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Representação Circense em
Chapadão do Bugre
,
de Mário Palmério
Luiz Humberto Martins Arantes
Para citar este artigo:
ARANTES, Luiz Humberto Martins. Representação
Circense em
Chapadão do Bugre
, de Mário Palmério.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0203
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, de Mário Palmério
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Representação Circense em
Chapadão do Bugre
, de Mário Palmério
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Luiz Humberto Martins Arantes
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Resumo
Este artigo propõe-se a refletir a importância das fontes de pesquisa em artes
cênicas, principalmente, sobre artes circenses, e, a partir de então, apresentar
e analisar o uso de fontes literárias nas representações sobre circo. Para isso,
lança um olhar acerca da obra
Chapadão do Bugre
, de Mário Palmério, escritor
mineiro, que, em vasta obra retrata a vida nos rincões de Minas Gerais. Em
sua narrativa, o autor soube tematizar a chegada do circo, num distante
povoado, e, assim, por meio de uma representação literária, aproximar-se de
temas debatidos em pesquisas sobre história circense.
Palavras-chaves
: Representação circense. Circo. Memória. Mário Palmério.
Circus Representation in
Chapadão do Bugre
, by Mario Palmério
Abstract
This article proposes to reflect on the importance of research sources in
performing arts, mainly on circus arts, and, from then on, present and analyze
the use of literary sources in representations about circus. For this, it takes a
look at the work
Chapadão do Bugre
, by Mário Palmério, a writer from Minas
Gerais, who, in a vast work, portrays life in the corners of Minas Gerais. In his
narrative, the author knew how to thematize the arrival of the circus, in a
distant town, and thus, through a literary representation, approach themes
debated in research on circus history.
Keywords
: Circus representation. Circus. Memory. Mario Palmério.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Lidiane Alves Nascimento. Doutora em
Letras Universidade Federal de Goiás (UFG).
2
Pós-doutorado em Artes Cênicas pela USP. Pós-doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Autônoma
de Barcelona e Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutorado em História pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestrado em História da Cultura pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Aperfeiçoamento em Teoria Literária pela UFU. Especialização em
História da Filosofia pela UFU. Graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Professor Titular atuando nos cursos de graduação em Teatro e nas pós-graduações em Artes Cênicas e
Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). lharantes@ufu.br
http://lattes.cnpq.br/5284957324688177 https://orcid.org/0000-0002-9243-8725
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Representación del Circo en
Chapadão do Bugre
, por Mario Palmério
Resumen
Este artículo se propone reflexionar sobre la importancia de las fuentes de
investigación en las artes escénicas, principalmente en las artes circenses, y,
a partir de ahí, presentar y analizar el uso de las fuentes literarias en las
representaciones sobre el circo. Para eso, toma como referencia la obra
Chapadão do Bugre
, de Mario Palmério, escritor de Minas Gerais, quien, en
una vasta obra, retrata la vida en los rincones de Minas Gerais. En su narrativa,
el autor supo tematizar la llegada del circo, en un pueblo lejano, y así, a través
de una representación literaria, abordar temas debatidos en investigaciones
sobre la historia del circo.
Palabras clave
: Representación circense. Circo. Memoria. Mario Palmério.
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As pesquisas em história das Artes Cênicas são construídas a partir da
valorização das fontes de estudo disponíveis. Os arquivos brasileiros voltados para
a memória do circo, do teatro, da dança e da ópera são poucos e carecem de
maior incentivo para a correta preservação e ampliação.
Na ausência de documentação organizada, os depoimentos dos artistas
cênicos participantes de ações artísticas passadas estão sempre incrementando
essas fontes. Os jornais de época também trazem preciosas informações, e,
alguns, do século XX, disponibilizam imagens que ajudam a tecer a memória das
artes cênicas de um tempo que, por efêmeras, insistem em escapar.
O pesquisador, por vezes, precisa garimpar pistas e relacionar diferentes
fontes e
corpus
de pesquisa, para avançar com o tema de sua investigação. Um
exemplo disso pode ser percebido com o uso de obras literárias para construir as
muitas perspectivas decorrentes de determinados acontecimentos históricos.
Longe, aqui, de querer afirmar que a obra literária seja ou queira ser ‘espelho’ de
uma época ou contexto. Mas, sim, entender que obras literárias e teatrais são
produzidas por autores, pessoas físicas, em determinados momentos, as quais
dialogam com o tempo que as tornaram possíveis. Além, claro, de interferirem na
construção de mundos, ao mobilizarem leitores e espectadores (Chartier, 2004, p.
19).
Hoje é inegável que a leitura das tragédias gregas nos apresenta uma
importante perspectiva daqueles que viveram na Hélade, pois elas nos situam
sobre noções de democracia e sobre ser homem e ser mulher naquele tempo. O
teatro elisabetano de Shakespeare, por sua vez, nos apresenta e problematiza o
homem político e a questão do poder, do amor e da vingança, no contexto da
renascença.
Na história do teatro brasileiro, são muitos os dramaturgos que lançam mão
da dramaturgia para dialogar com seu tempo. Por exemplo, os dramaturgos e
artistas de nosso período ditatorial, das décadas de 1960 e 1970, trazem, em suas
obras, intensos diálogos com momentos de luta pela liberdade. Portanto, obras
ficcionalizadas, mas que, se observadas e contextualizadas, nos apresentam
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versões diferenciadas de determinados períodos. O mesmo raciocínio pode ser
estendido aos nossos muitos romances, contos, poesias, etc.
