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O processo documental no espetáculo
Mi Vida Después
: a transformação
da vivência em experiência
Ernesto Gomes Valença
Letícia Pavão Schinelo
Para citar este artigo:
VALENÇA, Ernesto Gomes; SCHINELO, Letícia Pavão. O
processo documental no espetáculo
Mi Vida Después
: a
transformação da vivência em experiência.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2,
n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0204
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O processo documental no espetáculo
Mi Vida Después
: a transformação da vivência em experiência
Ernesto Gomes Valença; Letícia Pavão Schinelo
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
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O processo documental no espetáculo
Mi Vida Después
: a
transformação da vivência em experiência
1
Ernesto Gomes Valença
2
Letícia Pavão Schinelo
3
Resumo
O artigo propõe uma análise da peça
Mi Vida Después
, da encenadora
argentina Lola Arias, considerando o modo como a combinação de elementos
testemunhais, de representação e de apresentação de documentos
estabelece sobreposições temporais no espetáculo. O tempo da ditadura
militar argentina, vivido pelas atrizes e atores quando ainda crianças, é
colocado em perspectiva com o tempo atual dos personagens adultos,
configurando o tempo da representação propriamente dita. Esse jogo de
temporalidades é analisado a partir do contraste entre as noções de
“experiência” e “vivência” na obra de Walter Benjamin e, em especial, do
conceito de “estrutura de sentimentos”, desenvolvido por Raymond Williams.
Por fim, levando em conta essa sobreposição de temporalidades, são tecidas
considerações sobre um espetáculo de treze anos atrás, criado no contexto
cultural e social da Argentina, e se ele teria algo a dizer ao Brasil atual.
Palavras-chave
: Teatro político. Teatro e audiovisual. Teatro documentário.
Lola Arias. Raymond Williams.
1
Revisão ortográfica e gramatical da primeira versão realizada por Hélverton Baiano. Jornalista, escritor, poeta
e cronista. Pós-Graduação em Português (UFG). Formado em Jornalismo (UFG).
helvertonbaiano@gmail.com . Revisão ortográfica e gramatical final realizada por Rosimar de Fátima
Schinelo. Doutora em Linguística e Língua Portuguesa (UNESP). Mestra em Linguística e Língua Portuguesa
(UNESP). Licenciada em Letras (UNESP). .rfs.daleth@gmail.com
2
Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG - 2014). Mestrado
pela mesma instituição (2010). Graduação em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo
(ECA/USP - 2002). Professor de Pedagogia do Teatro da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
ernestovalenca@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0934583574013716 https://orcid.org/0000-0001-5419-9383
3
Licencianda em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
leticia.schinelo@aluno.ufop.edu.br
http://lattes.cnpq.br/8378868613107042 https://orcid.org/0000-0002-8539-957X
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The documentary process in the play
Mi Vida Después
: the
transformation of livingness into experience
Abstract
The article proposes an analysis of the play
Mi Vida Después
, by the Argentine
director Lola Arias, considering how the combination of testimonial elements,
representation, and document display establishes temporal overlaps in the
play. The time of the Argentine military dictatorship, lived by the actresses
and actors when they were still children, is put into perspective with the
current adult time, configuring the time of the representation itself. We
analyze this interplay of temporalities from the contrast between the notions
of "experience" and "lived experience" in Walter Benjamin's work and,
especially, from Raymond Williams's concept of "structure of feelings." Taking
into account this overlapping of temporalities, we finally consider whether a
play from thirteen years ago, created in the cultural and social context of
Argentina, would have anything to say to Brazil today.
Keywords
: Political theater. Theater and audiovisual. Documentary theater.
Lola Arias. Raymond Williams.
El proceso documental en el espectáculo
Mi Vida Después
: la
transformación de la vivencia en experiencia
Resumen
El artículo propone un análisis de la obra de teatro
Mi Vida Después
, de la
directora argentina Lola Arias, considerando cómo la combinación de
elementos testimoniales, la representación y la presentación de documentos
establece superposiciones temporales en la obra. La época de la dictadura
militar argentina, vivida por las actrices y actores cuando aún eran niños, se
pone en perspectiva con la época adulta actual, configurando el tiempo de la
propia representación. Este juego de temporalidades se analiza a partir del
contraste entre las nociones de "experiencia" y "experiencia vivida" en la obra
de Walter Benjamin y, en especial, a partir del concepto desarrollado por
Raymond Williams de "estructura de sentimientos". Por último, teniendo en
cuenta esta superposición de temporalidades, se reflexiona sobre si una obra
de teatro de hace trece años, creada en el contexto cultural y social de
Argentina, tendría algo que decir al Brasil actual.
Palabras clave
: Teatro político. Teatro y audiovisual. Teatro documental. Lola
Arias. Raymond Williams.
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Este texto analisa o espetáculo
Mi vida después
, da encenadora argentina
Lola Arias
4
. A artista é reconhecida pela criação de um teatro que combina
testemunhos, representações e exibições de documentos, e que transita entre o
terreno do documental, do político e do sensível, sempre com um interesse na
memória das e dos atuantes com quem trabalha. O espetáculo foi montado em
2009 como parte do Ciclo Biodrama, coordenado por Vivi Tellas no Teatro
Sarmiento, em Buenos Aires, e foi apresentado no Brasil em diversos festivais,
desde 2010.
O artigo é resultado da pesquisa
Dimensão política do audiovisual no teatro
,
que visa investigar as formas como os meios audiovisuais são mobilizados por
experiências de teatro político na cena contemporânea. Desenvolvida no âmbito
do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal de Ouro Preto entre março de 2020 e janeiro de 2022, a
pesquisa resultou, além deste artigo, na elaboração de diversas aulas e
apresentações em seminários.
