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Solos negros nas escolas:
Teatro Negro na formação de professores
José Jackson Silva (Jackson Tea)
Para citar este artigo:
SILVA, José Jackson. Solos negros nas escolas: Teatro
Negro na formação de professores.
Urdimento
Revista
de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 56,
dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0121
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Solos negros nas escolas: Teatro Negro na formação de professores
José Jackson Silva (Jackson Tea)
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-24, dez. 2025
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Solos negros nas escolas1: Teatro Negro na formação de professores
José Jackson Silva (Jackson Tea)2
Resumo
Neste artigo, abordaremos a manifestação das epistemologias negras na jornada
pedagógica do projeto Solos Negros nas Escolas no ano de 2023, iniciativa que visa
valorizar e compartilhar os fundamentos da Lei 10.639/03 na Pedagogia do Teatro.
Os procedimentos adotados nesta iniciativa visam à participação ativa dos
estudantes, promovendo o protagonismo discente na construção coletiva do
conhecimento, em sintonia com valores civilizatórios afro-brasileiros. Dessa forma,
o Solos Negros promove uma formação docente que vai além da mera reprodução
de conteúdos, incentivando a reflexão, a criatividade e o compromisso com uma
educação antirracista.
Palavras-chave
: Teatro Negro. Educação antirracista. Formação de professores.
Black monologues in schools: Black Theater in teacher education
Abstract
In this section, we will address the manifestation of black epistemologies in the
pedagogical journey of the Solos Negros nas Escolas project (Black Monologues In
Schools) in the year 2023, an initiative that aims to value and share the foundations
of Law 10.639/03 in Theater Pedagogy. The procedures adopted in this initiative aim
at the active participation of students, promoting student leadership in the collective
construction of knowledge, in tune with Afro-Brazilian civilizing values. In this way,
Solos Negros promotes teacher training that goes beyond the mere reproduction of
content, encouraging reflection, creativity and commitment to anti-racist education.
Keywords
: Black Theater. Antiracist education. Teacher training.
Unipersonales de Negros en las escuelas: Teatro de y por negros en la formación de
profesores
Resumen
En este artículo, abordaremos la manifestaciones de las epistemologías negras en
el recorrido pedagógico del proyecto Unipersonales de negros en las escuelas en el
año 2023, iniciativa que tiene como objetivo valorar y compartir los fundamentos de
la Ley brasileira, 10.639/03, en la Pedagogía de Teatro. Los procedimientos adoptados
en esta iniciativa apuntan a la participación activa de los estudiantes, promoviendo
el protagonismo estudiantil en la construcción colectiva del conocimiento, en línea
con los valores civilizadores afrobrasileños. De esta manera, Unipersonales de negros
en las escuelas promueve una formación docente que vaya más allá de la mera
reproducción de contenidos, incentivando la reflexión, la creatividad y el
compromiso con la educación antirracista.
Palabras clave
: Teatro de Negros. Educación antirracista. Formación docente.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Ana Lívia Mendes de Sousa. Doutorado em Ciência da Informação
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestrado em Ciência da Informação pela UFPE. Graduação em
Biblioteconomia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Campus Cariri.
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em Artes Cênicas pela
Universidade Nova de Lisboa (UNL), Bacharelado em Teatro pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor adjunto
do departamento de Artes Cênica da Universidade de Brasília (UnB). jacksontea@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8198675468922241 https://orcid.org/0000-0003-3255-8001
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Introdução
Todos os nossos rituais visam cultuar nossas divindades, tendo como
consequência a aquisição de àse. A palavra àse em nossa religiosidade
passou a ter vários significados: o local de culto tem esta denominação
(amanhã vou para ao àse); a resposta recebida quando se deseja algo de
bom para o outro, como se fosse “que assim aconteça”; tornou-se até a
representação da música baiana- axé music”. Mas para os iniciados em
candomblé, àse significa, principalmente, força, poder, energia. E este é o
objetivo maior do iniciado, adquirir cada vez mais àse, para melhor
praticar a lei Universal do serviço, para melhor servir ao mundo (Mãe
estela de Oxóssi) (Santos, 2010).
No ano de 2003, o então presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula
da Silva, promulgou a Lei 10.639/03, que instituía as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições de
ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial,
por estabelecimentos que desenvolvem programas de formação inicial e
continuada de professores.
Decorridos vinte anos desde a promulgação da Lei, percebe-se que seus
efeitos foram, em grande parte, dissimulados nos planos político-pedagógicos dos
cursos das universidades brasileiras, sendo muitas vezes relegados a disciplinas
optativas ou a atividades correlatas à cultura brasileira. Essa constatação torna-se
mais evidente ao considerarmos o contexto histórico de apagamento e resistência
que marca a trajetória do povo negro no Brasil, bem como a relutância das
estruturas educacionais, historicamente excludentes, em incorporar de modo
efetivo as epistemologias negras e indígenas em seus currículos.
No entanto, apesar das inúmeras dificuldades para transformar essas
estruturas e atender às exigências da legislação, observa-se um movimento
singular, especialmente protagonizado por professores negros formados nas
últimas duas décadas, que atualmente lecionam nas universidades brasileiras.
Destacamos aqui as iniciativas do projeto Solos Negros nas Escolas, que busca
valorizar e compartilhar metodologias didáticas negrorreferenciadas no curso de
Artes Cênicas da Universidade de Brasília, com a finalidade de contribuir para uma
formação docente mais atenta às questões históricas e culturais da população
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negra e indígena.
O projeto Solos Negros nas Escolas foi criado em 20233, impulsionado pela
iniciativa do professor coordenador, que, poucos meses após assumir sua cadeira
na universidade, percebeu que o departamento não possuía, no seu projeto
pedagógico, nenhuma iniciativa voltada à valorização das culturas negras e
indígenas, direcionada aos estudantes de Licenciatura, conforme determina a Lei
11.645/08 (atualização da 10.639/03), sendo que o departamento abarca três cursos
de licenciatura (diurno, noturno e EAD).
