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Na rua, no hospital, por debaixo da máscara:
palhaçaria como potência transformadora
Vitoria Carine da Silva
Para citar este artigo:
SILVA, Vitoria Carine da. Na rua, no hospital, por
debaixo da máscara: palhaçaria como potência
transformadora.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0302
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Florianópolis, v.1, n.46, p.1-14, abr. 2023
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Na rua, no hospital, por debaixo da máscara: palhaçaria como
potência transformadora
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Vitoria Carine da Silva
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Resumo
O presente artigo traz relatos de experiências vividas no hospital a partir do
olhar de uma palhaça que inicia sua trajetória na rua, vai para a Universidade,
passa pela docência e hoje pesquisa em um hospital. A partir dos relatos -
chamados de relatórios
bobológicos
fez-se uma reflexão sobre a potência
transformadora da palhaçaria enquanto ferramenta de subversão, seja qual
for o ambiente escolhido de atuação. O primeiro relatório
bobológico
é da
primeira visita ao hospital, visita de “cara limpa” (sem estar de palhaça), e os
dois últimos relatórios são após quase um ano de atuação.
Palavras-chave:
Palhaçaria. Palhaçaria hospitalar. Teatro de rua. Palhaço de
rua. Máscaras teatrais.
Clowning in the street, at the hospital, and under the mask: the
transformative power of clowning
Abstract
This paper presents a clown woman's experience of life in the hospital as a
result of her journey on the street, her time at the university, and today as a
researcher and teacher in a hospital. Based on the reports - called bobological
reports - a reflection was made on the transforming power of clowning as a
tool of subversion, whatever the performance environment. The first
bobological report is based on the first visit to the hospital, a “clean face” visit
(without acting as a clown), and the last two reports are after almost a year
of acting.
Keywords
: Clowning. Hospital clowning. Street Theater. Street clown.
Theatrical masks.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Rodrigo Ribeiro Conceição, formado em
Letras - Português/Linguística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo.
2
Mestranda pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduada em Coordenação Pedagógica pela FCE e
Neuropsicopedagogia pela UniFCV. Graduada em Licenciatura em Arte-Teatro pela UNESP. Palhaça pela
Formação para Jovens Palhaços dos Doutores da Alegria. Palhaça Hospitalar (Bobologista) pelo Instituto
Socio Cultural de Barretos. vitoriacarine@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/3439373580193875 https://orcid.org/0000-0002-7564-1596
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En la calle, en el hospital, bajo la máscara: el clown como poder
transformador
Resumen
Este artículo presenta los relatos de las experiencias vividas en el hospital
según la mirada de una mujer payasa que inició su trayectoria en la calle,
después ingresó en la Universidad, se dedicó a la docencia y en la
actualmente hace un labor de investigación artística en un hospital. A partir
de los reportajes -llamados reportajes bobológicos- se hizo una reflexión
sobre el poder transformador del clown como herramienta de subversión ,
independiente del ámbito de actuación elegido. El primer reportaje
bobológico es la primera visita al hospital, una visita de “cara limpia” (sin ser
payaso), y los dos últimos son de casi un año después de actuar.
Palabras clave
: Payasadas. Payasadas de hospital. Teatro de calle. Payaso
callejero. Máscaras teatrales.
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Introdução
Minha primeira escola de palhaçaria foi um espaço público. Foi na rua que
aprendi a aquecer trabalhando, ensaiar apresentando e aprender fazendo. Vivia
entre a rua e a sala de aula, entre a artista de rua-palhaça e a arte-educadora-
palhaça, levando o que aprendia de um espaço para o outro: eu era uma gangorra.
Para entender esses espaços me recorro a uma entrevista da Grada Kilomba
3
,
cedida ao jornal diário EL País em 2019, na qual a pesquisadora, ao explicar sua
obra, aponta que o aprendizado tem se dado de forma muito patriarcal e fálica: a
escola é dada por série (1° série, 2°, 3°…), depois você vai para a graduação, pós-
graduação, mestrado, doutorado… e o aprendizado vai "crescendo" sempre assim,
fálico, para cima. Daí ela defende que o conhecimento é, na verdade, muito mais
cíclico, circular, e vai se dando por diferentes atravessamentos em diálogo com
diversos formatos
4
.