A encenação é abordada como uma estrutura de sentimentos, conforme
proposto por Raymond Williams: um processo que transforma as vivências
individuais das
performers-atrizes
e atores em experiência compartilhada. A
sobreposição de temporalidades, que pontua o espetáculo, constitui o principal
mecanismo dessa estrutura de sentimentos, organizando experiências e memórias
das atrizes e atores em diálogo com a história recente do país. Sugerimos,
também, um último questionamento: se um espetáculo de treze anos atrás, criado
no contexto cultural e social da Argentina, ainda tem algo a dizer ao Brasil atual.
Atos de memória
No artigo
El teatro antes del futuro: sobre Mi vida después
de Lola Arias,
Pamela Brownell (2009) estabelece quatro níveis performáticos presentes na obra
4
Mi vida después (2009). Texto e direção: Lola Arias (escrita a partir de material original aportado pelos atores);
Atuação: Blas Arrese Igor, Liza Casullo, Carla Crespo, Vanina Falco, Pablo Lugones, Mariano Speratti e Moreno
Speratti da Cunha. Dramaturgia e produção: Sofía Medici; Música: Ulises Conti (composta com a colaboração
de Liza Casullo e Lola Arias); Coreografia: Luciana Acuña; Cenografia: Ariel Vaccaro; Vídeos: Marcos Medici;
Iluminação: Gonzalo Córdova; Figurino: Jazmín Berakha; Assessor de pesquisa: Gonzalo Aguilar; Fotos:
Lorena Fernández; Produção técnica: Gustavo Kotik (Arias, posição 2400, 2016).
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em questão que correspondem a formas através das quais as
perfomers-atrizes
e atores se aproximam de suas próprias histórias e das histórias de suas mães e
pais. São eles, segundo a própria autora:
Testimonio (cuando se habla de lo propio en primera persona);
remake
(cuando los hijos toman el lugar de los padres,
rehaciendo
sus
circunstancias en primera persona); representación (cuando se encarnan
los personajes de la historia del otro) y acción (cuando lo que se hace no
está en función de narrar o recrear esas historias, sino de construir
momentos de
pura perfomance
) (Brownell, 2009, p.05).
Ainda segundo Brownell, esses diferentes níveis de performance estão ligados
ao interesse de Lola Arias por um teatro da não-representação, mas que não se
restrinja à noção do documentário. Seu teatro amplia as fronteiras entre ficcional
e documental, recorrendo a referências diversas. Para as pesquisadoras Rafaella
Uhiara e Denise Cobello, “seu modo de fazer documentários tem uma dupla
filiação: a do teatro neo-documentário e da arte política argentina dos anos 1960-
70” (Uhiara; Cobello, 2021, p.8).
Essa diversidade de referências se reflete num modo peculiar de lidar com
as lembranças e memórias dos performers em cena, em que o documento não é
tratado como monumento dedicado à preservação do passado. É possível dizer
que o teatro de Lola Arias se aproxima do que a pesquisadora Silvia Fernandes
entende como “práticas performativas” que concebem “arquivos como atos e
modos incorporados de memória” (Fernandes, 2021, p.3). Fernandes propõe uma
renovada abordagem sobre a presença do documental no teatro contemporâneo
baseando-se nas análises de Rebecca Schneider, pesquisadora filiada à
perspectiva dos estudos da performance cultural (
cultural performance
). Segundo
Fernandes (2021, p.7),
Schneider valoriza as formas incorporadas da memória que se
apresentam na fala ao vivo, no gesto repetido, na ação ritual e em outros
modos desvalorizados de performance, que considera “arquivos como
atos”. “A memória pode habitar um corpo”, argumenta a autora,
lembrando que os corpos são
sites
em que passado e presente negociam
a transmissão memorial ao vivo. Assim, um testemunho ou um encontro
entre corpos engajados na performance podem funcionar como
incorporações da memória coletiva e, por isso mesmo, questionar a
noção tradicional de arquivo.
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Os quatro níveis performáticos apontados por Brownell, constantemente se
interpenetrando e se misturando durante toda a peça, podem ser entendidos
como forma de organizar esses modos incorporados de memória e essa
apresentação de arquivos como atos, especificamente na encenação de
Mi vida
después
. Construída a partir do entrelaçamento de teatro e autobiografia, os
relatos pessoais de seis vidas, cujas infâncias e juventudes foram marcadas pela
ditadura militar na Argentina (1976-1983), funcionam como incorporações da
memória coletiva e se transformam na reconstituição pública da história do país.
Os papéis das histórias privadas são revezados por todos os atores,
utilizando-se de jogos teatrais simples, marcados pela forte presença de
documentos (fotos, vídeos, roupas, livros, áudios gravados etc.) e o uso do
audiovisual que trazem um
status
de “verdade” às cenas, reafirmando a
experiência dos documentos vivos ali presentes
5
.
Essa tessitura de teatro e autobiografia é marcada ainda por uma
sobreposição temporal complexa tempo de quando eram crianças e vivenciaram
os horrores da ditadura, tempo atual de adultos que precisam se adaptar ao
mundo contemporâneo e tempo da representação propriamente dita que se
coaduna com os níveis de performatividade apontados por Brownell e que reforça
a constante oscilação entre representação e não representação na peça. Como
apontaremos mais à frente, nessa obra específica o tempo da representação foi
capaz de ressignificar as outras duas temporalidades. De todo modo, ainda que
ocorra em toda a encenação, as passagens em que o audiovisual é mobilizado são
as mais propícias para perceber a sobreposição de tempos a que estamos nos
referindo.