Diante dessa realidade inquietante, decidiu lançar ações que contrariassem
esse cenário ao implementar o referido projeto, singularmente caracterizado por
meio de encenações teatrais em formato de monólogos, aqui marcadas pelo
sinônimo ‘solos’, que foram concebidos para serem apresentados na rede pública
de ensino, tendo como objetivo propiciar um ambiente de formação em que os
estudantes da Licenciatura em Artes Cênicas recebessem estímulos artísticos,
informações estéticas e instruções teóricas sobre o negro na cultura e nos teatros
brasileiros, com a finalidade de garantir aos estudantes os ditames da referida Lei.
Assim, por meio de uma metodologia ativa de criação e mediação cênica, o projeto
foi concebido para ser executado em três etapas, que detalharemos nesta
comunicação.
Figura 1 - Logomarca4
3 Ficha técnica do projeto: Coordenação pedagógica, direção teatral e Iluminação: José Jackson Silva (Jackson
Tea); Preparação corporal: Ivana Motta; Figurino e adereços: Luazi Luango; produção musical: Glauco Maciel;
Produção: Luiza Nugoli; Fotografias: Isaac Batista Alencar; Documentação: Deborah Alves; Colaboração: Prof.
Dra. Kanzelumuka; Estudante bolsistas: Amanda Reis, Annaju Carvalho, Kémelot Nascïmento; Gabriel Matos.
4 A logomarca do projeto foi criada a partir do
adinkraneaonnim
, símbolo de conhecimento, educação ao longo
da vida e busca contínua por conhecimento. Vem do provérbio "Quando aquele que não sabe aprende, ele
passa, a saber". Adinkra são símbolos visuais que se originaram na África Ocidental, especificamente no
Reino de Ashanti, na atual Gana. Fonte: Dados da pesquisa (2025).
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Criação e produção do experimento cênico
Nesta etapa, foi formada a equipe de trabalho, composta por quatro
estudantes negros e negras do curso de Licenciatura em Artes Cênicas,
selecionados por meio de chamada pública. Após a seleção, realizaram-se
reuniões para definir a dramaturgia, o conceito e o projeto de encenação, seguidas
de atividades de preparação corporal, criação de cenas e ensaios. Paralelamente,
foi elaborado o cronograma de execução, previamente estabelecido para um
período de nove meses. Em seguida, ocorreu a fase de produção, na qual foram
escolhidas as escolas parceiras do projeto.
Os primeiros encontros da equipe com o projeto foram estabelecidos de
modo que todas e todos pudessem receber os mesmos estímulos para a criação,
começando com uma pergunta geradora: “quando você se descobriu
negro/negra?” As respostas resultantes dessa indagação alargaram as margens de
possibilidades argumentativas e reflexivas para todos que estavam no projeto e
estabeleceu pontes de intimidade, pertencimento e coletividade (indispensáveis a
uma equipe de criação cênica).
Na sequência, o coordenador propôs que cada um deles lesse o compêndio
Dramaturgia Negra
, organizado por Júlio Ludemir e Eugênio Lima, publicado pela
FUNARTE em 2018, e escolhessem os textos que mais chamassem a atenção.
Neste livro encontramos 16 peças teatrais escritas por diversas dramaturgas e
dramaturgos negros brasileiros: Grace Passô, Oliveria e Rodrigo França, dentre
outros. Destacamos esses três autores devido a escolha das obras nomeadas
pelos estudantes, a saber:
Vaga Carne, Farinha com Açúcar e O Pequeno Príncipe
Preto
.
A seleção de cada um deles foi definida após leituras coletivas para juntos
ouvirmos, conhecermos, defendermos e, cada participante, nomeasse seus
monólogos a serem encenados. Nesta etapa, ficou definido que Annaju Carvalho
atuaria na Vaga Carne; Kémelot Nascïmento em
O Pequeno Príncipe Preto
(que em
sua adaptação passou a se denominar
O Pequeno Príncipe Negro
); e Gabriel Matos
lidaria com o
Farinha com Açúcar
. a quarta participante, Amanda Reis, optou
por não tomar para si nenhuma daquelas dramaturgias, pois queria encontrar
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algum mote para a criação do seu percurso criativo, e assim foi feito, dando início
a uma jornada de pesquisas, encontros e obstáculos, para além do que estavam
predefinidos no projeto, subscrito na dramaturgia Maria Atravessa o Tempo, de sua
autoria5.
Os processos de criação dos espetáculos foram estruturados e divididos,
metodologicamente, seguindo uma sequência: Escolha do texto Þ Trabalho de
leitura do texto selecionado Þ Projeto de encenação Þ Trabalho corporal Þ
Marcação de cenas Þ Preparação dos elementos visuais Þ Produção Þ
Apresentações nas escolas. Sendo que todas as etapas do projeto deveriam
adequar-se ao período entre abril e novembro, nove meses.