Assim, também, a partir de uma obra literária, é possível encontrar vestígios
da representação da arte circense em determinado contexto histórico. Porém, isso
não significa entender que não exista uma história circense constituída a partir de
muitas outras fontes de pesquisa. Desde a China clássica e do Egito antigo, são
muitas as inscrições e pinturas que indicam sinais da existência longínqua de
uma arte de malabares e equilibristas.
Podem ser acrescentadas a isso as muitas documentações do medievo
europeu, que atestam a presença de artistas em espaços públicos, em castelos,
ruas e praças. Surgiam, assim, os antecedentes dos saltimbancos, viajantes e
nômades, que, de cidade em cidade, levavam sua arte, seus números cômicos e
malabarismos, além de teatro e dança.
Desde então, no contexto europeu, as artes circenses foram conquistando
mais espaço e se consolidando em todo o mundo. A pesquisadora Ermínia Silva
situa bem esse longo processo histórico a partir do século XVIII:
As praças e feiras há muito eram ocupadas por companhias ambulantes
que se apresentavam ao ar livre, em barracas cobertas de tecidos ou de
madeiras; palcos de pequenos teatros estáveis ou fixos teatros de
variedades e em todos aqueles espaços citados acima. Eram acrobatas,
dançadores de corda, equilibristas, malabaristas, manipuladores de
marionetes, atores, adestradores de animais, principalmente ursos,
macacos e cachorros (Silva, 2007, p. 34).
Na história do teatro a pantomima tem uma larga tradição, tendo sido
nos séculos XVII e XVIII um gênero muito em voga na Europa,
particularmente nas feiras francesas e teatros ingleses. Nas descrições
das atuações dos artistas das feiras desse período encontramos diversas
características que estarão presentes nos grupos responsáveis pelo
processo de constituição dos circenses, no final do XVIII: apresentavam
uma variedade de números, como trapézio, equilíbrio, engolidores de fogo
e de espada, ilusionismo, animais treinados, pernas de pau, música,
histórias, performance, tudo misturado e construído ao mesmo tempo
(Silva, 2007, p. 38).
Segundo a mesma historiadora, os primeiros vestígios de memória circense
no Brasil podem ser identificados no final da década de 1780, período em que era
comum a chegada de imigrantes, principalmente, da Argentina e Europa. Já, em
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1820, essas primeiras companhias, que aportavam na latino-américa, tinham
atrações como espetáculos equestres ou o circo de cavalinhos, algumas inclusive
possuíam artistas brasileiros em sua programação.
Mas não foi sempre assim, pois, após 1860, a presença de algumas
companhias circenses no Rio de Janeiro era vista com certa reserva, por exemplo,
pelo aclamado ator João Caetano, o qual defendia que os circos eram diversões
descomprometidas, não tinham um caráter educativo e desviavam as pessoas da
ida ao teatro (Silva, 2007, p. 72).
A segunda metade do século XIX e o início do século XX
3
é o período que nos
interessa mais propriamente, pois é nesse tempo que o escritor Mário Palmério
(1916-1996) irá situar sua representação circense, presente em sua obra
Chapadão
do Bugre
. Assim, é um período que possui documentação a ser pesquisada, como
demonstra a obra de Ermínia Silva e de outros tantos pesquisadores. Mas, como
se pretende mostrar, as obras literárias podem também compor esse mosaico de
fontes de pesquisa para as investigações em história, e sobre os procedimentos
do fazer circense.
Neste artigo pretende-se lançar um olhar sobre a obra
Chapadão do Bugre
,
do mineiro Mário Palmério, e discutir a forma como, em um dos capítulos do
romance, o autor nos apresenta uma perspectiva da arte circense, e sua chegada
num dos rincões distantes desse Brasil interiorano, em fins do século XIX e início
do século XX.
Mário Palmério nasceu em 1916, na cidade mineira de Monte Carmelo, Minas
Gerais, mas passou considerável parte de sua vida em Uberaba MG, onde estudou,
lecionou, escreveu, foi eleito deputado federal, foi empreendedor e tornou-se
importante persona do ramo educacional. Mas, de todas essas atuações, a que
mais lhe deu projeção, e, porque não, satisfação, foi o ofício da escrita,
principalmente, após a publicação, em 1956, da obra
Vila dos Confins
, na qual
apresentava os rincões de Minas Gerais, mais particularmente, a região do
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, pois os outros sertões de Minas já haviam sido
3
Não pretendemos avançar nesta temporalidade, mas questões e reflexões da expressão ‘circo
contemporâneo’ podem ser acessadas em Bolognesi, 2018.
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bastante explorados pelas paisagens literárias de Guimarães Rosa. (Fonseca, 2012).
Quando se olha a literatura brasileira do século XX, é possível aproximar Mário
Palmério do conjunto de modernistas e regionalistas pós década de 1930, tais
como: Guimarães Rosa, Jorge Amado, Graciliano ramos, José Lins do Rêgo, Érico
Veríssimo e tantos outros, que, a partir de suas especificidades, e da valorização
de um dado recorte geográfico e temporal, tematizaram um Brasil múltiplo e
diverso, no qual todas as suas tensões caminhavam e tropeçavam na direção do
progresso e das modernidades apresentados pelo novo século.