O documento audiovisual em
Mi Vida Después
A apresentação de documentos no espetáculo é feita pelo uso de um
5
Ao levantar as características chaves sobre um processo de Teatro Documentário, Soler (2010, p.69-70),
ressalta, primeiramente, "a intencionalidade de documentar, e por consequência, a relação que os envolvidos
têm com os dados de não ficção e o trabalho a partir e sobre eles", e, em seguida, a diferenciação dos dados
como textuais, sonoros imagéticos, plásticos todos encontrados no espetáculo de Arias e documentos
vivos, quando a presença física das pessoas-alvo da documentação ou envolvidas na situação
documentada, exatamente o caso de cada atriz e ator da peça.
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retroprojetor que nos permite ver, ao fundo do palco, fotos, objetos manuseados
durante as cenas e imagens em tempo real de parte dos atores. De maneira geral,
a interação sobre os documentos presentes reafirma as narrações. É o que
podemos ver na cena
Fotos de infância
, em que Vanina, iluminada por um foco de
luz no canto esquerdo do proscênio, narra em um microfone a história de fotos
de sua infância, projetada ao fundo do palco
6
. Na foto veem-se três homens, seu
tio, pai e avô que, para a atriz, possuem todas as características de policiais.
Enquanto Vanina comenta cada uma dessas características, alguém circula em
uma película transparente sobre a foto com caneta hidrocor vermelha,
respectivamente, os rostos, os bigodes e as mãos apoiadas nas cinturas destes
homens.
Figura 1 -
Mi vida después
, 2009
7
6
As indicações espaciais do cenário e as ações em cena podem ser visualizadas em vídeos e fotos do
espetáculo bem como constam da dramaturgia oficial, de onde foram colhidos os tulos das cenas e cuja
designação completa se encontra nas Referências deste artigo. Trechos do espetáculo podem ser vistos nos
endereços: https://vimeo.com/47814295?embedded=true&source=vimeo_logo&owner=12730434 Acesso
em: 13 nov. 2021; https://www.youtube.com/watch?v=liux0An8W7E&t=244s Acesso em: 13 nov. 2021. A esse
respeito, ver também a aula magna de Lola Árias, realizada pelo Centro Dramático Nacional da Espanha,
Madrid, em que muitos dados da montagem são detalhados, no seguinte endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=BW8J9z8aJQA Acesso em: 13 nov. 2021.
7
Fotograma de vídeo com trechos do espetáculo, encontrado no endereço:
https://vimeo.com/47814295?embedded=true&source=vimeo_logo&owner=12730434)
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Logo em seguida, vemos outra foto, com sua mãe, o irmão recém-nascido e
Vanina ainda criança. Para demonstrar sua confusão com a chegada do irmão,
que ela não se lembra de ter visto a mãe gestante, desenha-se na foto, também
com caneta vermelha, um ponto de interrogação e linhas que interligam as
personagens da história. Ao longo das apresentações da peça, a atriz descobriu
que o bebê da foto descrita acima era na verdade filho de militantes políticos de
esquerda e havia sido sequestrado e entregue à guarda do pai da atriz, um policial
ligado à repressão - um tipo de crime infelizmente muito realizado pela ditadura
militar argentina. A apresentação de ambas as fotos poderia ser enquadrada como
um
testimonio
, segundo os níveis performáticos estabelecidos por Brownell.
Estes testemunhos (ou biografias) trazem uma qualidade viva, pulsante à
peça, que as mudanças da vida dos atores vão se incorporando às narrativas
encenadas a cada apresentação. A história de Vanina, por exemplo, que desejava
testemunhar contra o pai a favor de seu irmão adotivo, mas era impedida por lei
por seu vínculo consanguíneo com o acusado, transformou-se durante os anos
em que a peça foi apresentada. Em 2010, segundo ano de apresentações da peça,
o pedido para testemunhar apresentado diretamente à juíza do caso foi aprovado.
O que para Vanina era uma reivindicação pessoal transforma-se em fato histórico,
que permitiria a muitos outros familiares a possibilidade de testemunhar contra
seus pais
8
.
As outras histórias presentes na peça também são contadas em primeira
pessoa e de corpo presente, com o apoio de objetos que assumem papel de
testemunhos de vida. Segundo a pesquisadora María Fernanda Pinta, da
Universidade de Buenos Aires, “los objetos testimoniales cobran una particular
relevancia, ya que se presentan como indicios, como huellas de lo que está
ausente y se pretende hacer presente mediante la escenificación” (Pinta, 2013,
p.714).
8
Em entrevista ao jornal
Página 12
sobre a autorização da Câmara Federal da Capital de sua declaração contra
o pai, a atriz faz o seguinte comentário: En el juicio que lleva mi hermano, desde un principio, con los
abogados de [las] Abuelas [de Plaza de Mayo] empezamos a pensar que era importante que yo declarara
porque hay muchas cosas que puedo confirmar. [...] Fue un momento muy fuerte [cuando la cámara aprobó
el pedido]. [...] Es un fallo histórico: sienta el precedente de que una hija pueda declarar contra su padre y
esto habilitaría a que otros familiares puedan también hacerlo. Esto abre un campo importante para la causa
y lucha de Abuelas. Es una alegría y una gran responsabilidad” (Giménez, sem página, 2010).