A partir desse pensamento, escrevo hoje para pensar a potência do crescer
enquanto artista-educadora-pesquisadora como um movimento cíclico, e não
fálico. O medo que sempre me atravessou em meus processos vinha justamente
dessa lógica em que a queda o erro pode ser fatal: cair de cima parecia doer
mais, além de ser preciso subir tudo de novo… Só que não tem queda numa mola,
o que tem é movimento, sem contar que o erro é o maior material de trabalho na
palhaçaria. Escrevo hoje na tentativa de trazer para o debate esse erro enquanto
ciclo, movimento, processo, mola e, por que não, enquanto acerto.
Alguns anos e uma pandemia me separam um pouco da rua, mas foi na rua
que me apaixonei pela estrada. No intervalo entre uma apresentação e outra, me
imaginava no meu fusca pela estrada com um espetáculo no porta-malas. Pensava
que era engraçado o porta-malas do fusca ser na frente e não atrás: artista no
3
Escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar portuguesa. Reconhecida internacionalmente pelo seu
trabalho acerca da memória, trauma, gênero, racismo e pós-colonialismo.
4
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/19/cultura/1566230138_634355.html. Acesso em: 14
jan. 2023
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fusca é guiada pelo seu processo
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artístico. Sentia que eu poderia viver assim:
entrando nas ruazinhas que apareciam no meio do caminho só para experimentar
o café coado de tudo quanto é mesa de toda gente possível, enquanto ouvia os
causos que nos fazem conhecer o nosso país pelos detalhes.
O tão sonhado fusca até hoje não rolou, ainda que eu continue achando que
combina muito comigo. A viagem segue sem estrada, ainda de nariz vermelho. É
ele que tem entrado nas ruazinhas das intimidades alheias, nas ruelas minuciosas
de um cotidiano hospitalar, e é aqui que talvez comece esse relato de fato:
partindo da premissa de que ser palhaça é viver na estrada, ainda que a casa agora
tenha chão.
Interior de São Paulo, 14 de março de 2022
O trabalho começa na segunda-feira às 7h, quando chego de São Paulo de
mala e cuia e sou recebida com café da manhã mineiro. Pouco depois do café e
de descobrir que o tal sujeito com quem eu iria dividir a casa, e os palcos
hospitalares, fala pelos cotovelos, fui conhecer os hospitais pelos quais planejava
passar os próximos anos. Ainda não sabia que essa pequena tour poderia mudar
toda a concepção que um dia eu tive sobre o que é saúde. Ali, acessando os
corredores e uma rotina nosocomial, fui entendendo a saúde como algo integral,
que começa na família, passa pela comunidade, acessa as escolas, espaços
culturais, numa política de integralidade e equidade que conta com a prevenção,
cuidados especiais e qualidade de vida, dentro e fora dos hospitais. Claro que estou
falando do SUS.
Não que eu não soubesse que no hospital encontraríamos pessoas doentes,
mas ver, ao vivo, de cara, com os olhos e o coração abertos naquela segunda-
feira… não tive como não questionar como a palhaçaria poderia habitar aquele
espaço. Quando voltei para casa, comecei a mapear o que poderia ser feito, o que
da minha trajetória caberia ali, quais piadas eu tinha na mala e quais habilidades
5
Aqui me refiro a processo artístico e não produto (espetáculo), partindo do princípio de que a arte da
palhaçaria estará sempre em processo, pois se modifica a partir do seu público. Nesse sentido, defendo que
na palhaçaria não produzimos espetáculos (produto), mas sim processos.
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eu estaria segura o suficiente para bancar naquele ambiente: “acho que não tenho
nada”. No dia seguinte, começariam as visitas dos palhaços nos hospitais, onde eu
iria acompanhar cada dupla como “civil”, termo que usamos para quando não
estamos de palhaças/palhaços. Agora, sim, aqui começa o que viria a ser o meu
primeiro relatório bobológico
6
:
Hospital Oncológico Infantil, 15 de março de 2022
A gente pode entrar?!
A dupla de palhaços já é conhecida e esperada em todos os espaços daquele
pequeno hospital. Uma rotina que se inicia com “o que você está assistindo?” e
que transporta toda uma ala hospitalar que ainda não decorei o nome para
uma grande sessão de Vale a Pena Ver de Novo: será que é o X-Men que faz assim?