Em
Chapadão
, o autor conduz a narrativa, e, particularmente, o foco narrativo
em terceira pessoa, que tudo observa à sua volta, o seu entorno de presenças
humanas, animais, e uma flora do cerrado do interior das Minas Gerais. Além da
voz que narra, também chama atenção a mula de montaria Camurça, que, cansada
do longo percurso, também narra o sofrimento de seu cavaleiro. Camurça torna-
se uma consciência que visualiza o sentido da saga e da obra, e, inclusive, da sua
própria morte.
O espaço literário tematizado por Mário Palmério, em suas obras, possui
muitas semelhanças com as geografias das regiões do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba. Suas narrativas situam um relevo e uma paisagem de cerrado, com os
quais o leitor, nos primeiros capítulos, pode perfeitamente fazer essas
associações. O modo de vida dos personagens e o vocabulário de cada um deles
assinalam o pertencimento a esses distantes rincões das Minas Gerais. As relações
de poder, ou seja, um coronelismo arraigado no cotidiano sinaliza um ambiente de
autoritarismo e violência, muito presente nas Minas do final do século XIX e
princípio do século seguinte.
Para o estudioso dessa região mineira, o geógrafo Luís Augusto Bustamante
Lourenço, o início do povoamento do oeste de Minas Gerais, mais propriamente
do estreito que separa os rios Grande e Paranaíba, tem suas origens no traçado
das Estrada dos Goiases, caminho que levava os exploradores de ouro até o norte
de Goiás. Quando passavam pela região de Minas, instauravam, quase sempre à
força, os aldeamentos indígenas, e que, em fins do século XVIII, era bastante
ocupada pelos Caiapós, tanto que a região chegou a receber o nome de Grande
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Caiapônia. Após esse primeiro movimento, no século seguinte, a crise da
mineração nas Minas Gerais e as possibilidades de terras para pecuária
provocaram novas levas e ocupações na direção do Alto Paranaíba e Triângulo
(Bustamante, 2005).
A obra
Chapadão do Bugre
, de Mário Palmério, sugere um terceiro movimento
nessa ocupação do oeste das Minas, pois, após a instauração de grandes fazendas
para criação de gado, surgem os povoados e vilas, que irão alimentar um modo de
vida com traços urbanos, de maneira que se passa a ter uma relação de
dependência entre rural e urbano nessa região de Minas e Goiás. (Teixeira, 2001).
Diante dessa paisagem histórica, a obra romanceada de Palmério tem a sua
contribuição para as pesquisas literárias, históricas, de modos de vida, de
vocabulário, e também sinaliza a chegada das artes circenses, numa região que
passou por muitas transformações nos últimos dois séculos.
A obra
Chapadão do Bugre
do autor Mário Palmério tem papel
fundamental na literatura regional brasileira e é ainda pouco explorada
no meio acadêmico. Seu espaço literário, embora ficcional, merece
destaque pela importância na preservação da memória cultural do país
pelo retrato naturalista de um período pré-industrial, em que homens
construíam seus espaços com a força do braço, com transporte animal
e usufruindo da natureza ou sofrendo com as dificuldades impostas por
ela, isolados dos grandes centros urbanos já existentes no Brasil. O
romance se desenrola de forma lenta, com pouca ação, produzindo a
sensação de lentidão típica dos tempos e lugares em que as notícias e
acontecimentos ainda chegavam a cavalo. Rotina de prosa, café, muito
trabalho e pouca informação para evitar fofoca. (Marra & Borges Filho,
2021, p. 136)
Em breves palavras, a obra
Chapadão do Bugre
4
, de Mário Palmério, pode ser
resumida como sendo a saga do personagem José de Arimatéia, que, recém
chegado à fazenda do Coronel Tonho Inácio, - para atuar como dentista, - envolve-
se com Maria do Carmo, filha de uma agregada da localidade. Ao flagrar a futura
noiva em carícias com o filho do patrão, mata-o e empreende uma fuga pelas
matas do interior mineiro, sempre acompanhado de sua fiel mula Camurça. Em
4
O romance foi publicado em 1965, mas, para o presente artigo, utilizaremos a edição número 10, publicada
pela José Olympio em 1982. A obra também teve adaptação para série televisiva em 1988, quando foi exibida
pela Rede Bandeirantes, entre 4 e 29 de janeiro de 1988, tendo sido escrita e adaptada por Antônio Carlos
Fontoura e direção geral de Walter Avancini. Mas essa versão televisiva não será objeto de análise neste
momento.
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disparada com Camurça, Arimatéia lembra que já fora protegido de outro Coronel
da região, Seu Valico Ribeiro. Enfurecido, logo, Seu Tonho do Carmo deduz que
Arimatéia estaria sendo protegido por seu inimigo.