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Destas e de outras cenas podem-se destacar inúmeras relações construídas
entre documento e inscrição da história pessoal de cada um, apoiados na
sobreposição de tempos e narrações a oral, narrada com a voz de cada filho e
filha sobre seu pai ou mãe; a evocada pela presença dos objetos pessoais; a
construída pelo manuseio destes e aquela formada pelo conjunto entre essas três.
É ainda Pinta (2013, p.714) que assinala que “la edición y yuxtaposición de
elementos heterogéneos configuran nuevos objetos estéticos y nuevas cadenas
de significación”. De modo similar, um imbricamento de temporalidades que
acompanha a justaposição desses elementos testemunhais, fazendo emergir uma
experiência temporal única e diferencial característica de
Mi vida después
.
Essa sobreposição de tempos pode ser bem observada na cena
Fotos de la
juventud
, em que se projetada uma foto de uma bancada de um noticiário
televisivo, no qual a apresentadora é a mãe de uma das atrizes. Liza, então, narra
que “cuando era joven, mi madre tenía dos caras. Por un lado, militaba en
Montoneros
9
, y por otro, era la chica bonita que dice las noticias detrás del
escritorio. En el programa, muchas veces tenía que decir noticias distorsionadas
por la censura” (Arias, 2016, posição 329). Em sequência, os atores carregam a
narradora, vestem-na com uma saia e blusa por cima de sua roupa e a colocam
sentada de modo que ocupe exatamente o lugar de sua mãe na foto (sua figura
misturando-se à projeção). Narrando as notícias, a atriz levanta uma folha de papel
ao nível do seu rosto, e a face da mãe novamente aparece, sobrepondo-se à filha,
ao mesmo tempo que a expressão de estranheza daquela contrasta com as
notícias represadas e disfarçadas do período ditatorial que são narradas por Liza.
Este jogo seria um
remake
, segundo os níveis performáticos apontados por
Brownell.
9
Organização marxista/peronista que lutou contra a ditadura militar argentina.
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Figura 2 -
Mi vida después
, 2009. Foto: Lorena Fernández
Esse momento é bastante exemplar, por vermos confundidos passado e
presente, documento vivo e dado imagético, com a alteração na história no
momento em que a atriz assume o lugar da mãe, ocultando a projeção com o seu
corpo. Mas há, em especial, o aparecimento de uma mão gigantesca, projetada no
fundo da cena, resultante da manipulação em tempo real das imagens. A
encenação contou com um dispositivo audiovisual num dos cantos do palco, com
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uma câmera posicionada a pino em cima de uma mesa, na qual são realizadas
intervenções sobre fotos e objetos, como rabiscos, círculos e anotações com
caneta. Como tais interferências são feitas ao vivo frente aos espectadores, a mão
da pessoa que manipula as fotos e os objetos acaba sempre aparecendo, nesta e
nas demais cenas do espetáculo. Esse aparecimento da mão, embora possa
parecer um detalhe naturalmente resultante da manipulação, expressa como
nenhum outro elemento a sobreposição de tempo que marca a encenação,
rearticulando os outros dois tempos, da infância e da atualidade dos performers-
atrizes e atores.
A presença desta sobreposição é notada em toda a encenação, como quando
Mariano, na cena
Las cosas de mi padre
, conta a história de seu pai, um mecânico
que militava na Juventude Peronista e, após um dia ser levado de sua oficina pela
polícia, nunca mais foi visto. Em seu
testimonio
, vemos ao fundo do palco a
projeção ao vivo de três carrinhos de brinquedo que, conforme conta o ator, foram
presentes do pai na sua infância. O ator revela que o pai escondia armas na parte
interna dos carros em sua oficina e, novamente, vemos surgir a mão na projeção,
desta vez manuseando os brinquedos. Essa intervenção que ocorre frente aos
espectadores instaura um jogo lúdico de ressignificação, ainda mais tocante por
envolver lembranças diretas do pai, plenas de afetividade.
Em sequência, vemos o mesmo ator ao centro do palco, entre duas fotos de
seu pai projetadas ao fundo. As fotos, conta, possuem quatro anos de diferença,
mostrando um movimento contrário à ordem natural de envelhecimento: o pai
parece rejuvenescido após entrar para o movimento guerrilheiro, com barba e
bigode crescidos. Entre as duas versões paternas, o filho estabelece uma conexão
passado-presente construída pela presença física somada ao documento visual.
Mariano nos conta que o pai morreu quando tinha mais ou menos a idade que ele
tinha na apresentação, e olhar as fotos é como ver a si mesmo. Logo em seguida,
na cena
La última cinta de krapp
, enquanto apresenta ao público um gravador
antigo que toca a fita de seu pai chamando-o quando bebê, uma criança, que logo
saberemos ser filho do ator e neto daquele cuja voz ouvimos na gravação, entra
em cena. Trata-se de um dos momentos em que a sobreposição de tempos atinge
um grau de materialidade extraordinário.
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Figura 3 -
Mi vida después
, 2009. Foto: Wolf Silveri
É interessante, também, destacar o conjunto formado pela narração oral e
audiovisual que ocorre na cena
El exilio
, em que Liza transita do papel de narradora
para o da pessoa cuja história está narrando, sua mãe. A atriz, sob um foco de luz
e ao microfone, descreve todos os aspectos da cena a ser representada (o
ambiente, a iluminação, a marcação das personagens, o que dizem, como reagem),
enquanto duas duplas de atores diferentes representam seus pais. A cena, captada
e projetada ao vivo no fundo do palco, é marcada pelo efeito cômico gerado com
o paralelismo entre a “ação narrada” e a “ação encenada”. Pouco depois, a atriz
afirma “Agora eu” e se dirige para a frente da câmera. Trata-se da transição de
uma representação para um remake, segundo os níveis performáticos sugeridos
por Brownell.
