michel-Rolph Trouillot e Eric Williams, consolidaram esse campo crítico e
evidenciam a longa potência caribenha nesse debate, somando-se, em diálogo mais amplo, a outras
referências do norte global, como Andreas Malm, David Ruccio e Donna Haraway.
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instaurando uma lógica de dominação que converte o mundo em mercadoria. O
corpo humano, principalmente o negro e indígena, passou a ser visto como
instrumento produtivo, e o território, como objeto de exploração, marcando o início
de uma ferida que atravessa gerações e corpos, ainda visível nos desequilíbrios
ambientais e sociais contemporâneos.
No entanto, como alerta Moore (2016), não basta falar em Antropoceno sem
reconhecer que nem todos os corpos participaram da mesma forma dessa
destruição. Bhattacharyya (2018) amplia essa compreensão ao mostrar que o
capitalismo não apenas explora corpos e territórios, mas também organiza a
desigualdade por meio da racialização. As populações racializadas são
frequentemente relegadas a posições de vulnerabilidade, cujas necessidades de
reprodução social e cuidado são invisibilizadas ou instrumentalizadas. Essa lógica
ecoa diretamente na crise ecológica-colonial: a mercantilização da Terra e a
instrumentalização do corpo não são neutras, mas racializadas, estruturando
vulnerabilidades e exclusões diferenciadas.
Assim, o Capitaloceno, se visto uma perspectiva racializada, evidencia como
a mercantilização da vida e da natureza se organiza de forma desigual, afetando
desproporcionalmente corpos racializados, comunidades periféricas e povos
originários. Desastres ambientais, poluição, mineração predatória e acesso restrito
a água potável não são incidentes neutros e naturais, mas resultados de uma
lógica econômica que transforma corpos e territórios em recursos a serem
explorados. Como mostra Bhattacharyya (2018), essa exploração atravessa
também o trabalho reprodutivo invisibilizado, em grande parte feminino e
racializado, reproduzindo vulnerabilidades estruturais e consolidando hierarquias
históricas.
Em territórios periféricos, quilombolas ou indígenas, a apropriação de terras
e recursos naturais impõe deslocamentos, perda de modos de vida e ruptura de
ciclos culturais e ecológicos, revelando a continuidade da violência colonial em
práticas contemporâneas. Paralelamente, as classes dominantes erguem impérios
luxuosos e ecocidas, que as distanciam ainda que de forma ilusória e temporária
das chagas que elas mesmas produzem, pois, sua sobrevivência também
depende da natureza. Assim, a análise do Capitaloceno sob uma lente racializada
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revela que a crise ambiental não é apenas ecológica, mas social e política, marcada
por exclusões e injustiças profundamente enraizadas nas estruturas históricas do
capitalismo e da colonialidade.
Ferdinand (2022, p. 34) sintetiza: “no Capitaloceno, a natureza é reduzida a
recurso, e o corpo humano, a máquina de produção”. A partir disso, o corpo deixa
de ser extensão viva do mundo e torna-se instrumento, a experiência de viver é
convertida em rendimento, e a Terra em mercadoria. O autor nos lembra que,
nesse quadro, a violência vai além do ambiental, configurando-se como estrutural:
desigual, racializada, colonial, atravessando corpos de maneira diferenciada. A
crítica de Krenak (2020) ecoa nesse ponto: a dança cósmica da vida é comprimida
em uma coreografia funcional, medida pela produtividade e pelo lucro, ignorando
ritmos, ciclos e interdependências.
Hoje, essa lógica se manifesta na devastação ambiental, nas monoculturas
agrícolas, na mineração predatória e na mercantilização da água, entre outras
formas. Cidades crescem sobre rios represados, florestas são convertidas em
áreas de produção, e comunidades tradicionais veem seu território e suas práticas
culturais ameaçados. Nesse contexto, corpos e saberes ancestrais são
subestimados: a experiência de plantar, dançar ou simplesmente habitar o mundo
passa a ser medida pela produtividade econômica, ignorando ciclos naturais,
ritmos de vida e interdependência entre seres.