Ao prever tal organização mencionada acima, a coordenação ainda não
compreendia que os estudantes careciam de referenciais históricos e culturais
sobre o Teatro Negro no Brasil, pois confiava que esse assunto havia sido tratado
nas aulas teóricas do curso; ledo engano. Qual não foi a surpresa ao indagá-los
sobre Abdias Nascimento6 e perceber que jamais haviam ouvido falar dele, nem
tampouco do Teatro Experimental do Negro, sendo que um dos estudantes,
Gabriel Matos, estava no último ano do curso. Como destaca um dos estudantes:
Paralelamente ao trabalho de corpo, Ivana e Jackson nos propuseram um
verdadeiro letramento racial. Estudamos sobre o T.E.N. (Teatro
Experimental do Negro), conversamos sobre nossas experiências, como
nos vemos e nos colocamos no mundo, vimos vídeos de espetáculos
teatrais pretos, entendemos a magnitude da grandeza de Abdias
Nascimento. Conteúdo este, devo tristemente dizer, ignorado nas
cadeiras teóricas do departamento de artes cênicas, até aquele
momento. Esse processo teórico foi importante para entendermos a
grandeza do que estávamos fazendo.7
5 De maio a junho de 2023, as estudantes participaram de um curso de extensão intitulado Inscritas Negras:
Friccionando Nossas Histórias,
Fortalecendo Subjetividades
, ministrado por Tuanny Pereira de Araújo,
mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes cênicas da Universidade de Brasília- PPGCEN,
culminando com a escrita da dramaturgia
Maria Atravessa o Tempo
, autoria de Amanda Reis, peça que é
composta a partir da fricção da obra de três autoras negras: Conceição Evaristo no poema “Maria”; Ana Maria
Gonçalves, no Livro “Um defeito de Cor”; e Lívia Prata, no livro “Maria Felipa - uma heroína baiana: A história
ilustrada da heroína da Independência do Brasil na Bahia”.
6 Abdias Nascimento (1914-2011), poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico e ativista pan-africanista, fundou
o Teatro Experimental do Negro e o projeto Museu de Arte Negra. Suas pinturas, largamente exibidas dentro
e fora do Brasil exploram o legado cultural africano no contexto do combate ao racismo. Professor Emérito
da Universidade do Estado de Nova York, ele foi deputado federal, senador da República e secretário do
governo do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.geledes.org.br/tag/abdias-do-
nascimento/).
7 Depoimento da estudante Kémelot Nascïmento, participante do projeto, em seu relatório final.
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Devido aos motivos relatados, compreendi, na função de professor mais do
que de coordenador e diretor cênico do projeto, que deveria dar um tempo na
organização prévia e, ainda que sumariamente, apresentá-los os principais
referenciais históricos, estéticos e teóricos daquilo que estávamos chamando de
Teatro Negro, compreendendo-o mesmo através da definição estabelecida pela
professora Evani Tavares:
Teatro Negro é um conjunto de manifestações espetaculares negras,
originadas na diáspora, e que lança mão do repertório cultural e estético
de matriz africana como meio de expressão, de recuperação, de
resistência e/ou afirmação da cultura negra. Este teatro pode ser
classificado a partir de três grandes categorias: uma primeira, que,
genericamente, denominaremos performance negra, abarca formas
expressivas, de modo geral, e não prescinde de audiência para acontecer;
a segunda categoria (também circunstancialmente definida), teatro de
presença negra estaria mais relacionada às expressões literalmente feitas
para serem vista por um público, de expressão negra ou com a sua
participação; e a terceira categoria, teatro engajado negro, diz respeito a
um teatro de militância, de postura assumidamente política (Lima, 2010,
p. 43).
Perspectivas que os estudantes observaram na criação do Teatro
Experimental do Negro em 1944 (RJ), no Bando de Teatro Olodum8 1990 (BA) e no
coletivo cênico NATA de Alagoinhas (BA), que tem na sua diretora uma
pesquisadora instigante, a defender a tese “Teatro Preto de Candomblé” (Barbosa,
2021). Três propostas estéticas e narrativas diferentes, situadas em contextos
históricos próprios, porém unidas por princípios sociais, artísticos e educacionais
comuns: dramaturgias autorais; promovem um diálogo intenso com a cidade;
destacam o protagonismo de narrativas negras; priorizam a pesquisa de atrizes e
atores como base metodológica; valorizam o coletivo como espaço de resistência
e luta; reconhecem a partilha como herança ancestral; compreendem a arte como
instrumento de transformação social; e adotam uma perspectiva afrocentrada
como orientação ética na criação cênica.
Tais demarcações de Teatro Negro, observadas nos coletivos mencionados,
8 Companhia negra mais longeva da história do teatro brasileiro, o Bando de Teatro Olodum nasce em 17 de
outubro de 1990, em Salvador - BA, a partir de uma parceria entre o diretor Márcio Meirelles e o Grupo
Cultural Olodum. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupos/80525-bando-de-teatro-
olodum.
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estão ancoradas na responsabilidade social que as artes cênicas negras tomam
para si no intento de estabelecer novos imaginários e suplantar perspectivas
morais, acríticas e coloniais que estão imbricadas no DNA do povo e do teatro
brasileiro, instituindo, portanto, um teatro politicamente engajado com as
questões sociais atinentes ao povo negro.
Notamos que o cenário que suporte para que essas manifestações
artísticas negras na cena brasileira, advém da resistência às condições estruturais
da sociedade fundamentadas no racismo, constantemente praticado na esfera
pública, por meio de programas institucionais; e o Teatro Negro, por sua vez, surge
como contraponto para refletir a sociedade, reivindicar o fim do racismo e anunciar
novas expectativas artísticas para a cena brasileira.
Além de demarcarmos o território teórico, apresentamos aos estudantes os
feitos da coreógrafa e bailarina Mercedes Baptista, ela que foi a primeira bailarina
negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, pioneira em modernizar as danças
brasileiras ao incluir as claves das danças dos orixás em seu repertório de
coreografias.
Ressaltamos que esse diálogo entre o Teatro e a Dança Negra, como território
epistêmico perseguido por nós no projeto, está fundamentado no entendimento
partilhado por muitos teóricos das artes cênicas, dentre eles, destacamos Leda
Maria Martins, que, nas suas formulações, afirma que nas artes cênicas negras, o
corpo é constituído por um conjunto de atividades performativas delineadas por
poéticas criativas em diálogos dramaturgias e memórias ancestrais:
Englobando movimentos, sonoridades e vocalidades, coreografias,
gestos, linguagens, figurinos, pigmentos, ou pigmentações, desenhos na
pele e no cabelo, adornos e adereços, grafismos e grafites, lumes e
cromatismos, que grafam esse corpo/corpus, estilisticamente como
locus
e ambiente do saber e da memória (Martins, 2021, p. 79).