Se antes a víamos somente no “corpo presente”, agora temos duas
perspectivas: seu corpo e sua imagem projetada. Ela realiza a descrição completa
da cena e em seguida coloca-se na posição de sua mãe, exatamente como a
descreveu. Esse movimento coloca em jogo a multiplicidade de narrativas tão
constante na peça: a presença física da atriz representa a jovem cujos pais tiveram
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de exilar-se da Argentina; a imagem projetada de seu rosto representa a mãe, no
momento em que contava ao companheiro que deveriam sair do país. Vemos as
diversas camadas temporais sobrepostas ali com evidência.
O ocupar o lugar dos pais dá-se também, de maneira mais sutil, na cena
Un
día en la vida de mi padre
, como quando Pablo, ao contar do pai funcionário de
banco a quem lhe pediram que cortasse a barba, pois esta era “coisa de
comunista”, abre seu terno e deixa ser projetada em sua camisa branca a foto do
pai, sobre a qual vemos novamente a mão surgir e apagar a barba com a borracha
de um lápis. Mais uma vez, a ação procede à narração, confirmando a história oral
por meio da interação visual com o documento.
Figura 4 -
Mi vida después
, 2009. Foto: Lorena Fernández
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Os modelos acima exemplificam bem a complexa sobreposição temporal
que a encenação congrega. Mobilizando diferentes estratégias - narração,
testemunho, ação, remake, o uso de documentos em forma de imagens, áudios,
objetos, roupas - que produzem uma incessante alternância entre representação
e não-representação, o tempo da encenação organiza as outras temporalidades,
da infância traumática e da vida adulta atual, entrelaçando as autobiografias em
um discurso totalizante que gera múltiplos sentidos.
Vivência estruturada
Entre outros temas que essa sobreposição temporal pode mobilizar, o do
significado da experiência é um dos mais fecundos. Afinal, é por meio de suas
sobreposições temporais que a obra
Mi vida después
coloca sob investigação os
modos através dos quais um evento vivido como individual e íntimo adquire
sentido em sua relação com a experiência de toda uma geração.
É possível começar a abordar essa questão a partir de uma diferenciação,
apontada pela pesquisadora Jeanne Marie Gagnebin, entre os conceitos de
“experiência” e “vivência” na obra de Walter Benjamin. Segundo Gagnebin, Benjamin
constata que o avanço capitalista no início do século XX cria uma sociedade
marcada por relações de frieza e anonimato, em que o indivíduo se sujeita às
forças impessoais e opressivas da técnica. Assim, em relação ao texto
Experiência
e Pobreza
, de 1933, Gagnebin (2009, p.59) indica que,
Benjamin situa neste contexto o surgimento de um novo conceito de
experiência, em oposição àquele de
Erfahrung
(Experiência), o de
Erlebnis
(Vivência), que reenvia à vida do indivíduo particular, na sua inefável
preciosidade, mas também na sua solidão.
Para Benjamin, experiência é uma categoria eminentemente social,
comunitária, e, além de tudo, profundamente vinculada à capacidade que uma
geração tem de comunicar e, consequentemente, de transmitir sua bagagem
cultural à outra geração. “Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela
sempre fora comunicada aos mais jovens”, afirma o autor no mesmo
Experiência
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e Pobreza
(Benjamin, 1994, p.114). O infortúnio da sociedade capitalista a partir da
modernidade é que a vivência, de caráter individual, muitas vezes fracassa na sua
tentativa de ocupar o vazio deixado pela perda da faculdade de comunicação e
transmissão da experiência, incapaz de gerar uma vida significativa a um indivíduo
cada vez mais encarcerado em seu espaço privado, íntimo e solitário.
Pode-se dizer que existe uma relação direta entre as duas categorias, de
modo que a vivência (pessoal) adquire significado quando transformada em
experiência (social). Algo vivido na intimidade pode ser chamado realmente de
“experiência” quando é posto em relação com o que a sociedade vivenciou no
mesmo período. Assim, os meios de comunicação e transmissão da experiência
de geração para geração são, ao mesmo tempo, meios de transformação da
vivência em experiência.
Segundo Benjamin, vivências de dimensão e intensidade tão grandes que
nem sempre a sociedade conta com meios de comunicação e transmissão
eficazes o bastante para transformá-las em experiência, de modo que as vivências
individuais acabam não se convertendo em experiência de todo o corpo social.
Vivências de tamanho impacto podem ser geradas por uma guerra, por exemplo.
E de fato, como se sabe, é esse o modelo de Benjamin, ao refletir sobre os horrores
vivenciados pelos soldados que retornavam da Primeira Guerra Mundial:
No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do
campo de batalha, não mais ricos e sim mais pobres em experiência
comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros
sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida
de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve
experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência
estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela
inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência
ética pelos governantes (Benjamin, 1994, p.198)
10
.
Essa vivência extrema de um evento extraordinário, capaz de calar a
experiência, pode ser também a de uma Ditadura Militar, em muitos aspectos tão
ou mais traumática que a de uma guerra. Se se agregar a essa situação a condição
10
Essa citação foi retirada do texto
O Narrador
, mas há um trecho quase literalmente igual que já havia sido
publicado em
Experiência e Pobreza
, poucos anos antes.