Antônio Bispo dos Santos (2023, p. 63), conhecido como Nêgo Bispo nos
oferece uma contraposição potente. Ao afirmar que “o corpo que dança e o corpo
que planta são o mesmo corpo: ambos se movem no compasso da natureza”, ele
revela que a separação entre humanidade e Terra é uma ficção colonial, necessária
para sustentar a lógica de exploração. A partir desse olhar, os corpos africanos,
afrodiaspóricos e indígenas nunca foram separados totalmente de seus territórios:
lutam para seguir dançando, cultivando e se movimentando em continuidade com
o mundo natural. Aqui, a Terra não é cenário nem recurso: “é parente e guardiã”
(Bispo, 2023, p. 7), corpo expandido. Assim, Bispo (2023) e Krenak (2020) se
encontram nesse entendimento, embora com ênfases diferentes: enquanto
Krenak denuncia a alienação imposta pelo capitalismo e pela modernidade, Bispo
revela práticas e saberes que sustentam a continuidade entre corpo e Terra,
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apontando caminhos de resistência e cuidado.
Essa lógica histórica de exploração também fragmenta o tempo e os ciclos
de vida, impondo ritmos acelerados e lineares que ignoram os ciclos naturais,
sazonais e sociais. O Capitaloceno racializado não apenas transforma corpos e
territórios em recursos, mas desarticula relações de cuidado, memória e
transmissão de saberes entre gerações. Comunidades tradicionais, quilombolas e
indígenas experimentam rupturas nos calendários de plantio, colheita e
celebração, e nos ritmos do corpo e da cultura, evidenciando como a lógica
capitalista impõe temporalidades alienantes que se sobrepõem às
interdependências ecológicas.
Reconhecer essa dimensão temporal é fundamental para compreender a
profundidade da fratura corpo-terra: trata-se de uma violência que atravessa
gerações, fragmenta corpos e culturas, e que pode ser enfrentada pela
revalorização das interconexões entre ciclos naturais, práticas comunitárias e
formas de vida resistentes. Como lembra Krenak (2020, p. 57), “a catástrofe
climática é também uma catástrofe corporal”. Sendo assim, “o cuidado com a
terra começa pelo cuidado com os corpos que nela vivem” (p. 83).
Ao conjugar Antropoceno e Capitaloceno, compreendemos tanto a denúncia
da ruptura quanto a crítica à sua mercantilização. Todavia, não basta constatar a
ferida: é urgente pensar formas de existência que reconectem corpo e Terra,
práticas que resistam à lógica de exploração, que cultivem ciclos, ritmos e
interdependências. Como aponta Krenak (2020, p. 95), “reimaginar o futuro implica
reimaginar a relação entre corpo, território e ecossistema”. Se a ferida do
Antropoceno e a mercantilização do Capitaloceno denunciam a ruptura, é nos
corpos que dançam com a Terra como ensinam os saberes africanos,
afrodiaspóricos e indígenas que se revelam caminhos de reconexão e resistência.
Caminhos de criação de mundos em que viver e cuidar são inseparáveis.
Entre corpos e cosmos: saberes africanos, afrodiaspóricos e indígenas
As cosmopercepções africanas, afrodiaspóricas e indígenas nos convidam a
reimaginar o mundo a partir de uma lógica de interdependência, reciprocidade e
sacralidade. Uma perspectiva onde o corpo e Terra nunca se separam. Ao contrário
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das perspectivas coloniais e capitalistas, que consolidaram a ruptura e a
mercantilização da vida, essas epistemologias ancestrais afirmam uma
continuidade ontológica entre seres humanos, elementos naturais e forças
cósmicas.
Como aponta Martins (2021, p. 49), diversos pensadores africanos destacam
a interação constituinte de seres humanos e meio ambiente, “os anelos entre as
dimensões física, material e a espiritual, a ideia de que vida e existência
significativa em estado mineral, na fauna, na flora, nos gases e nas águas, em seus
vários estados, em todos os seres, entre eles os humanos.” Esta perspectiva revela
a densidade de uma rede de significados e saberes que atravessaram o Atlântico
e moldaram práticas e resistências na diáspora africana, nos modos de sentir, criar
e cuidar do mundo.
O pensamento africano e suas epistemologias corporais se estruturam em
torno da força vital, conceito que articula coletividade, ancestralidade e natureza.
Cunha Jr. (2010, p. 26) ressalta que “no Ubuntu, temos a existência definida pela
existência de outras existências. Eu, nós, existimos porque você e outros existem”.
