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Uma anti-boneca de quatro costados: Tussy
Marx e o feminismo socialista do século XIX
Carmen Susana Tornquist
Para citar esta Resenha:
TORNQUIST, Carmen Susana. Uma anti-boneca de quatro
costados: Tussy Marx e o feminismo socialista do século XIX.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0802
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Uma anti-boneca de quatro costados: Tussy Marx e o feminismo socialista do século XIX
Carmen Susana Tornquist
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-15, abr. 2022
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Resenha da obra
HOLMES, Rachel.
Eleanor Marx: uma vida
. São Paulo: Expressão Popular/ANDES,
2021, 576 p.
Uma anti-boneca de quatro costados: Tussy Marx e o feminismo socialista do século XIX
Carmen Susana Tornquist
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-15, abr. 2022
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Uma anti-boneca de quatro costados: Tussy Marx e o feminismo
socialista do século XIX
1
Carmen Susana Tornquist
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Resumo
Neste texto, apresenta-se a obra da historiadora Rachel Holmes, recém
traduzida para o português, sobre a vida de Eleanor Marx. Destaca-se na
biografia seu ativismo socialista bem como a trajetória no campo do teatro,
no qual trabalhou desde 1875 até o final de sua vida. Neste sentido, sublinhou-
se seu papel como tradutora de obras protofeministas, como
Madame Bovary
e
Casa de Bonecas
, de Gustave Flaubert e Henrik Ibsen, de quem fez
traduções de outros textos dramatúrgicos. Destacou-se no comentário o
trabalho que a filha caçula de Marx realizou junto à Federação Social
Democrata, à Liga socialista e ao Sindicato dos Trabalhadores do Gaz da
Inglaterra, agremiações nas quais atuou em diferentes frentes: educação,
agitação e propaganda, tradução e ainda, solidariedade internacional. Além
disto, sublinhou-se a militância que teve junto ao socialismo feminista do
final do século XIX, tema de seu livro
A questão da mulher: de uma ponto de
vista socialista
, de 1886.
Palavras-Chave
: Eleanor Marx. Feminismo. Artes dramáticas. Socialismo.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Carina Inserra Bernini. Pós-doutorado pelo Programa
de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de o Paulo (PNPD/CAPES - 2018), Doutora (2015)
e Mestre (2009) em Geografia Humana pela USP. Possui graduação em Geografia pela USP-2005. Graduação
em Turismo pela Universidade Anhembi Morumbi (1999). Tradução do resumo para o inglês e revisão do
resumo em espanhol realizada por Themis Scalco, graduada em Letras pela UFRGS (2003).
2
Pós-Doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS (CEIFR), França. Doutorado em
Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC -2004). Mestrado em Sociologia
Política (UFSC-1992). Graduação em Licenciatura Plena em História (UFRGS-1986). Professora titular da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), onde atua no Programa de Pós Graduação em
Planejamento territorial e desenvolvimento sócio-ambiental, membro do Conselho Consultivo da Cátedra
Mariátegui (Peru). carmentornquist@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/2486480802935227 https://orcid.org/0000-0002-7560-8649
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A Four-Sided Anti-Doll: Eleanor Marx and 21st Century Socialist
Feminism
Abstract
In this text, we commen on the work of the historian Rachel Holmes about
the life of Eleanor Marx, recently translated into Portuguese. In reading the
biography, her socialist activism as well as her career in theater, in which she
worked from 1875 until the end of her life, stands out. In this sense, her role
as a translator of proto-feminist works, such as
Madame Bovary
, by Flaubert
and
Casa de Muñecas
, by Henrik Ibsen, from whom she translated other
dramaturgical texts, is highlighted. Notable in the comment is the work
carried out by the youngest daughter of Karl Marx, together with the Social
Democratic Federation, the Socialist League and the Union of Gas workers,
organizations in which she acted in the field of education, agitation and
propaganda and translation, as well as in internationalist solidarity. In addition,
her recognized militancy along with socialist feminism of the late nineteenth
century stands out, a subjecton which she wrote
The question of women -
from a socialist point of view
, in 1886.
Keywords
: Eleanor Marx. Feminism. Dramatic arts. Socialism.
Una anti-muñeca de cuatro costados: Eleanor Marx y el feminismo
socialista del siglo XXI
Resumen
En este texto, comentamos la obra de la historiadora Rachel Holmes,
recién traducida para el portugués, sobre la vida de Eleanor Marx. Destacase
en la lectura de la biografía su activismo socialista bien que su trayectoria en
el campo del teatro, en el cuál trabajó entre los años de 1875 hasta al final
de su vida. En este sentido, subrayase su rol como traductora de obras
proto-feministas, entre las cuales
Madame Bovary
, de Flaubert y
Casa de
Muñecas
, de Henrik Ibsen, de quien hizo traducciones de diversos textos
dramatúrgicos. Destacase en el comentario el trabajo que realizó la hija
menor de Karl Marx, junto a la Federación Social Democrata, a la Liga
Socialista y en el Sindicato de los trabajadores del Gaz , agremiaciones en
las cuales actuó en el ámbito de la educación, agitación y propaganda y
traducción, bien que en la solidariedad internacionalista. Además, destácase
su reconocida militancia junto al feminismo socialista de fines del siglo XIX,
tema sobre el cuál escrebió
La cuestión de la mujer- desde un punto de vista
socialista
, en 1886
Palabras clave
: Eleanor Marx. Feminismo. Artes dramáticas. Socialismo.