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Ernesto Gomes Valença; Letícia Pavão Schinelo
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singular de serem crianças a vivenciarem a ditadura, talvez seja possível imaginar
o quanto deve ser difícil encontrar meios através dos quais essa vivência pode ser
comunicável, pode ser partilhada socialmente e, através disso, adquirir sentido
tanto para a sociedade quanto para as crianças que a viveram.
Benjamin estava particularmente interessado na transmissão da experiência
por meio da narração, mas é possível identificar outros meios por meio dos quais
a vivência adquire sentido, transformando-se em experiência. São atos, eventos e
outros processos materiais através dos quais se oferece sentido à experiência de
convívio de uma população ou comunidade, tais como uma prática religiosa, um
momento cívico eleitoral, um ato público com força suficiente para mobilizar a
experiência ou mesmo uma manifestação artística, como o teatro. E a encenação
de Mi vida después é precisamente esse tipo de ato material capaz de articular a
vivência pessoal e privada de um grupo de crianças durante a ditadura militar
argentina em uma experiência socialmente comunicável e coletivamente
incorporável.
Estrutura de sentimentos em
Mi vida después
Para Raymond Williams, a arte é uma forma de articular sentidos totalizantes
onde antes se percebiam vivências independentes e únicas. Esse é um dos
significados do que ele chamava de “estrutura de sentimentos”. Em suas palavras:
Mas ainda que seja possível, no estudo de um período passado, separar
aspectos particulares da vida e tratá-los como se fossem
autossuficientes, é óbvio que isto é apenas o modo como podem ser
estudados, não como foram experienciados. Examinamos cada elemento
como um precipitado, mas na vivência da época cada elemento estava
em solução, era uma parte inseparável de um todo complexo. E parece
ser verdade, pela natureza da arte, que o artista desenha essa totalidade;
que é na arte, principalmente, que o efeito de toda uma experiência vivida
é expresso e corporificado. Relacionar uma obra de arte a qualquer parte
desse todo pode, em vários graus, ser útil; mas é habitual, na análise,
perceber que, quando se compara o trabalho com as partes separáveis,
ainda permanece algum elemento para o qual não contrapartida
externa. É isso, em primeira instância, que quero dizer com estrutura de
sentimento (Williams, 1969, p.17-18)
11
.
11
But while we may, in the study of a past period, separate out particular aspects of life, and treat them as if
O processo documental no espetáculo
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Em
Mi vida después
, a vivência de cada participante foi reorganizada a partir
de uma singularidade: a ditadura militar argentina. São histórias aparentemente
independentes, efetivamente experimentadas como individuais e vividas como
exclusivas, cuja conexão se tornou perceptível, comunicável e mesmo
materializada por meio da encenação, uma forma totalizante ainda que
fragmentária capaz de articular/reinserir essas vivências individuais em
experiência social. A encenação não pode ser resumida à junção de depoimentos,
fotos, gravações e outros documentos; algo além, que escapa à análise de suas
partes separáveis e que é o que faz com que
Mi vida después
constitua-se na
própria estrutura de sentimentos daquele grupo de pessoas: experiência
estruturada na forma de uma convenção teatral.
No momento em que uma experiência está sendo estruturada, ela surge de
um amontoado amorfo de sentimentos e emoções, um tanto sem forma, que vai
pouco a pouco encontrando um ordenamento. O que se está propondo aqui é que
a experiência, no espetáculo em questão, seja entendida como um sentimento
estruturado, ou seja, uma sensação (pessoal e maleável) organizada numa forma
(definida e sólida): “é tão firme e definido quanto ‘estrutura’ sugere, mas é baseado
nos elementos mais profundos e frequentemente menos tangíveis de nossa
experiência” (Williams, 1969, p.18)
12
. É essa estrutura que empresta sentido ao
sentimento, como uma espécie de estabilidade momentânea que permite com
que uma vivência se torne experiência. Assim, a apresentação pública de fotos
pessoais e particulares, acompanhada de comentários e intervenções sobre cada
uma no decorrer da encenação, tal como abordado há pouco, vai paulatinamente
conformando uma estrutura palpável de lembranças capaz de revelar significados
que não estão na superfície das imagens. O ato teatral transforma a foto do álbum
they were self-contained, it is obvious that this is only how they may be studied, not how They were
experienced. We examine each element as a precipitate, but in the living experience of the time every
element was in solution, an inseparable part of a complex whole. And it seems to be true, from the nature
of art, that it is from such a totality that the artist draws; it is in art, primarily, that the effect of a whole lived
experience is expressed and embodied. To relate a work of art to any part of that whole may, in varying
degrees, be useful; but it is a common experience, in analysis, to realize that when one has measured the
work against the separable parts, there yet remains some element for which there is no external counterpart.
It is this, in the first instance, that I mean by the structure of feeling” (Williams, 1969, p.17-18). (Tradução de
Ernesto Valença).
12
It is as firm and definite as ‘structure’ suggests, yet it is based in the deepest and often least tangible
elements of our experience (Williams, 1969, p.18). (Tradução de Ernesto Valença).