Nesta lógica, o corpo não é apenas um instrumento de experiência individual. É
um elo em um continuum de relações com outros corpos, com a Terra e com os
ancestrais.
A sacralidade da Terra é central nessa visão. Fu-Kiau (2018, p. 8) afirma que
“nós somos ‘sagrados’ porque nosso mundo natural é sagrado. Nossas moradias
e nossos pertences são sagrados porque são feitos de matérias primas tiradas do
mundo natural, do mundo sagrado”. O autor também descreve que cada elemento
natural é um pacote de essências e remédios organizado por Kalûnga, a energia
superior que permeia todos os seres e o cosmos (Fu-Kiau, 2018, p. 1). Desse modo,
a floresta, a água, o solo, cada cristal e cada árvore são portadores de energia vital
e dignidade própria. A destruição ambiental não se trata apenas de um impacto
ecológico; é um ataque à sacralidade do mundo, um rompimento da rede de vida
que mantém a existência. A atenção cuidadosa às florestas, rios e animais, como
aponta Fu-Kiau (2018), não é ritualismo simbólico, mas um ato ético-pragmático
de preservação do equilíbrio cósmico.
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Nesse contexto, a ética, a estética e o cosmológico se entrelaçam, como
enfatiza Martins (2021, p. 70): “Um dos pressupostos dos valores éticos nas
culturas negras é a de que os bens culturais, em última instância, são
transmissores de energia vital”. Assim, “para adquirir a categoria de belo, que
ser necessariamente um benefício do e para o coletivo. [...] O estético [...] é o que
é ético, não sendo assim exaltado como predicado a ser precificado, mas, sim,
como uma derivação de seu valor para o social”. A arte, a dança e o canto
emergem, nessa perspectiva, como práticas de reconexão e transmissão de
saberes, em que a dimensão estética é inseparável da dimensão ética e vital,
“visando a suas necessidades de equilíbrio social, postura e postulado da ética e
da sophya que as informam” (Martins, 2021, p. 70).
Dessa forma, a transmissão de saberes e energias vitais também se pela
arte, que se manifesta como dádiva ética e estética (Martins, 2021, p. 212-213). O
corpo que dança, o canto que ecoa e os gestos ritualizados atuam como canais
de força vital, conectando o humano ao divino, ao natural e ao ancestral.
Thompson (1984, p.9) enfatiza que “a radiação dos olhos, a magnificação do olhar,
refletem ashé, o brilho do espírito”. Assim, cada expressão corporal ou artística é
ao mesmo tempo prática estética, ética e pedagógica, transmitindo valores e
memória coletiva. A separação entre vida e arte, tão comum na modernidade
ocidental, é inconcebível neste contexto; música, dança e ritual são modos de
habitar o mundo e sustentar a vida.
Essa visão se expressa de forma viva e prática nas tradições6 corporais.
Martins (2021, p. 210) descreve o uso do corpo como vetor de memória e
transmissão: “são rastros de memória [...] ressemantizando nossas rotinas,
ampliando os fulcros de todos os seres, expandindo as experiências estéticas,
sensoriais e epistemológicas de nossos incompletos saberes.” Aqui, o gesto
corporal é inseparável da cosmologia: cada movimento transmite memória,
cuidado e ligação com os ciclos da vida.
6 Por tradição”, o estudo se apoia sobre as ideias de Mestre Didi (apud Santos, 2002, p. 112), não como “algo
congelado, estático, que aponta para à anterioridade ou antiguidade, mas aos princípios míticos inaugurais
constitutivos e condutores de identidade, de memória, capazes de transmitir de geração a geração
continuidade essencial e, ao mesmo tempo, reelaborar se nas diversas circunstâncias históricas incorporando
informações estéticas que permitem renovar a experiência, fortalecendo seus próprios valores”.
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O conceito de tempo espiralar, também destacado por Martins (2021, p. 207),
reforça esta lógica de interconexão: “O tempo espiralar resulta de múltiplas
imbricações, [...] todos os seres e todas as coisas [...] garantindo a sobrevivência
de todos os seres e do cosmos, em sua integralidade e totalidade”. Diferente da
linearidade temporal moderno-colonial, a temporalidade permite que passado,
presente e futuro dialoguem em práticas vivas. É a memória ancestral que orienta
decisões cotidianas e práticas artísticas, mantendo a continuidade da vida.