Em tal compreensão, notamos que os corpos dos atuantes negros preservam
suas mais recônditas memórias ancestrais (coletivas) e que necessitaríamos
retornar a elas para vislumbrar futuros possíveis, contidos nas pesquisas que
iríamos desenvolver ao longo do Solos Negros. Como veículo para acessar esse
entendimento corporal, foi-nos ofertado o conceito de “Movências nas rotas de
sankofa”, no qual a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
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da UnB, Ivana Motta (que assinou a preparação corporal dos quatro espetáculos
criando em 2023), nos guiou para o entendimento de que “não é tabu voltar atrás
e buscar os movimentos ancestrais que o corpo esqueceu”.
A autora define "movência" como um conceito interdependente de
movimentos, vivências e experiências (mover-vivência-experiência), conectado à
memória e afetos singulares, coletivos e ancestrais. Em sua pesquisa, explora a
filosofia Sankofa, originária dos povos Akan9, que enfatiza o retorno ao passado
ancestral para impulsionar avanços futuros.
A filosofia Sankofa é trazida como uma rota-ação, potência para o
exercício político, crítico e criativo de memorar, ainda que com dores e
tensões. Adentro essa rota também em busca de compreensões em um
processo de revisão histórica e justiça epistêmica. [...] concluo então que
este nome, na verdade, diz respeito a um movimento que tenho feito na
vida e nas danças em fluxos atemporais de encontros com saberes das
heranças africanas que me agenciam de diferentes formas (Motta, 2022,
p.14).
Esses conceitos que permeiam sua pesquisa ampliaram ainda mais o
entendimento coletivo sobre as possibilidades cênicas do corpo negro em
diáspora. Partindo, então, das perguntas geradoras: Quais corpus estão contidos
nesse corpo da cena negra? Qual a síntese cinética dessa movência? Quais passos
são fundamentais de um corpo negro em estado de performance, em estado de
rito, em estado de festa? Quais ritmos devem guiar esse resgate? Quais células
devemos acessar? Quais giros deveríamos girar para acessar tal percepção de
Movência nas rotas de sankofa
”? Intuímos que girar, o giro, a gira10, como o locus
de uma cosmopercepção, seria a nossa base fundante, corroborando com o
pensamento de Inaicyra Falção que afirma:
Pressupondo que o mito presentificado nos eventos ritualísticos pode
exercer influência na criação artística, essa distinção do contexto artístico
9 Os Akan vivem entre o rio Volta e a costa atlântica, no sul e centro de Gana e no sudeste da Costa do Marfim.
Eles incluem um grande número de grupos étnicos, dos quais os mais conhecidos são os Ashanti (Asante)
e os Fanti (Fante). Os Akan compartilham uma língua comum, o Twi, que pertence ao ramo Akan da
subfamília Kwa da família linguística Níger-Congo. Os povos Akan têm uma longa história, que começou por
volta do ano 1000 d.C. com a migração do povo Gbon, falante de Twi, da curva do Níger para o sul, aa
costa de Gana, onde vários reinos foram fundados em sucessão. Disponível em: worldculturesyaleedu
10 A origem do termo “gira” está nos ritos do candomblé e umbanda, em que os movimentos ritualísticos são
apresentados em círculos. As giras são manifestações às entidades nos terreiros. Disponível em:
revistacontinente
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e do religioso possibilita ao artista ter a clareza do sentido de seus gestos
no processo analítico e criativo da sua obra de arte, por meio das
genealogias ritualísticas que carregamos como seres humanos e, em um
segundo momento, da procura pelas narrativas míticas, razão de ser das
tradições, momento este que envolve a construção de imagens e a
percepção de sentimentos, possibilitando uma abertura para um corpo
criativo e imaginativo que articule as matrizes corporais, a memória e sua
expressividade (Santos, 2017, p.105).
Nesse movimento, e sem temer o retorno àquilo que nos pertence como
povo negro, sabedorias que nos foram negligenciadas diante do
embranquecimento colonial, foi decidido que os trabalhos iriam se aproximar das
espetacularidades movidas pelo culto aos orixás11, não sem antes desenvolver uma
sequência de ações denominadas pelo coordenador e por Ivana, de “letramento
corporal”, composta por ensaios-dançantes fundamentados na
Movência nas
rotas de sankofa
: capoeira, samba de roda, côco, maracatus, hip-hop, culminando
na dança dos orixás. Este processo foi necessário, pois os referenciais de negritude
de pelo menos um dos estudantes, para as expressões artísticas corporais, até
aquele momento, eram apenas a cantora Beyonce.
Com tal arcabouço sedimentado na experiência coletiva, seguimos para o
levantamento de cenas, não sem antes, e simultaneamente à busca pelas
instruções corporais, desenvolvermos os projetos das encenações.
Figura 2 - Preparação corporal com Ivana Motta. Foto: Jackson Tea.
11 Candomblé de nação Ketu, ou Nagô, é uma das expressões mais emblemáticas da herança africana no
Brasil. Originado das tradições iorubás da região de Ketu, atual Nigéria e Benim, o Candomblé Ketu cultua os
orixás divindades que representam a natureza e conectam o ser humano ao sagrado. Disponível em:
www.gov.br/palmares.
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Neste estágio, foi lançado o desafio às estudantes para criarem os seus
projetos de encenação, procurando desenvolvê-los a partir do texto teatral
escolhido e dos atravessamentos conceituais próprios para guiar cada uma de
suas propostas. O entendimento consistia em compreender a singularidade entre
a proposta dos dramaturgos e seus desejos como artistas, a fim de particularizar
aquela encenação ora proposta, utilizando como via a criação autoral de um
conceito. Para tal, partimos do seguinte esquema de perguntas:
O que o texto dramático é para você?
O que você quer dizer com o texto?
Transforme a vontade de comunicar-se em uma metáfora;
Sintetize a metáfora para criar meu conceito.