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privado em documento público de uma época; ato que transforma vivência
pessoal em experiência social. Um processo que Williams descreve da seguinte
forma:
Talvez essa seja apenas uma generalização a partir de nossa própria
história, mas tenho percebido que áreas que eu chamaria de estruturas
de sentimento muitas vezes são inicialmente formadas como certo tipo
de distúrbio ou inquietação, um tipo específico de tensão para o qual
podemos, algumas vezes, encontrar um referente quando dele nos
afastamos ou nos lembramos. Colocando de outra forma, o lugar peculiar
da estrutura de sentimento é a equivalência sem fim que deve ocorrer,
no processo da consciência, entre o articulado e o vivido. O vivido é, por
assim dizer, apenas outro mundo para a experiência: mas temos de
encontrar uma palavra para esse plano. Pois tudo o que não é
plenamente articulado, tudo o que surge como distúrbio, tensão, bloqueio
ou problema emocional me parece precisamente a fonte das mudanças
significativas na relação entre o significante e o significado, seja na
linguagem literária, seja nas convenções (Williams, 2013, p.164).
As operações mobilizadas pelo espetáculo para articular a experiência tensa
e traumática da infância daqueles atores/performers/testemunhas vão se
acumulando: a mão da pessoa que maneja as fotografias e surge amplificada na
projeção; a atuante que se posiciona de tal modo a confundir-se com a imagem
de sua própria mãe; a entrada em cena do filho de um dos atuantes enquanto se
escuta a voz gravada do pai ausente; o ato de assumir o papel da própria mãe no
meio de uma narração. Todos esses procedimentos que foram analisados neste
artigo, a que nos referimos como atualizações ou sobreposições temporais,
configuram uma estrutura que permite a organização desses sentimentos difusos
em algo concretamente apresentável ao público, ato que estrutura sentimentos
de tal forma que se tornam socialmente relevantes e reveladores: a violência da
ditadura militar argentina, vivenciada como um drama familiar, é única e individual
somente se não houver nenhuma estrutura que permita à pessoa que a viveu
transmitir essa experiência a outras e, importantíssimo, identificar que sua dor é
compartilhada por outras pessoas, que vivências únicas e individuais formam uma
comunidade de sentimentos. Ao final, não se trata de experiências únicas ou
individuais, trata-se da própria experiência de uma nação, que é difusa e confusa
no cotidiano, mas que se cristaliza, que aparece concretamente através da
estrutura de sentimentos que é a peça
Mi vida después
.
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Figura 5 -
Mi vida después
, 2009. Foto: Lorena Fernández
Assim, por um lado, aquela vivência estranha e desordenada que cada um
dos atuantes teve durante a sua infância ou adolescência, suas dores, traumas e
desconfortos da vida familiar, ganha/adquire significado social na forma da peça
Mi vida después
; forma que pode ser compartilhada com os espectadores de
maneira a oferecer, por outro lado, novos significados para a própria ditadura
argentina não um golpe de Estado, não uma violência estatal, mas a
desarticulação da própria vivência familiar, dos laços sociais de parentesco - logo
a família, esse núcleo essencial da sociedade que tantos presidentes autoritários
e saudosistas de ditaduras juram defender! Dessa forma, a peça articula certa
percepção difusa na sociedade, de que a ditadura foi algo violento, desumano e
fundamentalmente desagregador, mas cuja dimensão mais precisa (contrário de
difusa) não é possível perceber senão justamente através do espetáculo, por meio
dele. Assim, o espetáculo participa, juntamente a outros processos culturais, da
estruturação de algo que está difuso na sociedade argentina atual (como também
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na brasileira).
Conclusão (ou Uma última sobreposição de tempos)
A esta altura do texto, talvez possamos confessar uma última questão que
nos perseguiu no decorrer da escrita: que interesse pode haver numa peça
realizada 13 anos que impulsione a criação de um artigo agora? (Ou numa outra
chave de formulação: por que escrever um artigo sobre uma peça 13 anos após
sua estreia?)
Recentemente, durante a realização do
I Congreso Internacional Teatro x
Identidad
, ocorreu uma “desmontagem” da obra
Mi vida después
, contando com a
presença de parte do elenco
13
. Durante o debate, o ator Blas Arrese Igor fez a
seguinte observação sobre o processo de montagem do espetáculo, aqui em
transcrição que preserva o tom coloquial da exposição oral:
A obra não foi sobre os 70, [não foi] somente sobre o passado, mas,
sobretudo, creio que é uma obra sobre o futuro. E, bem, creio que
tenhamos que falar também sobre o amor, sobretudo porque creio que
o que permitiu que pudéssemos levar adiante essa obra e desta maneira,
e circular essa generosidade e relacionar essas histórias próprias e dos
outros, creio que foi o amor. Um amor que foi surgindo entre nós, de um
amor, de um afeto, da irmandade, da fraternidade que levou tudo isso
que é tão importante [...] me parece que isso é um dado importante, não
somente fazer as coisas por algum cálculo específico associado ao êxito,
à obra, a como ela vai ressoar, e sim fazê-la [a obra] porque sim. Fazer
as coisas porque sim, “porque sim”, digo, por este sentimento de
irmandade e de construção coletiva (Informação verbal, In:
Desmontaje:
La vida después de Mi vida después
, 2021. Ver: Referências).
A fala de Blas traduz, de um ponto de vista de quem participou da montagem,
ao menos parte do que estamos afirmando sobre a estrutura de sentimentos que
é a obra
Mi vida después
. Indica que o que condensa e oferece coesão estrutural
à obra são elementos tão inefáveis e pouco tangíveis como sentimentos de
solidariedade, irmandade e amor. Mas também indica que seu significado aponta
13
As informações sobre o evento se encontram nas Referências. A mesa em questão, intitulada
Desmontaje:
La vida
después de
Mi vida después
, ocorreu no dia 19 de junho de 2021.
O processo documental no espetáculo
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não exclusivamente para o passado como também para o futuro. Um futuro que
encontra eco num país irmão, como o Brasil.