Nos saberes indígenas, a memória e a presença do mundo natural estão
imbricadas em todas as práticas cotidianas, artísticas e espirituais. Martins (2021,
p.144) descreve que os cantares dos Maxakali, por exemplo, asseguram a
sobrevivência da “memória das árvores, dos animais, dos insetos, das flores; os
sons dos pássaros, os aromas das matas, toda uma variedade de encantos. [...]
Para os Maxakali, qualidades do humano transitam entre várias espécies animais
e vegetais distintas”. Nessa perspectiva, o humano não é um agente isolado, mas
um ponto de intersecção em um contínuo que inclui todas as formas de vida, onde
a experiência estética, o canto, a dança e a alimentação tornam-se meios de
habitar o cosmos, preservando e reproduzindo a memória coletiva dos ancestrais
e das espécies com as quais compartilhamos existência.
A memória indígena resiste à lógica contemporânea do esquecimento e da
mercantilização das lembranças. Como afirma Huyssen (2000, p.31), para muitos
pensadores, atualmente, codificar a memória se equipara ao esquecimento, uma
vez que o “marketing da memória gera apenas amnésia”. Sob essa ótica, Martins
(2021, p. 151) aponta que “numa época em que lembranças se transformam em
souvenirs, comprados imediatamente, esquecidos e substituídos por agenda e
agenciamento culturais do turismo estéreo e do consumismo”, essas memórias
refazem “os tempos curvos da memória e da história e imprime nos seres a
permanência desejada. Assim é que a mata pulsante, de arejada, animada, livre
[...], veste-se de sons, aromas, sabores, cores e risos”. Dessa forma, práticas orais,
corporais e performáticas não apenas evocam o passado, mas o recriam no
presente, imprimindo nos corpos a permanência desejada da vida e da natureza.
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Nessa perspectiva, a memória do conhecimento se recria e se transmite pela
oralitura da memória, ou seja, pelos repertórios performáticos orais e corporais,
hábitos cujas técnicas e procedimentos de transmissão são também meios de
criação, passagem, reprodução e preservação dos saberes. Martins (2021, pp. 149-
150) afirma que as performances, festejos e cerimônias são ambientes férteis de
preservação da memória “expressos no e pelo corpo [...], portais de inscrição e
grafias, instituindo e transmitindo os saberes de vária ordem, entre eles os
estéticos e filosóficos. [...] O que no corpo e na voz se repete é também uma
episteme”.
Rosângela Tugny (2011, p. 50–51) reforça que “as coisas e os agentes no
universo do pensamento indígena são o resultado da possibilidade de mirada e
subjetividades que povoam o cosmos, são acima de tudo posições”, mostrando
que cada gesto, cada canto e cada movimento corporal constitui um modo de
conhecimento, uma ética e uma cosmopolítica, conectando humanos, não-
humanos e forças ancestrais em uma teia viva e contínua.
Em suma, os saberes africanos, afrodiaspóricos e indígenas nos apresentam
alternativas concretas ao paradigma destrutivo dos diagnósticos da crise
ambiental. Eles nos lembram que corpo, Terra e cosmos são inseparáveis, e que a
arte, a dança e os gestos cotidianos não são apenas expressões estéticas, mas
práticas de cuidado, resistência e transmissão de memória. O corpo que dança
com a Terra, o gesto que respeita a floresta, a atenção às forças vitais, tudo isso
constitui uma prática política e epistemológica. Uma ética que reconecta
cosmologicamente seres humanos à vida e ao mundo de modo profundo e
transformador.
É nesse terreno que a Técnica Silvestre se insere, articulando ancestralidade,
ética, estética e resistência, expandindo o conhecimento corporal para habitar o
mundo de outro modo com cuidado, reciprocidade e consciência política. O
corpo que se move na Técnica Silvestre não apenas dança; ele dialoga com os
ancestrais, com a Terra, com o cosmos, celebrando a reciprocidade e a força vital
que nos sustenta.