Tudo isso, num tempo e numa região dominados pelo coronelismo. Então, o
crime de José de Arimatéia passa a ser um divisor de águas na narrativa, opondo
apoiadores e opositores da região. Em sua odisseia, Arimatéia vai passando por
matas e pequenos povoados, lugares marcados por disputas políticas e conflitos,
muitas vezes, resolvidos a bala. Mas é uma região também marcada por ritos e
festejos, como, por exemplo, com a chegada do circo, um hiato, um respiro na
narrativa de fuga, que consegue parar uma região, um povoado pra ver a arte
passar.
O romance foi inspirado em uma misteriosa chacina ocorrida na cidade
de Passos, Minas Gerais, no início do século XX. O romance narra a
trajetória do dentista ambulante José de Arimatéia, que parece ter
encontrado na fazenda de Capão do Cedro um lugar para viver, com o
apoio do poderoso Tonho Inácio e ao lado de Maria do Carmo (Marra &
Borges Filho, 2021, p. 137).
Após a fuga de Arimatéia, Tonho Inácio mobiliza seus homens para
percorrerem os cantos, as matas e as vilas da região. Nesse percurso, o autor Mário
Palmério vai narrando uma paisagem cerradiana, inserindo personagens
característicos e os usos, por parte desses, de um vocabulário e uma prosódia
própria dessas regiões e desse tempo de Minas (Vinaud, 2011).
A narrativa de
Chapadão
, na parte que trata, especificamente, a respeito da
representação do circo, em fins do século XIX e início do século XX, corresponde a
um trecho da grande obra. Na edição publicada pela Editora Livraria José Olympio,
na sua décima edição, de 1982, trata-se do capítulo intitulado ‘Mata dos Mineiros’,
no intervalo entre as páginas 118 e 138. Assim como o livro todo, essa parte também
traz três ilustrações do reconhecido desenhista e capista Poty Lazzarotto.
O cenário dos acontecimentos é a fictícia cidade de Sobradinho, mas que
poderia ser também Uberaba, Araxá, Patos de Minas ou Uberlândia, ou mesmo
Passos e tantas outras cidades reais do imaginário do autor, e que, nesse mesmo
período, apresentavam características muito próximas das vilas da obra de Mário
Palmério.
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Assim, Sobradinho está prestes a começar a Festa de Santa Bárbara
5
. Além
dos festejos tradicionais, uma grande expectativa com a chegada do Grande
Circo Cavaliére. Mas uma apreensão que ronda a cidade, pois se sabe que
Coronel Tonho soltou a capangada na procura de José de Arimatéia
6
, em virtude
dos acontecimentos, na Fazenda Capão do Cedro.
Seu Valico Ribeiro, proprietário da Fazenda Curral de Esteio, - uma parte da
região de Mata dos Mineiros, - foi orientado por Gumercindo, Tia Rita e Siá
Domingas a deixarem a fazenda, pois a capangada de Seu Tonho poderia passar
por lá, fazendo buscas. Estavam desconfiados com essa procura por Arimatéia.
Mesmo assim, a cidade se excitava, e a vizinhança rural foi estimulada a vir para a
vila, pois a chegada do circo estava confirmada.
O circo era de propriedade de um italiano, Seu Giordano Cavaliére, que
chegara antes à cidade, e havia procurado Seu Oto da Câmara Municipal, pois
precisava preparar as condições para receber muita gente, e, inclusive a bicharada.
Necessitava roçar terreno atrás do grupo escolar, cheio de mamona, fedegoso e
picão. Precisava arrumar pasto para os burros que puxavam carroças, que
transportavam apetrechos do circo: mastros, cordame, barracas, bagagem e
jaulas. Além de pegar animais da cidade para alimentar as feras do circo. Seu
Giordano também providenciara os foguetes, os carros de praça para a passeata
dos artistas, a reserva de serragem e casca de arroz para o picadeiro.
Assim, no dia 04 de dezembro, dia de Santa Bárbara, uma quinta-feira, haveria
procissão, barraquinhas, e o esperado leilão durante a festa. Na véspera, às três
da tarde, seria a entrada do circo em Sobradinho, com passeata de artistas e
bichos.
A narrativa é conduzida de maneira que o leitor é informado a respeito da
futura recepção ao circo, além de todos os preparativos e as características dos
personagens envolvidos na situação. Mas há também uma situação que vem dos
capítulos anteriores, que é a busca por Arimatéia, pois se sabe que ele pode estar
5
Santa Bárbara passou a ser conhecida como "protetora contra os relâmpagos e tempestades", e é
considerada a Padroeira dos artilheiros, dos mineiros e de todos quantos trabalham com fogo.
6
Optamos por manter o nome do personagem Jo de Arimatéia com acentuação tal como aparece no
original de Mário Palmério.
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em Sobradinho. Expectativa e apreensão estão no ar.
Mesmo com esse frenesi todo, o narrador não se esquece de lembrar que foi
Seu Valico Ribeiro, um dos coronéis da região, quem ofereceu trabalho, casa e
comida, durante muito tempo, a José de Arimatéia. Na casa de Seu Valico, não é
diferente, esposa, crianças e criadagem estão na expectativa da chegança circense.
Ali havia também muita inquietação, junto aos demais moradores da cidade, todos
começavam a se posicionar nas janelas das casas, situadas nas ruas por onde
o cortejo do circo iria passar.