A definição de conceito, admitida na criação dos Solos Negros como “um
conjunto de características assertivas sobre algo”, foi instigada a partir dos estudos
na área da linguística realizados pelo coordenador, transpostas para as demandas
da criação em artes cênicas, que, metodologicamente, apoia os artistas da cena a
ancorar as expectativas da criação. Seguindo o entendimento de que um conceito
é:
Reunião e compilação de enunciados verdadeiros a respeito de
determinado objeto. Para fixar o resultado dessa compilação
necessitamos de um instrumento. Este instrumento é constituído pela
palavra ou por qualquer signo que possa traduzir e fixar essa compilação.
É possível definir, então, o conceito como a compilação de enunciados
verdadeiros sobre determinado objeto, fixado por um símbolo linguístico
(Dahlberg, 1978, p. 10).
Além de conceber o conceito, foi solicitado aos participantes que
concretizassem em uma imagem propulsora (imagem poética), gerada a partir da
transfiguração do conceito em imagem, que no depoimento da estudante Amanda
Reis, fica explicito:
Quero fazer este trabalho para resgatar, compartilhar e viver a história de
Maria Felipa. Entendendo o meu eu e o dela, em cruzamento como
mulheres negras de épocas diferentes, resgatando nossas histórias nas
escolas, nos palcos e na vida. A metáfora que eu criei foi: “Um corpo-casa
vibrando em direção ao mar”. A partir da metáfora, criamos um conceito
e uma imagem que guiaria os espetáculos, sendo esta a base para a
criação dos atores e atrizes do projeto. O conceito base do projeto da
peça Maria Atravessa o Tempo foi: Ará evoca memórias.12
12 Depoimento da estudante Amanda Reis, participante do projeto, em seu relatório final.
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No andamento do projeto, além do concebido por Amanda Reis, os demais
conceitos gerados por cada um dos participantes foram: Corpo-Ebó da
tempestade (
Vaga Carne
), Cinzas num sopro espiralar (
Farinha com Açúcar
), Raízes
no solo etéreo (
Pequeno Príncipe Negro
).
Estando o projeto definido e estruturado a partir do conceito criado por cada
um deles, pudemos, enfim, dar início às criações cênicas, não sem antes
combinarmos que cada um dos personagens dos Solos Negros teriam um orixá
como seu ancestral próximo, recurso implementado para guiar as investigações
expressivas de cada participante. E, sobretudo, para desmistificar o imaginário dos
estudantes, professores em formação, para compreenderem que os orixás, como
arquétipos de uma cosmopercepção da diáspora africana, antes de serem
classificados como demônios por uma leitura eurocristã, em essência, são
sinônimos das forças da natureza, para as diferentes nações do Candomblé no
Brasil.
Figura 3 - Amanda Reis em
Maria Atravessa o Tempo
. Foto: Isaac Alencar.
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Além disso, nesta etapa, realizamos um laboratório entre as gameleiras que
ficam localizadas no pátio em frente ao Departamento de Artes Cênicas da UnB,
árvore que é sagrada por representar o orixá Iroko (tempo) no candomblé.
Emaranhados em suas grandes raízes, fizemos a transmutação dos encontros
coletivos para os individuais, ao enfatizar o preto na pele, com uma base de carvão
e óleo vegetal (utilizada na manifestação do Negro Fugido13) incrementado de
anilina vermelha na parte interna da boca. Nessa ocasião os estudantes dançaram,
cantaram e se viram, inequivocamente pretos, sorriram e brincaram ao som de
um atabaque tocado mim (coordenador), naquele que seria o último encontro
coletivo entre todos os participantes, pois dali em diante estariam sozinhos nas
salas de ensaio, ou acompanhados apenas do coordenador/diretor cênico.
Para o desenho das cenas, propriamente dito, partimos de mais um
direcionamento diretivo no qual os atores e atrizes teriam que recordar memórias
pessoais e expressá-las em movimentos físicos sintéticos (partituras corporais), a
partir de vinte palavras que elegemos aleatoriamente, para que eles e elas
pudessem dar início as suas criações.
A tarefa era justapor cada partitura corporal ao texto dramático trabalhado,
conectando o trabalho corporal desenvolvido pela preparadora (Movências nas
rotas de sankofa), com as memórias e afetos singulares de cada participante,
fossem elas individuais ou coletivas. Criando, assim, uma noção de escrita corporal
particular, ao partir de si (suas subjetividades e atravessamentos culturais)
permeado pela noção de ancestralidade, visto que: “o corpo como signo cultural
é portador de emoções, sensibilidades, sentido ético-estético, resultado das
relações históricas e sociais” (Santos, 2017). Entendimento amplamente
perscrutado por nós.
Esta etapa foi uma das mais difíceis para as participantes entenderem e
realizarem, que temos uma sincronia ilustrativa entre as falas/ palavras e corpo,
no contexto das artes cênicas brasileiras, ao priorizarmos processos teatrais
13 O Nego Fugido é uma manifestação afrodiaspórica, lúdico-estética e política, sua narrativa aponta para o
processo histórico da escravidão e a respectiva luta pela liberdade, além de questionar o lugar do negro na
estrutura social brasileira. Uma potente ópera popular de rua que acontece mais de 100 anos. O Nego
Fugido é o retrato de um Brasil que resiste através da e da festa. Disponível em:
fotodoc.com.br/ensaio/nego-fugido/
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José Jackson Silva (Jackson Tea)
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-24, dez. 2025
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associadas a interpretações realista/naturalista, na qual o gesto está para ilustrar
as palavras, não para performar com elas. Concepção antagônica ao pensamento
de Leda Maria Martins, para quem o gesto não é primeiramente narrativo, mas
inicialmente performativo, na capacidade de esculpir a memória no espaço e
revelar sua grandiosidade de tempo a partir do movimento.