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Técnica Silvestre: uma ecopoética do corpo-universo
A Técnica Silvestre, desenvolvida pela dançarina, professora e coreógrafa
Rosângela Silvestre, desde 1982, emerge como uma prática corporal que
transcende a dimensão técnica para constituir uma epistemologia e ética do corpo
profundamente enraizadas em saberes afro-diaspóricos e indígenas. Sua origem
está alinhada à busca por uma corporeidade que resiste às lógicas colonizadoras
e capitalistas. O corpo é pensado como um universo, composto pela natureza, que
se fundamenta nos elementos naturais terra, água, fogo e ar para fundar o
movimento e a consciência na técnica. Rosângela Silvestre, que cresceu em
território indígena, diz que uma de suas memórias mais longevas é de ver seu avô
saudar as quatro direções todas as manhãs no terreiro memórias que marcaram
profundamente sua relação com o corpo, os elementos naturais e a
cosmopercepção, fundando práticas centrais da técnica.
A Técnica Silvestre reflete um ecossistema corpo-cultural: a cultura afro-
brasileira: Nesse ‘afro’, inscrevem-se as epistemologias africanas trazidas pela
diáspora forçada; no ‘brasileiro’, os saberes indígenas originários que já resistiam à
escravização antes mesmo da chegada dos primeiros africanos em solo brasileiro.
Além disso, estrategicamente, Rosângela ressignifica sistemas e estruturas de
dança europeias e estadunidense, desenvolvendo uma técnica hibrida que circula
como água por diversos espaços e cenários artísticos.
Dessa encruzilhada, onde ancestralidade e reinvenção se entrelaçam e
resistem à pressão colonial, a Técnica Silvestre funda seu gesto insurgente,
mantendo vivas essas tradições na corporalidade e no movimento. Assim, "ao
desafiar normas hegemônicas e ampliar perspectivas, o elo entre raízes
ancestrais e práticas contemporâneas transcende o mero vínculo estético,
revelando-se como um potencial transformador" (Rezende, 2024, p. 237).
Nas práticas da Técnica Silvestre, a terra é o elemento que guia o equilíbrio,
a força, a estruturação e enraizamento; água é o elemento que guia as dinâmicas
de fluidez; o fogo guia as dinâmicas de precisão, velocidade e presença; e o ar guia
as práticas de leveza, espirais e expansão. Esses elementos não são meras
metáforas, mas qualidades dinâmicas concretas que orientam a prática,
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instaurando uma ecopoética7 do movimento. Como nos lembra Ferdinand (2022,
p. 83), “a terra não é pano de fundo: ela co-constitui o que somos e como nos
movemos”.
A técnica incorpora uma cosmopercepção afrodiaspórica e indígena,
estabelecendo uma relação dialógica entre corpo, ancestrais, ciclos da vida e
forças da natureza. Esta perspectiva desestabiliza a dicotomia cartesiana entre
humano e ambiente, reafirmando a coabitação e a interdependência. Em
decorrência disso, é possível pensar a Técnica Silvestre como uma ecopoética
performativa que, por meio da prática corporal, cria um espaço-tempo de escuta
e conexão com a Terra, um entrelaçamento que só pode ser quebrado a partir da
insurgência política e da reinvenção dos modos de existência negra e indígena.
Ao tratar os elementos da natureza como forças vivas e não como
abstrações, a Técnica Silvestre reconhece que o corpo é atravessado por fluxos,
resistências e energias que o ligam à própria dinâmica da Terra. Essa concepção
aproxima-se de uma ontologia relacional: humano e natureza não ocupam lugares
separados, mas partilham uma mesma trama de existência. Como aponta Arturo
Escobar (2014), ontologias relacionais emergem de práticas que entendem
humanos e não humanos como parte de uma mesma rede de existência, o que
ressoa diretamente na forma como a Técnica Silvestre concebe corpo e elementos
naturais em co-constituição.
Nesse sentido, a Técnica Silvestre convida o corpo a experimentar o
movimento como uma conversa com a água, uma negociação com o ar, uma
aliança com a terra e um pacto com o fogo relações que exigem escuta,
humildade e reciprocidade. Tal abordagem se distancia das lógicas coreográficas
que buscam dominar ou disciplinar o corpo para fins de espetáculo ou
produtividade, reafirmando-o, em vez disso, como um organismo sensível,
implicado nos ciclos e temporalidades do mundo natural.