(imitação do X-Men) ou será que é o Homem-Aranha que é desse jeito? (imitação
do Homem-Aranha) sei! pode ser futebol! sei! pode ser TikTok
7
!
E, da curiosidade inicial pelo que se passava na tela do celular, todos da ala são
envolvidos nos filmes, danças e opiniões sobre o mundo de hoje e o que se
produzia antigamente. Por fim, nem me lembrava mais o que a criança estava
assistindo, porque, na verdade, nem importava mais.
Na UTI, o vidro que separa os palhaços de um pequeno paciente os obrigava
a explorar mil e uma formas de dizer “a gente pode entrar?” sem precisar dizer “a
gente pode entrar?”, em uma linguagem mediada pelo silêncio. Mesmo lá dentro,
o silêncio e as outras mil e uma formas de se comunicar permaneciam o jogo
continuava. No vidro ao lado, ainda ali na UTI, outro pequeno paciente, que
sedado e entubado. Os palhaços entraram e prontamente lhe contaram: “Ei,
fulano, nós estamos passando aqui para avisar que passamos aqui!”, partilharam
fofocas e saíram tocando uma música para que a criança não tivesse nenhuma
dúvida de que eles passaram ali mesmo. Assim, naquele dia, ele não ficou sozinho
na UTI. A civil, que apenas observava, nesse momento se emocionou e lembrou
6
Todo mês as e os palhaços produzem os relatórios bobológicos, trazendo suas reflexões sobre algum causo
que aconteceu naquele mês.
7
O
TikTok
é uma rede social de compartilhamento de vídeos curtos.
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que naquele mesmo horário no dia anterior ela estava se perguntando como é que
a palhaçaria estaria ali. Esse é o problema: ela pensava como civil.
Hospital de Cuidados Paliativos, 16 de março de 2022
Será que no quarto em que se reza, o palhaço é sagrado?
O trabalho começa na escadaria. Ainda sem o nariz, o bom dia, as fofocas e
os “que saudade” instauram a recepção dos palhaços naquele espaço: se a
linguagem acontece só depois que se coloca o nariz, estamos fazendo muito mal
uso – com muito desperdício – das possibilidades que aquela máscara nos atribui
em vida.
As entradas são sutis, as construções justas e as saídas são no ápice: numa
boa tirada. Os palhaços se dispõem a ouvir e compreender as histórias dos
pacientes, que se divertem com a subversão da própria história nas mãos dos
palhaços. Como, por exemplo, João e a Maria, que estão lá no final do corredor e
nos revelam que o início daquele romance era digno de filme da sessão da tarde.
Aos palhaços, cabe a beleza que é poder recriar essa história de início onde
diagnósticos apontam um fim.
Alguns quartos à frente do casal, outra cena em que a civil assume algumas
perguntas: onde cabe a palhaçaria entre o choro da acompanhante e a partida do
paciente? O que dizer ou melhor, por que dizer? Ouvir onde cabe a nossa
presença, e também a nossa ausência, talvez seja o desafio de existir mais bonito
que alguém já me ofereceu nessa linguagem.
Por fim, o palhaço segue sendo o ritmo na sessão de fisioterapia: o
movimento dos braços vira a
olaaaah
que todos do quarto fazem juntos, os
movimentos dos dedos é o “chispa sai daqui” que abertura para descobrir de
quem o paciente não gosta e tem o desejo de colocar a vassoura atrás da porta
quando chega para que não volte mais. Ele não disse, mas os palhaços lançaram
suspeitas que não foram comprovadas por ninguém: o importante é instaurar a
intriga e deixar assunto no ar para que eles conversem depois que a consulta dos
bobologistas
acaba.
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Hospital Oncológico Adulto, 17 de março de 2022
A função social do palhaço é derrubar a autoridade do
policial, submetendo-o ao papel ridículo de bater palma durante
um “parabéns a você” de corredor
O título é quase a introdução de uma cena que eu, como civil, tentei processar
em microssegundos. O policial dentro do hospital acompanhava um senhor de
idade, bem debilitado, com os pés e mãos algemados. Na frente, um agente
comunitário atento e armado, com a esperança de que alguém ainda lembre
daquele senhor a ponto de algo acontecer, permitindo que eles vivam uma cena
de filme de ação. O prisioneiro, por si só, não levava a mesma esperança, pelo
jeito lento que caminhava.