O largo apinhado, o comércio fechado a meia porta; janelas carregadas
de mulher, os portõezinhos entupidos das empregadas e criançada mais
miúda - as calçadas cheias, os telhados, o arvoredo - Sobradinho em
peso recebia o Grande (Palmério, 1982, p. 121).
A descrição que o narrador de Mário Palmério faz do circo é uma importante
contribuição para as pesquisas sobre memórias e imagens do circo, do referido
período histórico, e nos bem a dimensão de como se constituía o aparato
circense e sua recepção, seja nos preparativos, seja no espetáculo em si.
A descrição começa pelo cortejo que se abria com um perna-de-pau de guia,
de fraque e cartola, entregando panfletos. Depois, Seu Benedito fogueteiro, acendia
o rastilho, em seguida, chovia brasa e corria a molecada. Abrindo o corso, a banda
do circo: fardada de azul e vermelho, capacete de penacho e instrumentos polidos.
A banda tocava
Crepúsculo de Sobradinh
o, de autoria do professor Anatólio,
diretor do Grupo Escolar.
Mas o narrador adota também a perspectiva de personagens que
acompanham o desfile e olham o que acontece na casa e na janela de Seu Valico
Ribeiro. Aos poucos vamos sendo informados de que se trata dos capangas
enviados por Seu Tonho, e que estão à procura de José de Arimatéia, que, um dia,
já fora empregado de Seu Valico.
Assim, numa esquina, à sombra da folhagem, com chapéu a esconder o rosto,
estavam Zito do Adão e Miliano. Ao lado de Zito, um cabo da polícia do
destacamento, que, cochichando, informa quem está na janela. Zito do Adão,
também cochichando, reconhece alguém na janela da casa. Nesse momento, o
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narrador esquece o desfile e se lembra de onde estaria José de Arimatéia e seu
perseguidor, o Persilva. Onde estariam? Preocupações de que Seu Valico Ribeiro
não se lembrava, enquanto o corso entrava na cidade. Estava mais atento com a
entrada da dupla dos cavalos pretos, ornados de dálias brancas e vermelhas, nas
correias da cabeçada. Seu Giordano Cavaliére, dono do circo, desfilava de
uniforme: cartola e túnica azul-marinho militar, botas até nos joelhos e chicote de
domador nas mãos.
Dessa maneira, o narrador vai oscilando seu olhar entre a agitação do desfile
na rua e a tensão com a presença dos capangas, que circulam pelos arredores da
casa de Seu Valico. No largo, sublinha a entrada dos artistas que vinham no carro
de praça, puxado por éguas alvaçãs, com flores nas focinheiras, trazendo Dona
Nena Cavaliére e as duas filhas, ambas trapezistas. Num outro carro, puxado por
um único cavalo, pertencente a Dr. Otacílio, vinha o ator de pantomima Deolindo
da Conceição, famoso por fazer o Antonio Conselheiro, em
A Guerra de Canudos
,
e o Jesus Cristo, em
Vida Paixão e Morte
. Nesse momento, o narrador traz a
descrição do ator:
[...] preto, representava sempre a poder de muito alvaiade na cara e nas
mãos, fazendo papel apenas de gente branca, que de negro não aceitava
- o Major Virgilinho ia explicando ao Valico Ribeiro e ao mano Gumercindo.
Quando apareceu no Cabriolé, nem o dono do carro, o Dr. Otacílio, para
saber assentar-se assim com mais pose. O artista vinha preto mesmo,
de nascença, de terno cento-e-vinte engomado, a gravata de laço,
amarela, de pompom. Quase rui o largo, de tanta vibração, e viva, e palma!
E tinha razão o povo de Sobradinho, que desta vez o Grande Circo
Cavaliére trazia todo o elenco, sem falta de ninguém (Palmério, 1982, p.
124).
Essa presença de um artista negro na comitiva circense, indicada pelo autor
de
Chapadão
, situa com detalhes a questão racial ainda presente neste Brasil pós-
abolição. O ator Deolindo, personagem de Palmério, na obra, não podia nem
mesmo desempenhar papéis de homens negros, e, para sua presença ser tolerada,
era necessário o uso de ‘alvaiade’
7
no rosto, dando-lhe o aspecto de homem
branco. Indícios do racismo, que se perpetuaria aos dias atuais, que, mesmo após
7
Ao estudar a história da caracterização cênica, a pesquisadora Aynara Pczzuol identifica o uso do alvaiade
no ano 150 a.C., quando era [...] um derivado do chumbo, utilizado, ainda hoje, na pintura de paredes. Quando
misturado esse produto com pastas de vinagre, claras de ovos e outras, as mulheres da época conseguiam
deixar suas peles com aspecto mais claro. (Pczzuol, 2018, p. 17)
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a Lei Áurea, continua marcando social e economicamente as populações
escravizadas no Brasil.
Não se pode deixar de mencionar a possível relação e proximidade que Mário
Palmério tenha realizado em sua obra, entre o ator Deolindo da Conceição e o
artista circense Benjamim de Oliveira (1870-1954), nosso primeiro palhaço negro e
também multiartista. Mas essa é apenas uma aproximação contextual, uma vez
que não temos evidências de que o romancista tenha conhecido ou tenha assistido
a Benjamim em cena. Mas ambos são nascidos no interior de Minas Gerais, então,
possivelmente, sendo Palmério mais novo, ele tenha assistido a Benjamim em
cena, ou tenha presenciado relatos de suas atuações no Rio de Janeiro, e, até
mesmo, pelo interior brasileiro.