Outro ponto crucial é o diálogo entre a Técnica Silvestre e a crítica ao
Antropoceno e Capitaloceno, apresentada por Malcom Ferdinand em Ecologia
7 Aqui, usa-se o termo ‘ecopoética’ não apenas como produção estética inspirada pela natureza, mas como
prática artística que propõe modos de existir e resistir em interdependência com o meio ambiente.
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Decolonial (2022). Segundo o autor, “o Antropoceno revela a ferida de uma relação
rompida entre o corpo humano e a Terra” (2022, p. 27), explicitando o
descolamento histórico que levou à crise ecológica contemporânea. A Técnica
Silvestre, nesse sentido, se posiciona como uma resposta prática e epistemológica
que busca reconstituir essa ligação ancestral, propondo um corpo que dialoga e
se funde com os elementos naturais, reafirmando sua imbricação na teia da vida.
No horizonte crítico da Técnica Silvestre, a compreensão da Terra vai muito
além de um espaço geográfico ou recurso disponível. Ela pode ser reconhecida
como “parente e guardiã” (Bispo, 2023, p. 47), um sujeito com quem se estabelece
uma relação de respeito e cuidado mútuo. Essa perspectiva reposiciona o corpo
não como um agente isolado, mas como parte intrínseca de uma teia maior de
existência, no qual os ciclos naturais e as forças ancestrais permeiam o
movimento e a consciência corporal. A Terra, assim, é vivida como um território
vivo, um espaço de pertencimento e de memória, em contraposição às narrativas
coloniais que a transformam em propriedade a ser dominada.
A premissa de que “nossos corpos não se separam da terra, porque são feitos
dela e para ela retornam” (Bispo, 2023, p. 41) é central para entender a prática da
Técnica Silvestre como uma ecologia do corpo e do movimento. Como dito
anteriormente, a técnica estabelece uma relação dialógica entre corpo, ancestrais,
ciclos da vida e forças naturais, desestabilizando a dicotomia cartesiana
humano/ambiente. Ela promove, portanto, uma corporeidade simultaneamente
ancorada e móvel, orgânica e histórica, que reafirma a interdependência e a
coabitação com a Terra. Ao reconhecer essa continuidade entre o corpo e a Terra,
a técnica convida à escuta sensível dessas forças, ampliando a noção de existência
para além do indivíduo e incorporando o legado ancestral e a responsabilidade
com os ciclos da vida.
Sob esse prisma, a Técnica Silvestre realiza um gesto político potente ao
reposicionar saberes negros e indígenas como protagonista de uma pedagogia
artístico-ambiental que desafia as estruturas de poder capitalistas e coloniais.
Esteticamente, a Técnica Silvestre propõe um movimento orgânico, que flui com
as qualidades dos elementos e se distancia das formas rígidas e utilitárias da
dança hegemônica, muitas vezes alinhada a um corpo-mercadoria. Como nos
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remete Nêgo Bispo (2023, 79), “as práticas tradicionais não exploram a terra, mas
a cultivam como extensão do próprio corpo”. Assim, politicamente, a Técnica
Silvestre é uma prática insurgente que reafirma a centralidade dos saberes afro-
brasileiros e sua ancestralidade no presente, enquanto pedagogicamente oferece
uma metodologia que estimula a escuta sensível do corpo e do ambiente,
promovendo processos de cura, coletividade e resistência.
Além disso, retomamos a perspectivas de Ferdinand (2022, p. 34) destaca
que “no Capitaloceno, a natureza é reduzida a recurso, e o corpo humano, a
máquina de produção”. Nesse contexto, marcado pela mercantilização da vida e
pela instrumentalização do corpo como máquina de produção, a Técnica Silvestre
se posiciona além da lógica da utilidade e da rentabilidade. Ela se apresenta como
um espaço de multiplicidade, onde cada praticante é convidado a encontrar sua
própria relação com a técnica, seja por meio do autoconhecimento, do lazer, da
cura, da profissionalização artística ou do aprofundamento espiritual. Essa
abertura plural rompe com a ideia de que todo ato corporal deve ser produtivo em
termos econômicos, configurando uma prática que valoriza o cuidado, a
diversidade de sentidos e a liberdade na relação com o corpo e o movimento.
Dessa maneira, a Técnica Silvestre se configura como um contra dispositivo ao
Capitaloceno, afirmando corporeidades que se recusam à lógica da
instrumentalização e produtividade.