Naquela mesma manhã, outra autoridade se quebra: um médico que decide
mostrar um samba no desengonçado que o Brasil nunca viu, mas que enche
de alegria os olhos de quem passa. Assim, a relação do corredor constrói o dia a
dia de quem habita ali e estabelece uma outra possibilidade de
desierarquia
. Como
o radar das cadeiras de rodas controla o trânsito de corredor: algumas com
habilitação vencida, outras perdendo pontos por excesso de velocidade, e os
palhaços instaurando naquele corredor um outro tempo e espaço que tornam a
passagem um acontecimento e, o corredor, um corredor.
Não sei o que me espera na semana que vem e nas outras que seguem: da
dupla com quem posso inventar vidas, do hospital em que poderei receber o
carinho da equipe, e muito menos o que encontrarei quando abrir a porta de um
quarto. Mas levo a confiança de que as relações acontecem porque as pessoas
desejam a vida: não essa que se apresentou num diagnóstico, mas uma outra
tatuada nos olhos, na pele, nas histórias e no olhar desconfiado que ainda permite
trocar, descobrir e cocriar.
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Fim do primeiro relatório bobológico. Início de outros.
Meses depois, já mais habituada à rotina de trabalho, chego na Santa Casa –
hospital de atendimento geral – para mais um dia de atendimento
bobológico
. Lá
no andar fomos solicitados, pelo pediatra responsável do setor, que fizéssemos
a liberação do
firoliro
com os residentes que o acompanhavam. Soltar o
firoliro
é
uma técnica internacionalmente desconhecida que consiste em uma dancinha
ridícula com passinhos mais ridículos ainda que permitem a liberação do
firoliro
cada um tem o seu. O pediatra em questão conhece essa técnica, pois havíamos
realizado o procedimento com ele semana passada, o que, segundo ele, fez com
que seu dia fosse bem melhor.
Pois bem,
firoliros
liberados, seguimos para começar o atendimento nas
internações, até que… O pediatra nos convoca novamente, dessa vez em
desespero:
-
Doutores, doutores! Preciso de um atendimento bobológico aqui, é uma
emergência! Precisamos dos bobologistas!
Prontamente fomos atender à emergência. Quando entramos no quarto, o
pediatra nos explicou: “o paciente está dizendo que ele aperta aqui e dói, quando
aperta ali dói também, se aperta ali dói! Onde ele aperta dói! Acredito que seja um
caso da especialidade de vocês!”
E ele não estava errado: além de liberação de
firoliro
, nós também cuidamos
de casos de dedo duro! Mostrei para o paciente um procedimento eficaz contra
dedo duro e fiz a minha recomendação
bobológica
: o que você acha de trocar de
dedo? Eu mesma faço a cirurgia, pode confiar! O paciente, que tinha por volta de
12 anos, prontamente disse
NÃO
e nós tivemos que abrir dedo do caso, digo, abrir
mão do caso para que o pediatra seguisse com outra investigação.
Apesar de ter ficado chateada com a expulsão do paciente, tenho plena
convicção que ele estará nas mãos de profissionais competentes, atenciosos e,
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principalmente, sem
firoliro
!
Meses depois desse incidente, dessa vez em outro hospital o oncológico
infantil estávamos realizando nosso atendimento
bobológico
na QT, onde é
realizada a quimioterapia e onde passamos todas as terças e quintas, faça chuva,
faça sol, embora não me lembre se nesse dia chovia ou fazia sol. O que me
recuerdo
desculpe, as lembranças começam a vir em espanhol é que
el
ñiño,
que é
hijo
de quem nos ensinou a música da qual eu vou falar aqui, seguia
dormindo debaixo das cobertas.