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Em meio ao pandêmico ano de 2021, veio a luz uma boa notícia: a edição em
português da biografia de Eleanor Marx, filha caçula de Karl Marx e Jenny von
Westphalen, nascida em 1855 em Londres. A tradução da obra é de Lia Urbini,
Cecília Faria e Letícia Bergamini Souto e a capa de Thereza Nardelli, com apoio de
Maria Tereza Mhereb, esta última tendo traduzido recentemente
A questão das
mulheres
-
de um ponto de vista socialista
, da própria Eleanor Marx, junto com
Edward Aveling (2021). A obra sobre a qual trataremos aqui foi viabilizada pela
Editora do MST em parceria com o Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino
Superior (ANDES), disponibilizando, na nossa língua, o trabalho da historiadora
inglesa Rachel Holmes, de 2014.
Apoiada em um amplo conjunto de documentos, indicados ao final do livro
(sobretudo cartas, artigos de jornais e obras de referência da época) e nas
biografias de Chushichi Tsuzuki e de Yvonne Kapp, ambas da década de 1970, a
biógrafa apresenta detalhadamente a vida de Eleanor, articulando aspectos
pessoais e políticos, o que permite que seus leitores vislumbrem através de sua
existência um período histórico de extrema dinamicidade, no qual a revolução
espectro a rondar a Europa parecia iminente. A obra está dividida em 24
capítulos, que procuram seguir em linhas gerais a cronologia dos 43 anos nos quais
foi tocado à Tussy (apelido de Eleanor) viver destacando seu sólido processo
educativo junto à “mais perigosa família do mundo”, os estudos irregulares em
instituições escolares, as pesquisas na Biblioteca do Museu Britânico, junto ao pai
(de quem foi auxiliar), os estudos sistemáticos junto às Salas de Leitura e grupos
afins. Holmes enfatiza as relações com as amigas, irmãs e com o meio-irmão, as
relações com os pretendentes e com o companheiro Edward Aveling. Destaca-se
que a presença de Engels, das irmãs Mary e Lizzie Burns e de Helen Demuth faziam
parte deste arranjo familiar, unidos pelo afeto e pelo apoio mútuo permanente.
Neste sentido, a família Marx, ainda que não isenta de contradições, foi um espaço
concreto de experiências “fora da curva” que, de certa forma Eleanor soube
aproveitar. Não menos importante é o destaque dado na obra às relações de Tussy
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com seus camaradas, como a escritora sul africana Olive Schreiner, os amigos
Bernand Shaw e Olivier Lissagary e o amigo de família Wilhelm Liebknecht , entre
outros. Como advoga Jodi Dean (2021) tal categoria (camarada) tem um significado
muito peculiar nos meios socialistas, e Tussy beneficiou-se amplamente desta
camaradagem em grande parte das relações que vivenciou. No delicado mundo
do amor, Tussy escolheu Edward Aveling para compartilhar sua vida, apesar dos
outros romances que se permitiu viver, intensamente, antes de sua união livre com
o ator e companheiro de lutas, viagens, doenças e dívidas
3
. Embora fosse evidente
seu desejo de ser mãe, Tussy não teve filhos e foi a herdeira dos direitos
testamentários da obra de Marx e de Engels, processo complexo que faz parte dos
últimos capítulos da obra.
No que tange às peças de teatro, propriamente, é provável que as andanças
de Tussy no campo das artes cênicas, fazendo leituras e encenações,
potencializou seu trabalho com traduções, como coloca Cruz (2019), a autora que
acentua a importância da oralidade como “prova dos nove” do texto dramático. E
nesta via, talvez possamos inferir que algo similar se passava com os discursos
políticos que eram outra das suas especialidades. Eleanor costumava arrebatar a
atenção de centenas de trabalhadores, quando assumia ela mesma o papel de
oradora, como aconteceu em varias ocasiões.
Tussy compartilhava com as mulheres as contradições de sua época: de um
lado, os estreitos trilhos da feminilidade restrita ao claustro doméstico e seus
corolários (filhos, marido, lar, “dancinhas”, beleza) e, de outro, as ondas crescentes
do feminismo deslanchado com as revoluções burguesas, de onde a tentadora
promessa de igualdade advinha. De modo diverso de sua mãe, que sucumbiu a
empuxos mais conservadores da época, apesar de seu inegável talento intelectual
- Eleanor identificou-se de imediato com a recusa do destino traçado para as
moças da pequena burguesia de sua época. Esta posição implicou não apenas em
uma práxis socialista compartilhada com sua família como também a alçou
de imediato às artes e ao teatro, em particular.