Figura 4 - exemplos de partitura em cena capitados em fotografias.
Fotos: Isaac Alencar
O que significa dizer que “dançar as palavras” e “cantar os gestos” criam uma
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caligrafia rítmica, que é texto oral, e, assim, a partitura corporal é, em sua escrita
viva, uma realização plena da performance em si. Visto que “nas culturas
predominantemente orais e gestuais, como são as africanas e indígenas, o corpo
é, por excelência, local e ambiente da memória”, explica Martins (2021, p. 89).
Nos Solos Negros, as palavras são (in)corporadas para virar dança, para virar
figura que canta, como os hieróglifos egípcios, que para serem lidos, carecem de
códigos culturais; visto que as performances dos corpos negros, observadas nos
exemplos históricos mencionados anteriormente, transpassam o cotidiano,
suplantam o funcional e se fixam numa linguagem ancestral como referência
comunal, pois:
Conhecer essa herança é uma forma de assumir as múltiplas influências
da tradição, razões de existência e resistência, que nos fortalecem
enquanto identidade e ajudam a compreender melhor a cultura brasileira
como um todo, valorizando as nossas diversidades (Santos, 2017, p.103).
Nesta encruzilhada epistêmica que fomos desvelando ao longo do processo
de criação, tivemos que cronometrar bem o tempo transcorrido e o que
dispúnhamos, pois, a essa altura, estávamos no final do terceiro mês de trabalho
e teríamos o intervalo de um mês, julho a agosto, para iniciarmos a criação das
cenas, que em meados de setembro apresentaríamos o processo à comunidade,
em um evento público da instituição: a Semana Universitária.
Um respiro:
Sim, eu sou o ar
Sim, eu sou o que invade
Sim, eu sou o que dá
O que dá o valor
sem mim não há matéria
Sem mim ideia etérea não se faz presente
Sem mim se do avesso
Não há quem me vê
Nem quem me entende
vou voar
Vou invadir o escuro
Vou trincar o vidro da sua dor
Pra expressar vou usar cada urro
Até que a vaga carne se encha de amor
Letra da música “
Vaga Carne
” composta por Annaju Carvalho para o seu solo,
que pode ser ouvida no QR-code da imagem abaixo
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Figura 5 - Annaju Carvalho em
Vaga Carne
. Foto: Isaac Alencar.
Mostra de processo
Seguindo o calendário da universidade, foram programadas mostras de todos
os processos de montagem dos Solos durante a Semana Universitária, evento
público de compartilhamento didático com a comunidade.
Com o retorno após o recesso acadêmico, cada participante teve apenas três
semanas para estruturar uma mostra de cenas de 15 minutos. Para tal,
mantivemos o cronograma de ensaios três vezes por semana. Mesmo que
pudéssemos realizar um compartilhamento de processo mais simples do que uma
mostra de cenas trabalhadas, optei por manter essa diretriz por acreditar que os
olhares dos colegas da universidade e comentários das professoras poderiam dar
mais confiança para as estudantes continuarem a desenvolver seus trabalhos.
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Assim foi feito! E a semente daquilo que viria a ser o espetáculo solo de cada um
deles, apresentado no departamento de Artes Cênicas, no dia 27 de setembro de
2023, com a sala lotada e temperatura aquecida pelos refletores, tornou-se um
ambiente ideal para o crescimento de cada um dos trabalhos artísticos do projeto
Solos Negros nas Escolas.
Dali em diante, faltava pouco mais de um mês para a estreia, e cada
participante teve que se assenhorear do seu processo criativo, confiando na
metodologia trabalhada e seguir na produção dos elementos visuais, além de
agenciar a produção junto às escolas que receberiam o projeto. Nesta etapa do
projeto contamos com o apoio do multiartista Luazi Luango, natural do Rio de
Janeiro, residente em Brasília, que ficou responsável pela criação dos figurinos e
adereços cênicos.
Em consequência de todos esses encontros e aprendizados, lapidados ao
longo do desenvolvimento do projeto, nutrimos o desejo de triunfo que guiou o
processo de criação para conseguirmos encontrar os alunos e professores das
escolas públicas do Distrito Federal, coincidentemente, no mês da consciência
negra. Neste, o ciclo de formação para os estudantes participantes do projeto
começava a espiralar, que depois da formação inicial (capacitação e a criação
cênica), seria a hora de encarar o ambiente escolar com seus atravessamentos
sociais, a fim de produzir os diálogos necessários para uma educação antirracista
coletiva, provocados por meio das peças teatrais desenvolvidas.
Nesta, ressaltamos que, entre os dias 27/09 e 08/11, pouco menos de
quarenta dias, foi o tempo que dispusemos para desenvolver todas as cenas e
elementos visuais dos quatro espetáculos. Para tal, foram admitidos ensaios
extras, a fim de conseguirmos cumprir nosso cronograma de criação.
Compartilhamento nas escolas
Eu estava VIVA em cena! Base certa, texto certo, voz certa. A barriga
parecia que ia pular pra fora de tanto nervosismo. Tinha um menino,
muito bonitinho, que repetia tudo que eu falava e todos os movimentos
que eu fazia. Tinha uma menina, muito debochada, que fazia careta pra
mim cada vez que eu falava olhando pra ela. Que experiência! Tão rápido
quanto começou, acabou! E na hora de ir embora elas gritavam pra mim
“Tchau príncipe!!!”. Muito fofo. Aquilo aqueceu meu coração de uma forma
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linda.14
Figura 6 - Kémelot Nascïmento em
Pequeno Príncipe Negro
. Foto: Isaac Alencar
Nesta etapa os estudantes, professores em formação, participantes do
projeto, realizam apresentações em escolas da rede pública de ensino, sucedidas
por debates públicos com a comunidade escolar sobre os temas abordados nas
peças, quais sejam: superação do racismo por meio da valorização da negritude e
suas tecnologias educacionais.