Apesar
del ñiño
estar sempre dormindo, sempre deixávamos um recado por
meio de sua
mama
. Em um desses encontros, perguntei se ela também gostaria
de dormir, e, assim que ela disse sim, nós percebemos um problema: não
conhecíamos nenhuma música de ninar em espanhol! Correria, aflição, sofrimento
e a solução: você pode nos ensinar? E com a voz de quem materializava uma
memória de infância, cantou:
Dorme-te nino, dormi-te mi sol
Dorme-te pedaço de mi corazón
Saímos da QT felizes com uma nova música no repertório e nos sentindo
honradas por receber esse presente que veio diretamente da sua memória, que,
pasmem, também fazia parte da memória do seu vizinho, cuja avó é espanhola e
cantava para ele dormir! Aiai, as coincidências…
Alguns dias depois desse encontro, ao retornarmos à QT para mais um dia
normal, fomos alertadas na ilha de enfermagem: é a última QT do encasulado (vou
chamá-lo assim), mas a avó dele faleceu hoje e a mãe dele está bem triste. Poxa,
justo hoje! Última QT! E queríamos tanto contar que a música que ela nos ensinou
fez sucesso! Que cantamos para o hospital inteiro! Como vamos chegar lá?
Entramos na QT com o
post-it
daquela informação no peito
8
, fazendo – sem
querer – um jogo aberto em que quase todos participavam. Um olho no jogo, um
olho nela. Ela estava de fato triste, parecia que chorava tímida, no canto. El ñiño
8
Aprendi essa expressão com Marcelo Marcon, que aprendeu com a Thais Ferrara, ambos palhaços que
atuaram no hospital. Para Thais, o palhaço deve ter informações coladas em post-it imaginários, mas não
necessariamente precisa usá-las. Mas caso precise, está ali para lembrá-lo.
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encasulado. De repente, num piscar de olhos, ela começa a se divertir com a
nossa bobeira. É a nossa chance. O jogo continua, um olho no jogo, outro nela. Ela
ri e nem percebe que está sendo observada. De repente a gente vê uma abertura,
chega mais perto e nos pergunta: vocês cantaram a minha música por aí? Siiim!
Cantamos muito, foi um sucesso! Mas vocês deram os créditos a mim, né? Claro!!!
Em meio a agradecimentos, contamos a ela como foi a nossa semana depois
que nos ensinou a sua memória, mas alertamos: essa música é perigosíssima!
Assim que a gente toca, as pessoas dormem instantaneamente! Então evitamos
tocar ela assim… E foi tocarmos para tentar lhe mostrar que, pasmem: ela
dormiu! Tocamos para acordar e ela acordou! E assim seguiu uma confusão
incontrolável em que ela dormia a cada nota e acordava a cada batida. Naquele
dia talvez eu tenha aprendido alguma coisa que ainda não sei dar nome. No dia
em que sua mãe com quem provavelmente deve ter aprendido essa e outras
músicas de ninar – havia dormido para uma eternidade, ela se permitiu brincar de
dormir e acordar com a gente.
Considerações finais
Trazer as experiências hospitalares para o debate da palhaçaria enquanto
potência de transformação é uma tentativa de nos provocar, enquanto artistas da
máscara, a acreditar na bobagem. Ao habitar um hospital, nós nos colocamos
diante do risco da construção de uma experiência coletiva e transformadora, e
esse risco não se instala pelo ambiente, mas sim pela máscara. Nenhum desses
acontecimentos se deram sozinhos, porque “um palhaço não se faz sozinho. Ele é
o resultado de muitos elementos” (Magalhães, 2007, p. 340). Para Magalhães, a
linguagem da palhaçaria pode ser o que ele chama de “instrumento ontológico da
humanidade” (Magalhães, 2007, p. 340), levando em consideração que é a partir
do humor que a palhaçaria revela uma visão de mundo, permitindo “um riso
transformador que nos revolucione em nossas visões e que possa fazer uma
humanidade mais potente e tolerante, mais compreensiva e autônoma”
(Magalhães, 2007, p. 340).
Depois de um ano dentro do hospital e relendo os relatórios
bobológicos
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produzidos ao longo deste ano, revivo o que os mestres sempre nos apontam
sobre essa máscara: ela é sempre o presente. Sempre. Existe sempre algo naquele
instante que pode ser tocado, transformado, sensibilizado, revelado. Ainda que no
passado (mesmo que 10 segundos atrás) o presente estava coberto de angústia,
dúvida, desprezo. O presente, esse que a palhaçaria traz, pode ser uma outra coisa.
E acreditar na potência de que os momentos podem ser outra coisa é o que faz a
palhaçaria ser transformadora.