A memória e a resistência são eixos centrais da técnica. Com relação a essas
práticas transmissoras dos saberes ancestrais –, Martins (2021, p. 155) observa
que “aqui se instala o contínuo exercício de uma memória cultural dialógica negra”,
que se transcria como um “significante recorrente pelo qual se reatualizam, em
cena, modos de percepção e fabulação de várias matrizes cognitivas e
performáticas africanas e afro-brasileiras”. Esse contínuo exercício permite a
Técnica Silvestre ser, simultaneamente, prática estética, pedagógica e política,
inscrevendo saberes e memórias nos corpos que dançam. O corpo torna-se
campo ativo de resistência, onde memórias de luta e possibilidades de futuro se
entrelaçam contínua e criativamente (Rezende, 2025, p. 230).
Em síntese, a Técnica Silvestre é um gesto de insurgência que, ao reaproximar
corpo, arte e natureza, desafia as narrativas hegemônicas do Antropoceno e do
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Capitaloceno. Ao perceber a natureza como sabedorias que se integram à teia da
vida, essas suas práticas inauguram uma ecopoética performativa que não
somente reconstrói a relação com a Terra, mas igualmente propõe uma pedagogia
de cuidado, coletividade e reparação histórica. O corpo não apenas dança: ele se
equilibra na terra, flui com a água, aquece com o fogo e se eleva com o ar,
tornando-se torna “uma dádiva e uma oferenda” (Martins, 2021, p. 73), que aponta
caminhos para habitar o mundo de forma sensível, política e ancestral.
A Técnica Silvestre, portanto, não é apenas um método de organização do
movimento, mas um território vivo de encruzilhadas. Nela, corpo e natureza se
tornam aliados insurgentes, guardando memórias de povos que, mesmo
atravessados pela violência colonial, criaram caminhos de sobrevivência e
fabulação. Cada gesto carrega sementes de mundos possíveis: dançar é
reflorescer o que foi mutilado, é insistir na vida onde o capital e a colonialidade
buscaram a morte. Nesse sentido, o corpo em dança na Técnica Silvestre se
inscreve como ecologia política e espiritual, fabulação ancestral que insiste em
existir e reinventar-se em movimento.
Da ferida à reconexão com a Terra: colhendo os frutos do percurso
A análise da Técnica Silvestre e dos saberes negros e indígenas revela que o
corpo é, ao mesmo tempo, memória, território e possibilidade. Ele não só habita o
mundo, como também dialoga com ele, entrelaçando movimento, ancestralidade
e elementos naturais em uma ecopoética que resiste às narrativas coloniais em
relação ao meio ambiente. A corporeidade, neste contexto, emerge como campo
de insurgência e experimentação, capaz de inscrever histórias, questionar
hierarquias e propor modos de existência alternativos.
As respostas mais potentes para a reconexão entre corpo, cultura e natureza
muitas vezes emergem na margem, justamente nos territórios historicamente
oprimidos. Mulheres negras, comunidades indígenas, quilombolas e coletivos
periféricos têm elaborado saberes, práticas e poéticas que nos mostram caminhos
de resistência, cuidado e criação de mundos plurais. A Técnica Silvestre, criada por
uma mulher negra de origem indígena e forjada na cultura afro-brasileira,
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exemplifica essa potência: saberes ancestrais fundam práticas contemporâneas
que contestam estruturas coloniais e capitalistas, propondo uma ética-estética do
corpo profundamente conectadas com a Terra.
Diante das feridas abertas pelo Antropoceno e Capitaloceno, as artes vivas
surgem não apenas como espelhos do mundo, mas como ferramentas de
invenção de outros mundos possíveis. Elas carregam a potência de comunidades
que sistematicamente resistem à opressão: mulheres negras, povos indígenas,
quilombolas, coletivos periféricos. É nesses territórios de criação que se ensaiam
respostas urgentes, práticas e imaginativas, que reconectam corpos, territórios e
ciclos da vida.
As práticas do corpo e da cena vão além de representar a natureza ou a
cultura: elas as conformam, participando ativamente da construção do imaginário
coletivo sobre a relação entre humanidade, corpos e mundo natural. Como nos
recorda Martins (2021, p. 73): “Como estilo cultural, essas práticas incorporam e
ilustram valores, são um modo de apreensão e interpretação do mundo, e ainda
um meio de permanência e de pertencimento dos indivíduos por elas se inscrito.”