Na sequência do cortejo pela rua, outros artistas circenses são apresentados:
a moça da bola, a índia-da-machadinha, o alemão-do-canhão, as gêmeas ciclistas,
a
troupe
de anões acrobatas, as mocinhas dos pôneis, os barristas, malabaristas
de garrafa, o tocador de serrote e uma coisa verde e saltitante, o homem rã.
O narrador também sublinha a presença, no desfile, dos bichos do circo,
salienta a presença dos elefantes, conduzidos por hindus, e tem o cuidado de
descrever como eram fisicamente os elefantes e seu marchar pelo Largo de
Sobradinho. Além desses, outros animais: o camelo, a zebra, os pôneis. Os
carroções com jaulas de leões, leoa, tigre de bengala, pantera e hienas. Muita
gritaria no largo, com tanta excitação pelos animais.
Por fim, fechando o cortejo: o palhaço
Mindoim
, que planta bananeira, cai da
égua e arria as calças. Era toda a atenção no palhaço, que o povo chorava de tanta
risada.
- Cai da égua, Mindoim!
E o palhaço caía, escorregando-se pelo traseiro da eguinha, se agarrando
à cauda e por ela subindo novamente, feito macaco em cipó.
- Arreia as calça, Mindoim!
E o Mindoim arriava!... Quando ouvia os gritos, as vaias e os assobios, é
que então se virava, cara de bobo, espantada, para um lado, para o outro,
fingindo ignorar a razão de tal baderna. Nas janelas, Siá Domingas, Tia
Rita, a mulherada dava acesso, chorava de tanta risada. O Mindoim, aí,
desconfiava: levava depressinha as mãos aos fundilhos descobertos,
apalpava aquilo, sungava correndo as calças, por causa dos dois rombos
enormes, um em cada popa ele então se dava conta que havia na
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ceroula. O que mais matava de rir, porém, Tia Rita e Tia Siá Vicência era
a especiezinha de calça de mulher, de renda, que aparecia através dos
buracos das ceroulas de Mindoim. E não ficava nisso: tão
envergonhado e vendido ele se fingia, que recolhia a cabeça colarinho de
meio metro adentro, o peito estufado que nem peru. Então, se
desequilibrava, se despencava, outra vez, égua abaixo (Palmério, 1982, p.
125-126).
O sino da igreja podia badalar, chamando para a procissão, mas a molecada
e a mulherada não largavam o palhaço Mindoim, que, com suas peripécias pelas
ruas de Sobradinho, provocava um hiato de riso e diversão, num lugar, aos olhos
de Palmério, marcado pelo mandonismo e pela violência.
Terminado o desfile, quem estava na janela foi pra porta da igreja. Os jagunços
que observavam o movimento saíram devagarinho para o meio da multidão. O
narrador mantém os dois planos de ação sem desfecho, deixando para as cenas
seguintes o desdobramento dos acontecimentos. Mas o local das ações, agora,
será o circo e o espetáculo prestes a se iniciar.
Mais adiante, a cena muda de local, mas os personagens que centralizam a
trama continuam os mesmos, por exemplo, Seu Valico, que chega com a família,
e vai logo ocupando os lugares. Do lado de fora, perto da bilheteria, armaram-se
os tabuleiros dos vendedores de doces e quitandas. A banda de música animava
o público que ia chegando. Havia muita gente amontoada pra ver as moças da
cidade descerem dos carros de praça com seus vestidos e sapatinhos.
Do lado de fora, os capangas Zito do Adão e Miliano também acompanham a
chegada de Seu Valico, e apreciam o movimento, aguardam a hora de entrar, mas
parecem preparar algo. Em seguida, o narrador irá situar o leitor sobre o fato de
os dois terem passado o dia anterior perguntando coisas sobre o circo, por
exemplo, como era a pantomima que iria acontecer, tendo perguntado inclusive a
respeito da existência de brigas, lutas e combates que ocorriam em cena.
Logo, depois, já, dentro do picadeiro, ouve-se o terceiro sinal, quando, então,
aparece o diretor Seu Giordano Cavaliére, numa vestimenta descrita aos detalhes
pelo narrador: [...]
túnica de fila dourada de botões, as botas até aos joelhos,
cartola, chicote. No centro do picadeiro, abriu os braços, tacões muito juntos, o
bigode de pontas reluzindo à luz do carbureto. A banda parou
(Palmério,1982,
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p.130).
Seu Giordano volta ao palco, em vários outros momentos, mas o narrador de
Chapadão do Bugre irá se demorar um pouco mais, quando o diretor anuncia o
número teatral da noite:
Amore e Sangue
, com Nena Cavaliére e Deolindo de la
Concezione. Esta, uma tradição de muitos circos brasileiros do período, que
tinham, na pantomima e no melodrama, importante atrativo nos palcos circenses.
Mais adiante, o próprio narrador detalha o enredo teatral que irá se passar.
Uma bonita e movimentada história de amor. A paixão de um príncipe por uma
espiã.