É preciso, no entanto, tomar cuidado com os dias em que “deus me tira a
poesia, olho pedra vejo pedra mesmo” (Prado, 2021, p. 146 [1991]) e perdemos a
dimensão do presente. Enquanto palhaças e palhaços precisamos treinar nosso
olhar para que a gente sempre encontre poesia no cotidiano e a pedra nunca seja
só uma pedra.
Observar, por exemplo, uma folha pequenininha enroladinha se abrir um
pouquinho a cada dia até virar gigante. Observar o mundo com o nariz - a inocência
- e permitir que o mundo nos ensine. As plantas, por exemplo, diferente da escola,
me ensinaram que crescer leva tempo. Que o tempo tem o tempo que o tempo
tem. Que crescer é para todos os lados, inclusive para dentro. Que na mesma raiz
que nasce folha nova, também morre outra. E é assim que a gente cresce:
deixando vir coisa nova que precisa vir e deixando cair o que não cabe mais. Para
abrir a porta de um quarto ou pisar num palco, é preciso estar no presente.
Aprendi que o cérebro é um órgão com plasticidade, diferente do coração
que é rígido. E entendi a convergência entre medicina e palhaçaria: ama com
plasticidade quem ama usando a razão, não o coração. A rua e o hospital foram
os espaços onde cresci e amei como palhaça, onde fui amada, onde fui coragem
e potência. Onde fui mola. Para ser palhaça, é preciso plasticidade.
Aprendi que não tem como ensaiar o momento certo de entrar e sair de cena,
mas tem como treinar nosso olhar a saber o momento certo para que o presente
deixe rastros, fendas, rasgos, desejos, dúvidas, revolta. Meu desejo é que todos os
espaços sejam ocupados pela subversão: que voltemos a ocupar a vida e fazer
com que a cidade e os espaços públicos se tornem novamente um lugar perigoso
do encontro, do debate, da diversidade e do amor. Fazer o medo mudar de lado
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usando as nossas ferramentas. Lembrar que existe muita força no encontro, no
olhar, no silêncio, na paixão, na dança, na bobagem.
Contraditoriamente, o poder de subverter é o que vai nos permitir, enquanto
palhaças e palhaços, adentrar todos os espaços possíveis. Ruas, hospitais,
presídios, escolas, casas… onde houver a necessidade do encontro, estaremos lá.
Onde houver gente, estaremos lá. É assim que a gente faz política:
independentemente se em espaço aberto ou fechado, a política se faz no
encontro. A subversão é uma necessidade humana, a subjetividade é uma
necessidade de sobrevivência. Para ser palhaça, é preciso subversão e
subjetividade.
Aprendi que nem todo barulho é proposta, às vezes é barulho: uma
tentativa desesperada de preencher o poderoso espaço do vazio que é onde o
encontro e a conexão acontecem. Em tempos barulhentos, lembrar sempre de
Guimarães Rosa: “o que há de ser tem muita força” (Rosa, 2006, p. 318). O espaço
vazio também constrói porque nunca é só o vazio: é sempre algo que pode ser, e
isso tem muita força. A palhaçaria é uma linguagem onde moram todas as
possibilidades.
Que acreditemos cada vez mais nessa força que nos permite seguir brincando
no risco que é o espaço-tempo do “há de ser”, que é o que atribui ao presente
suas infinitas possibilidades de criação do futuro. Se o presente tem muita força
porque cria um futuro possível e a máscara da palhaçaria vive no presente, somos
responsáveis, também, por incluir uma nova possibilidade de futuro a partir da
bobagem. Ser mola talvez seja um pouco disso: acreditar na bobagem, permitir o
espaço das possibilidades e seguir criando futuros.
Referências
MAGALHÃES, Ésio. Uma perspectiva da palhaçaria contextualizada ao hospital:
entrevista com Ésio Magalhães. Entrevista concedida a Daiani Cezimbra Severo
Rossin Brum e Karenine de Oliveira Porpino.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v.1, n.28, p. 333-341, julho 2017.
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PRADO, Adélia.
Poesia Reunida
- 7. ed. - Rio de janeiro: Record, 2021.
ROSA, João Guimarães.
Grande Sertão: Veredas
. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
Recebido em: 29/01/2023
Aprovado em: 17/04/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br