A estreia dos
Solos Negros
nas Escolas aconteceu no início do mês de
novembro de 2023, com o espetáculo
Farinha com Açúcar
, de Gabriel Matos, no
dia 8 de novembro, compondo a programação do II Festival Cultura e Lazer do
14 Depoimento da estudante Kémelot Nascïmento, participante do projeto, em seu relatório final.
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Sistema Socioeducacional do Distrito Federal-DF15, seguido de
Maria Atravessa o
Tempo
de Amanda Reis, no dia 09 de novembro, no mesmo evento.
Ao participar deste evento, demos início a uma etapa fundamental para o
projeto: a capacitação de professores sobre os atravessamentos do racismo nas
salas de aula. Nesse encontro com professores do Sistema Socioeducativo do
DF, pudemos refletir sobre a importância da valorização da negritude na
formação integral dos estudantes atendidos por esses professores, que, em sua
maioria, quase totalidade, são homens negros e jovens, público-alvo da
necropolítica.16
Todas as indagações e pensamentos críticos compartilhados durante mais
de uma hora e meia após a apresentação dos espetáculos, conduzidos pelas
participantes do projeto, mediadas pelo coordenador, nos mostrou a importância
de fecundarmos os territórios das salas de aulas com epistemologias negras,
porque somente assim, conseguiremos vislumbrar políticas educacionais menos
desfavoráveis ao povo negro.
A partir deste episódio, cumprimos a programação de vinte apresentações
por diversas escolas do Distrito Federal, a saber: CED1 Itapuã, CED 8 Gama, CEF
801 Recanto das Emas, EC59Ceilandia, Jovem de Expressão Ceilândia, CDLAN
Varjão, CEM04 Ceilândia, CEM03Taguatinga Sul.
Em cada uma das escolas por onde o projeto foi apresentado notamos a
urgência em debater e trabalhar sobre ações que combatam os racismos
estruturais observados nos comentários e desabafos dos estudantes negros, que
muitas vezes se sentiam inferiorizados nas escolas. Alguns professores, diante
desse panorama, destacaram a singular importância de projetos como o Solos
Negros ocuparem as escolas.
Além das escolas, em 2023, o projeto foi apresentado na sede do projeto
15 O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) constitui-se de uma política pública destinada
à promoção, proteção e defesa dos direitos humanos e fundamentais de adolescentes e jovens
responsabilizadas(os) pela prática de ato infracional. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE).
16 A Necropolítica parte da definição de soberania e biopoder (a partir da leitura de Foucault), para determinar
que a soberania é exercer o controle sobre a mortalidade, definir quem deve viver e quem não deve viver,
ou nas palavras do autor, a soberania permite definir “quem é ‘descartável’ e quem não é” (Mbembe, 2018,
p. 41).
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Jovens de Expressão, em Ceilândia, periferia de Brasília, e no Centro Cultural do
Banco do Brasil, no qual fomos convidados a fazer uma apresentação juntando
todos os solos em um único espetáculo. Para isso, selecionamos 15 minutos de
cada uma das peças e fizemos uma colagem para cumprir a agenda. Incluímos
aqui essa apresentação no CCBB por notarmos a força coletiva presente nela, visto
que, após o processo de preparação inicial as estudantes já não ensaiavam juntas
no coletivo, e vê-las conectas nessa experiência, revelou uma unidade estética que
nem imaginaríamos que pudesse ser possível. Como peças do mesmo mosaico
estavam completas!
À guisa de conclusão
O que fica pra mim do processo do Solos Negros é saber que estamos
trilhando um caminho sem volta, um caminho de reconhecimento
ancestral, debates e vivências antirracistas que uma vez tomada essa
consciência não nos permite viver sem ela. Uma filosofia. Um projeto de
vida. Uma forma de ser e está no mundo vivendo em bando,
aquilombados. Para que a nossa história seja para aqueles que abriram
os caminhos pra nós, e como contrapartida nós temos o dever de
transformar o pensamento retrógrado da sociedade para que meus filhos
e netos não passem o que eu passei, meu pai, meu avô. Usando o teatro
como ferramenta de transformação social, política e de aquilombamento.
Um ritual de axé!17
Conhecimento, energia, força, capacidade de inovação, organicidade,
disciplina, liberdade, respeito e alegria foram algumas palavras norteadoras que
utilizamos na criação dos espetáculos que estão sob a aba do projeto Solos Negros
nas Escolas. E seguindo a máxima do patrono da educação nacional, de que a
educação se realiza com liberdade e amor, chegamos às escolas públicas do
DF para apresentar os espetáculos nutridos e fartos de desejos de mudança social
por meio da arte na educação. E, para a nossa felicidade, fomos muito bem
recebidos por comunidades curiosas e sedentas de informações e perspectivas
negras, especialmente por estarmos no mês de novembro, que é dedicado à
memória de Zumbi dos Palmares, símbolo da luta antirracista no Brasil.
Logo, os debates após as peças foram acalorados, cheios de indagações e
17 Depoimento do estudante Gabriel Matos, participante do projeto, em seu relatório final.
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reflexões sobre o que é ser negro e negra na sociedade brasileira, desde uma
perspectiva individual, às estruturas sociais que moldam e conservam privilégios
e racismos no Brasil. Ver crianças, jovens, professores, diretores e zeladores
assistindo, comentando e debatendo o país a partir das peças apresentadas nesse
ambiente tão importante para nossa sociedade, nos deu a certeza de “dever
cumprido”, pois acreditamos que somente uma educação libertadora, crítica e
propositadamente negra poderá construir caminhos para um futuro antirracista.
Figura 7 - Gabriel Matos em Farinha com Açúcar debatendo com os estudantes do
CED 8 Gama. Foto: Isaac Alencar
Ressaltamos o “propositadamente” por sabermos os dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e estatísticas-IBGE, divulgados no Censo 2022, 55,5% da
população brasileira é negra (preta e parda) e, se somando-se os indígenas, esse
percentual chega a 56,3%. Pois bem, a pergunta que evidencia a necessidade de
projetos como o Solos Negros nas Escolas é simples: os currículos dos diversos
centros de formação de professores do país atendem à real população brasileira?