Todo o primeiro ato passava-se na sala do trono: a entrada da espiã
Margarida, conduzida por Marquês que era também marechal-de-Campo.
A acusação - Margarida fora surpreendida a fazer sinais, numa praia, para
um pirata, terrível inimigo do Príncipe - a Corte reunida a pedir, aos gritos,
a morte da moça. O Príncipe vacilava, não escondendo o que sentia no
íntimo, apaixonado pela beleza da prisioneira caída nos degraus do trono,
o vestido rasgado, quase nua. Eis quando, desabalado, surge um soldado,
rompendo pela sala, e gritando: -
Alteza! Alteza!
A Artilharia da costa pôs
a pique o bergantim pirata! Bartolomeu, o Corsário, capturado a ferros!
. O
tal Bartolomeu era o pai de Margarida. E o ato termina, então, com um
grito da linda espiã que desmaia, como se estivesse morta, aos s do
Príncipe Filippo (Palmério, 1982, p.131).
O segundo ato marca o encontro entre o Príncipe e Margarida. Ela entra na
saleta privada do nobre, ainda desalinhada, cabelos curtos, ainda guardando traços
sensuais, ajoelhada, pede clemência para o pai. Tentando se desvencilhar, o
príncipe não resiste e tenta tapar os ouvidos com as mãos. Na plateia do circo, até
mesmo o público reage com gritos à tentação que o Príncipe estava prestes a
ceder. Seu Nicola, verdureiro, do alto da arquibancada, gritava:
Cabeluda!
Calabresa!
O ator Deolindo teve que se recompor, após a interferência do público, e
recomeçar a cena. O drama fora arruinado pelo verdureiro. Foi muita gargalhada
que o ator Deolindo ficou até constrangido. Seu Nicola havia exagerado com seu
velho costume, o que desagradou o doutor Celestino, Juiz de direito, que mandou
prender Seu Nicola pelas obscenidades ditas durante o drama. No camarim do
artista, tentam contornar a situação. Lembram o caso da equilibrista de arame,
que também foi atrapalhada, aos gritos, por Seu Nicola, quando subiu ao arame,
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deixando a artista indignada.
O narrador não deixa de mencionar que os capangas acompanham, com
atenção, a pantomima, transcorrendo no palco, mas, com cara de quem sabe
de tudo, com antecedência, o que era verdade, pois, no dia anterior, foram buscar
o passo a passo da trama, com Evaristo, o carroceiro. Assim, sabem que o Príncipe
e Margarida tornaram-se amantes, e, pior, o Marques soube de tudo. O Bobo
Piccolino, humilhado, traíra seu Príncipe, ajudando o Marquês, pois sabia que os
dois amantes se encontravam toda noite. Piccolino levava a moça para se
encontrar com o amante, e, depois, a devolvia à prisão, além de levar comida pra
ela na torre. O Bobo fingia amizade com a prisioneira e levava os segredos dela
para o Marquês. O Príncipe prometera livrar o pai, mas o Marquês começou a
preparar a revolta com os outros nobres. O Marquês queria também conquistar
Margarida, propondo-lhe casamento em troca de liberdade, mas a prisioneira não
cedeu.
O carroceiro Evaristo havia contado a Adão, que, na pantomima, tinha uma
cena de assalto ao Castelo, e que ele seria um figurante a pular em cena com um
bacamarte. Essa informação passou a ser valiosa para os planos dos dois
capangas.
No terceiro ato do drama, Bartolomeu está preparando a fuga. Na sala do
trono do castelo, entra o Seteiro das muralhas cambaleando, contando sobre a
ponte levadiça e o Marquês. Todos se revoltam e chamam às armas. O Marquês
salta pela janela de pistola em punho, quando, então, ouve-se, na cena, um
primeiro disparo da pistola do Marquês.
No outro plano de cena, dentro do mesmo circo, mas próximo à cena que
transcorre, Zito desliza por perto da cortina, procura pelo velho, Seu Valico Ribeiro.
Tiros saídos de todos os cantos, cheiro de pólvora pelo ambiente. Zito se prepara
e atira em Seu Valico. Na cena... continuavam os tiros. Minutos mais tarde, lá fora,
o cabo de polícia tenta estabelecer a ordem. Zito do Adão e Miliano preparam-se,
em seus cavalos, para a fuga.
A narrativa de Chapadão do Bugre não se conclui com essa representação do
circo e a pantomima apresentada. A fuga e a caçada a José de Arimatéia, e sua
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mula Camurça, prosseguem ainda, por muitos capítulos, mas como não é nosso
objetivo uma análise de todo o romance, não mencionaremos seu desfecho, para
que o leitor tenha a curiosidade de visitar toda a obra e realizar seus caminhos e
conclusões acerca dessa saga pelos rincões de Minas Gerais.
Para o momento, vale sublinhar que essa particular história de Mário
Palmério, no tocante à questão circense, aproxima-se do que investigaram alguns
estudiosos do circo e da história da espetacularidade no Brasil, quando
reconhecem que as apresentações de pantomima possuem profunda importância
na consolidação da arte circense, mas também no estímulo da criação de palcos
teatrais, e, mais que isso, na disseminação de apresentações de circo-teatro, pelos
principais centros urbanos brasileiros, já desde o final do século XIX (Merisio, 1999,
p. 27).