Este artigo foi escrito durante a presidência de um ex-militar, conhecido pela
defesa pública das maiores atrocidades cometidas pela ditadura militar brasileira,
iniciada em 1964
14
. Sua figura nefasta domina praticamente todo o espaço público
de debates. Foi nessa situação que a peça
Mi vida después
, de Lola Arias, nos
chamou a atenção. Já tínhamos tomado contato com ela quando da sua primeira
apresentação no Brasil em 2010, pouco mais de um ano depois de sua estreia. Mas
foi somente agora, neste período histórico de 12 ou 13 anos após, que nos sentimos
profundamente tocados pelas fotografias, pela gravação em vídeo, pela
dramaturgia da peça.
Talvez aqui se encontre uma última sobreposição temporal, em que a peça
ganha não apenas novas conotações, mas uma força redobrada na atualização de
uma experiência que parecia adormecida, e explique porque
Mi vida después
ainda
tenha o poder de causar uma impressão tão forte sobre um público estrangeiro 13
anos depois de sua estreia. Como países irmãos, que vivenciaram o horror e a
monstruosidade de ditaduras militares assassinas,
Mi vida después
tem algo a
articular da própria experiência brasileira, além da argentina. Aqui também se
vivenciou um trauma que, talvez até mais do que na Argentina, não encontrou
estrutura por meio da qual se pudesse transformar em experiência. Ou, de outro
modo, talvez as formas de transmissão da experiência tenham sido
paulatinamente desestruturadas, pouco a pouco desacreditadas e desprezadas,
até que se chegou ao momento em que foi possível o restabelecimento de um
governo militar no Brasil em pleno início da segunda década do século XXI
15
.
14
Certamente, o período será lembrado também pelo fato de o Brasil ter atingido patamares altíssimos de
contaminação e morte por coronavírus, impulsionado por um negacionismo científico adotado abertamente
pelo governo.
15
Estatísticas e reportagens já comprovaram que há mais militares ocupando postos no atual governo do que
na época da ditadura militar brasileira. Ver, entre inúmeros outros exemplos:
Governo Bolsonaro é visto como mais militar do que civil, aponta pesquisa. Jornal O Estado de Minas (site),
08 de mar. de 2021. Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/03/08/interna_politica,1244330/governo-bolsonaro-e-
visto-como-mais-militar-do-que-civil-aponta-pesquisa.shtm>
Presença de militares da ativa no governo federal cresce 33% sob Bolsonaro e mais que dobra em 20 anos.
Jornal Folha de São Paulo (site), 18 de jul. de 2020. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/07/presenca-de-militares-da-ativa-no-governo-federal-
cresce-33-sob-bolsonaro-e-mais-que-dobra-em-20-anos.shtml>
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Apesar de alguns esforços dignos de nota no sentido de não deixar morrer a
memória das vítimas da ditadura brasileira
16
, os meios de transmissão da terrível
experiência da ditadura às gerações posteriores foram interrompidos. A memória
do espetáculo
Mi vida después
se desdobra sobre o Brasil atual e funciona como
uma denúncia sobre os perigos de se esvaziar de sentido a experiência de toda
uma geração. Uma peça de teatro que carrega potencialidade desse tipo não é
exatamente uma “obra”, um objeto hermético descolado de uma realidade
abrangente; é, antes, uma prática ou processo social que insufla significado aos
aspectos da vivência que, na experiência fragmentária e difusa de uma época,
escapam de nosso entendimento e compreensão. Desvendar as condições dessa
prática, não apenas elucidar seus componentes, é o objetivo de uma análise
materialista que pretenda participar das lutas sociais.
Referências
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Mi vida después y otros textos
. 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos
Aires: Reservoir Books, 2016. Libro digital, EPUB.
BENJAMIN, Walter.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura
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BROWNELL, Pamela. El teatro antes del futuro: sobre Mi vida después de Lola Arias.
Revista Telondefondo
. 2009, nº 10 – diciembre
DESMONTAJE: La vida después de Mi vida después. In:
I Congreso Internacional
Teatro x Identidad
. Departamento de Artes Dramáticas de la Universidad Nacional
de las Arte e Asociación Civil TeatroXLaIdentidad. 17, 18 e 19 de junho de 2021.
Disponível em (https://congreso.teatroxlaidentidad.net/inicio) e em
(https://www.youtube.com/watch?v=hKcNy1miAFg). Acesso em: 13/12/2021.
FERNANDES, Sílvia. Memórias dissidentes: Nossa Odisseia, de Christiane Jatahy.
Mais de 6 mil militares atuam em cargos civis no governo Jair Bolsonaro. Rede Brasil Atual (site), 18 de maio
de 2021. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/05/militares-governo-bolsonaro-
6-mil-cargos-civis/>
Brasil de Bolsonaro tem maior proporção de militares como ministros do que Venezuela. BBC News Brasil
(site), 26 de fev. de 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51646346>
O Brasil é refém do Partido Militar, diz coronel. Revista Carta Capital (site), 30 de maio de 2021. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/politica/o-brasil-e-refem-do-partido-militar-diz-coronel-reformado/>
16
O exemplo mais evidente é a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei 12.528, de 18 de novembro
de 2011, e instalada oficialmente em 16 de maio de 2012 pelo governo da Presidenta Dilma Rouseff, ex-
guerrilheira, presa e torturada durante a ditadura militar.
O processo documental no espetáculo
Mi Vida Después
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Ernesto Gomes Valença; Letícia Pavão Schinelo
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br