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Claro que não.
Com o Solos Negros, buscamos relacionar os saberes ancestrais com o
repertório didático e teórico do curso de Licenciatura em Artes Cênicas da
Universidade de Brasília (UnB), com o propósito de alargar os horizontes
epistêmicos desses(as) futuros(as) professores(as), no intento máximo de retomar
aquilo que nos foi oculto durante tantos séculos pela educação formal qual seja:
uma cosmologia negrorreferenciada nos processos educacionais, uma pretagogia.
Pretagogia como referencial teórico e metodológico, conforme explicitado por
Sandra Petit:
Pretende-se constituir numa abordagem afrocentrada para formação de
professores e educadores de modo geral. Dessa forma, a Pretagogia se
alimenta dos saberes, conceitos e conhecimentos, de matriz africana, o
que significa dizer que se ampara em um modo particular de ser e de
estar no mundo (Petit, 2015, p.120).
Esse modo de ser é também um modo de conceber o cosmos, ou seja, uma
cosmovisão que, segundo a autora, está fundamentada em alguns princípios:
Autorreconhecer-se afrodescendente;
A religiosidade;
O reconhecimento da sacralidade;
O corpo como fonte primeira de conhecimento e produtor de saberes;
A tradição oral;
O princípio de circularidade na relação entre os seres;
A noção de território como espaço-tempo.
Princípios que trabalhamos arduamente no desenvolvimento do projeto Solos
Negros nas Escolas e que agora compartilhamos seus traços aqui, na intenção de
fazer com que as cosmopercepções ancestrais negras (e igualmente indígenas)
sejam reconhecidas como referenciais metodológicos plenamente viáveis para
orientar a formação ética, política e estética dos professores de Arte Cênicas e,
consequentemente, chegue mais cedo às salas de aula do ensino básico.
Ao se mostrar uma prática pedagógica consistente, o projeto oferece um
itinerário que une a valorização da identidade negra, a formação crítica e a inclusão
de narrativas mais plurais na pedagogia do teatro. E assim, passa a estimular o
desenvolvimento de competências caras à formação do docente em teatro, que
Solos negros nas escolas: Teatro Negro na formação de professores
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incluem:
Habilidades práticas na criação, produção e apresentação de espetáculos
teatrais que articulem a arte e educação antirracista;
Desenvolvimento da sensibilidade estética e da percepção crítica sobre
questões sociais, políticas e culturais, especialmente relacionadas à
identidade e cultura negra;
Capacidade de mediação pedagógica, estimulando o diálogo e a reflexão
junto à comunidade escolar;
Capacidade de integrar práticas pedagógicas emancipatórias, ao interagir
com outros docentes e buscar ampliar as possibilidades das artes
cênicas para promover justiça social.
Essas competências estão alinhadas com teorias da educação que
consideram os saberes negros e indígenas como uma tecnologia capaz de
transformar o ensino formal das artes, sobretudo quando orientam a formação de
professores.
Noutra palavras, se voltarmos nossa atenção para a epígrafe que abre este
artigo, veremos que o objetivo maior do projeto Solos Negros, para com os
iniciados, aqui professores em formação, é fazê-los adquirir cada vez mais àse,
para melhor praticar a lei universal do serviço. Cientes de que àse (axé) significa,
principalmente, força, poder, energia. Dito assim, esperamos que os impactos
deste projeto sejam duradouros e que continuem a inspirar novos projetos e
iniciativas voltadas para a valorização das culturas negras, como base epistêmica,
nos cursos de formação de professores de Artes Cênicas do país.
E cientes de que teoria e práxis se fundem na criação artística e prática
didática, destacamos os principais autores e autoras que nos acompanharam
nesta jornada.
Referências
BARBOSA, Fernanda Júlia (Onisajé).
Teatro preto de Candomblé
: uma construção
ético-poética de encenação e atuação negras. 2021. Tese (Doutorado em Artes
Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.
Solos negros nas escolas: Teatro Negro na formação de professores
José Jackson Silva (Jackson Tea)
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-24, dez. 2025
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DAHlBERG, Ingetraut. Fundamentos teórico-conceituais da classificação.
Revista
de Biblioteconomia de Brasília
, Brasília, v. 6, n. 1, p. 9-21, jan./jun. 1978.
LIMA, Evani Tavares.
Um olhar sobre o teatro negro do Teatro Experimental do
Negro e do Bando de Teatro Olodum
. 2010. 307 p. Tese (Doutorado em Artes da
Cena) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.
LUDEMIR, Júlio; LIMA, Eugênio (Org.).
Dramaturgia negra
. Rio de Janeiro: Funarte,
2018.
MARTINS, Leda Maria.
Performances do tempo espiralar
: poéticas do corpo-tela.
Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
MBEMBE, Achille.
Crítica da Razão Negra
. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
MOTTA, Ivana Delfino.
Movências nas rotas de sankofa
: pontos de partilha, danças
e implicações étnico-raciais. 2022. 122 f., il. Dissertação (Mestrado em Artes
Cênicas) – Universidade de Brasília, Brasília, 2022.
PETIT, Sandra Haydée.
Pretagogia
: pertencimento, corpo-dança afro ancestral e
tradição oral: contribuições do legado africano para a implementação da Lei
10.639/03. Fortaleza: EdUECE, 2015.
SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: Tradição e Criação nas Artes
Cênicas.
Rebento
, São Paulo, n. 6, p. 99-113, 2017.
SANTOS, Maria Stella de Azevedo.
Meu Tempo é Agora
. Salvador: Assembleia
Legislativa da Bahia, 2010.
Recebido em: 02/09/2025
Aprovado em: 07/11/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br