A narrativa do autor mineiro possui ambientação nesse mesmo contexto em
que a história das artes circenses no Brasil debate as origens do circo e do circo-
teatro. Muitas semelhanças também com a pantomima narrada pelo romancista,
pois, desde o século XIX, tornara-se um grande chamariz dos espetáculos
circenses.
Ao inserir essa pantomima em sua narrativa, mais uma vez, Mário Palmério
induz o leitor a perceber características do que foi o circo-teatro em algumas
partes do Brasil, entre o final do século XIX e princípio do século XX. A inserção de
peças de teatro, na parte final das apresentações, aproximava o público de
repertórios tais como o melodrama, a comédia, as burletas, e, também, de
adaptações de folhetins literários. O circo e a pantomima de Palmério instigam o
leitor a pensar numa das importantes características do circo-teatro, que era a
capacidade de chegar nos mais distantes rincões do interior brasileiro para
satisfazer a necessidade ficcional e de diversão de seus habitantes.
Por este ponto de vista, são possíveis aproximações entre as incipientes
experiências circenses brasileiras e o circo imaginado e ficcionalizado por Mário
Palmério, que, além dos números acrobáticos, animais ferozes, palhaço na rua,
ainda apresenta a pantomima como atração para o povo. Palmério também
sugere, com essa intersecção entre circo e teatro, um interessante diálogo com os
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estudos circenses, pois nos permite discutir que nossas experiências com o palco
italiano não são simplesmente uma importação europeia, mas foram também
forjadas no diálogo com o circo e suas concepções de espetacularidade a partir
do século XIX.
Assim, isso aponta para importante direção na definição de palco, mas
também de uma história própria de atuação, mais devedora das experiências
circenses e populares do que das grandes vanguardas estéticas e literárias
europeias.
Os artistas das mais diferentes origens e experiências homens e
mulheres , com suas representações teatrais, gestuais e musicais, ao
trabalharem no espaço que combinava picadeiro e palco, consolidavam
o intercâmbio de saberes e técnicas que esboçavam um novo tipo de
atuação. A interação das técnicas espetaculares entre o teatro e o circo
a crescente busca pelo domínio e a utilização da mímica pelo ator da
época. [...]. O espaço circense consolidava-se como um local para onde
convergiam diferentes setores sociais, com possibilidade para a criação
e expressão das manifestações culturais presentes naqueles setores.
Através de seus artistas, em particular os que se tornaram palhaços
instrumentistas/cantores/atores, foi se ampliando o leque de apropriação
e divulgação dos gêneros teatrais, dos ritmos musicais e de danças das
várias regiões urbanas ou rurais, elementos importantes para se entender
a construção do espetáculo denominado circo-teatro (Silva, 2007, p. 82-
83).
A incipiente organização de arquivos e fontes de pesquisa sobre artes cênicas
no Brasil ainda é uma realidade, mas que vem se transformando aos poucos.
Iniciativas de artistas, de universidades e de órgãos públicos, têm contribuído
muito para isso, no entanto, ainda muito o que se fazer. Enquanto isso
acontece, os pesquisadores podem também lançar mão de algumas
possibilidades, tal como foi nosso percurso neste artigo, que, a partir de uma obra
romanceada, identificou aspectos da representação circense, em seus detalhes,
em trechos da narrativa de
Chapadão do Bugre
, de Mário Palmério.
O escritor mineiro, na sua narrativa, por meio de seu vocabulário, e pela
descrição de uma paisagem regional, tece uma representação do final do século
XIX e início do século XX, em Minas Gerais. Ambienta a chegada e presença das
artes circenses, nas vilas e povoados, descrevendo as características dos
espetáculos daquele período, como sendo uma miscelânea de animais, artistas,
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acrobacias e pantomimas.
Mas o trecho da obra
Chapadão do Bu
gre, que traz ao leitor essa chegada do
circo e sua passagem pelo interior, não alcança nem dez por cento do número de
páginas da obra. Mesmo assim, possui sua força, por ser uma narrativa de viagem
e de fuga, simboliza um hiato, na linha narrativa principal, mesmo que o
personagem central, José de Arimatéia, não apareça fisicamente no trecho. Ainda
assim, os coronéis da região estabelecem uma disputa por vingança em meio à
chegança do circo.
O narrador, que observa essa chegada do circo, assume o lugar de alguém
que comtempla a tudo e a todos, se posiciona fora das tensões e conflitos, dando
voz àqueles que estão nas janelas, ou que são autoridades públicas da cidade. Os
artistas, trabalhadores da arte, apenas passam, desfilam pela rua principal, suas
vozes não aparecem. Pouco se sabe de suas origens, de onde vieram e para onde
vão, após essa cidade.
Ainda assim, o circo de Mário Palmério é apenas um capítulo de sua vasta
obra intitulada
Chapadão do Bugre
, mas a riqueza de detalhes da chegada,
instalação e apresentação da arte circense, num distante povoado, nos faz lembrar
a magia que os circos representavam. Sublinha também a importância do circo na
constituição da rica espetacularidade de nosso país, nos lembrando da necessária
presença das companhias e dos artistas mambembes, na composição de nossa
história da cena.
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UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br