A partir desse processo, diante da crise ambiental e social, as artes vivas assumem
um papel de relevância: são práticas que podem visibilizar, sensibilizar e articular
novas formas de relação entre os corpos humanos, animais, vegetais e outros,
reconhecendo que viver implica coabitar e cuidar. A dança deixa de ser apenas
expressão estética para tornar-se ação ética, pedagógica e política, capaz de
cultivar escuta, interdependência e imaginação de futuros plurais. Como aponta
Martins (2021, p. 89), o corpo, nas tradições predominantemente orais e gestuais,
não repete, como também institui, interpreta e revisa a ação, fazendo do ato
de dançar uma grafia viva da memória e da resistência.
Nesse sentido, as práticas do corpo e da cena podem, portanto, ser
concebidas como laboratórios de pensamento e criação, nos quais a experiência
estética se entrelaça à responsabilidade com a vida, à reparação histórica e à
experimentação de relações mais justas com o mundo natural. As artes, nesse
sentido, são gestos políticos e ontológicos. Ensinando, dessa forma, a escuta,
sensibilidade e interdependência, permitindo que o corpo aprenda com a água,
dialogue com a terra, negocie com o fogo e se eleve com o ar. Ensaiam modos de
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existir que não se submetem à lógica da exploração e da mercantilização, mas que
celebram a vida em sua pluralidade, cuidam de comunidades humanas e não
humanas e cultivam a memória ancestral como presente e futuro. Cada gesto
artístico torna-se, assim, uma semente de resistência, cada movimento, um
convite à reconstrução de mundos.
A análise reforça que a dança e as artes vivas não devem ser vistas apenas
como expressão artística, mas como dispositivo epistemológico capaz de intervir
nos debates sobre crise ambiental, colonialidade e futuro sustentável. Perguntar,
experimentar e criar artisticamente são formas de resistir e inventar. Perguntar
sobre nossa relação com os corpos, os animais, as plantas, os rios, os ventos, os
ciclos; experimentar maneiras de dançar, cultivar, habitar e narrar essas relações;
criar práticas pedagógicas e estéticas que envolvam e sensibilizem para uma
ecologia de cuidado tudo isso evidencia o papel central das artes na
transformação do mundo.
Como resultado, um exemplo concreto desse movimento se dá nas práticas
da Técnica Silvestre, nas quais a corporeidade se articula com elementos naturais,
saberes ancestrais e pedagogias do cuidado, mostrando como a criação artística
pode efetivamente reconectar corpos, territórios, ciclos de vida e
cosmopercepções. Perceber na natureza guias de movimento e princípios
estéticos é também assumir uma pedagogia ambiental: aprender com os
elementos, ciclos e interdependências do mundo natural funda práticas de criação
e habitação que não se apoiam na ideia da natureza um recurso a ser explorado
até o esgotamento, mas um guia de como se mover e habitar o mundo.
A urgência é clara: não basta olhar para a ferida do Antropoceno e
Capitaloceno. É preciso criar e habitar mundos em que a Terra, a ancestralidade e
a vida em suas múltiplas formas sejam respeitadas. As artes não apenas refletem
o mundo; elas o constituem. E dentro desse movimento de diálogo e cuidado e
nas dinâmicas dessas encruzilhadas, manifesta-se o sentido mais primevo do
termo religião, etimologicamente derivado do latim religare, religar, restituir, reatar,
onde ‘viajam as reminiscências que brilham na luminosidade das forças vitais,
emanando o hálito e os aromas do sagrado que em nós habitam’ (Martins, 2021, p.
213). É no terreno das artes vivas comprometidas com o bem viver multiespécies
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que florescem caminhos de reconexão entre corpos e cosmos.
É nesse fluxo que reside a potência das artes: não apenas expressar o mundo,
mas habitar, transformar e reinventar mundos plurais, interdependentes e
colaborativos. Ao transformar corpos, relações e territórios, ensinam modos de
existir baseados na escuta, na interdependência e na memória ancestral,
mostrando caminhos para outros mundos possíveis. É na prática das artes vivas,
na dança com a vida e na criação desses mundos possíveis, que se ensaia a
reconstrução de relações justas, plurais e sustentáveis entre a humanidade e a
natureza.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
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