3
Edward Aveling conheceu Tussy no momento em que o teatro ocupava o centro de suas atenções, tendo
formado com ela uma união livre, que mantinha o laço jurídico com uma esposa doente, a quem não
queria, supostamente, desagradar com um divórcio. Apesar da informalidade do relacionamento, Eleanor
passa a assinar seu nome com o acréscimo de sobrenome Aveling até o fim de sua vida.
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Com um texto fluido, Rachel Holmes cativa leitores enunciando enigmas que
são desvelados mais ao final, entre os quais a questão da paternidade de Freddy
Demuth e o destino de seu marido. Estes vão se articulando com outras tragédias
e dramas menores, mas sem perder o pano de fundo o dramático avanço do
Capital sobre os trabalhadores da Inglaterra e do mundo incluídas as mulheres
e as colônias. Estes aspectos ficam evidenciados sobretudo em “Nossa querida
foguista” e “Senhora Liberdade”, capítulos onde entramos em contato com relatos
pungentes de Eleanor decorrentes de sua “observação participante” junto aos
sindicatos e trabalhadores da América do Norte, por onde viajou por vários meses,
em um momento em que o movimento operário (anarco-sindicalista e socialista)
se impunha na cena política dos Estados Unidos, em particular, denunciando
injustiças e exigindo direitos. Trata-se do período em que as lutas pela redução da
jornada de trabalho eram a principal pauta dos sindicatos operários, aí incluídas o
trabalho feminino e infantil e os direitos civis, como o direito ao voto, à educação,
à contracepção e ao divórcio.
Com a intensificação das luta de classe e o consequente crescimento das
ações repressivas, também a liberdade de organização e expressão e a democracia
vai sendo incorporada pelos socialistas, naquela ocasião. Neste sentido, chama
atenção a ampla campanha pelos anarquistas condenados à morte em Chicago,
defendidos com todos os dentes por Tussy, descritos no capítulo ironicamente
chamado de “Essencialmente inglesa”. Nesse também são descritas ações
politicas envolvendo o tema da migração e do preconceito étnico que divide a
classe trabalhadora, e que deveria, segundo Eleanor, ser superado em prol da luta
comum contra os verdadeiros algozes do povo.
Somente o acesso aos detalhes da história do movimento sindical e
internacionalista e o trabalho que Tussy realizou junto a estas aportando sem
cessar a questões das mulheres, dos migrantes e do internacionalismo valem
cada centavo dispendido na compra deste livro. Eleanor trabalhou dura e
diuturnamente na organização da classe trabalhadora da Inglaterra, na Irlanda, nos
EUA, na Europa e no mundo, seja escrevendo discursos de agitação, de propaganda
e panfletos, seja como professora em cursos de formação (explicando “Salário,
preço e lucro” a operários, ou dando-lhes aulas de matemática e línguas); como
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secretária das associações e congressos, tradutora das línguas que manejava bem
e daquelas que foi aprendendo a partir de seu desejo. Apesar de dificuldades
financeiras compartilhadas com a família Marx, conseguiu uma significativa
autonomia financeira ao longo de sua vida, mesmo que para isso tenha trabalhado
como
ghost writer
e contado com os apoios permanentes de Engels, que, como
sabemos, fazia parte da família Marx desde que a camaradagem se instalou entre
os dois amigos, antes mesmo de Tussy nascer.
Trabalhou durante décadas ao Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Gás
e Trabalhadores Gerais da Inglaterra e envolveu-se, muito precocemente, com os
fenianos, na Irlanda
4
, e era orgulhosa do seu sangue judeu, dois grupos com os
quais se identificou e que não tinham a ver com influências parentais, mas com
seu próprio apreço e juízo. Apesar de manejar bem várias das atividades
consideradas masculinas, Tussy também foi força ativa nas tarefas de cuidado,
típicas da cultura feminina, deslocados, porém, do campo da caridade e da
filantropia costumeiras para a solidariedade interclasse. Essas, como sabemos,
foram comuns no movimento socialista desde seu início, seja em campanhas para
apoiar trabalhadores de outros países em apuros ou em greve, seja para acolher
exilados e banidos, como o caso dos “comunards” expulsos da França após o
notável experimento proletário e autônomo da Comuna de Paris, que tanto
mobilizou Marx e Engels e foi alvo da obra de Lissagaray, que foi traduzida, anos
depois, por Tussy, ao inglês, incluindo o prefácio todo seu do qual falamos
antes.
5
Na segunda quadra de sua vida, já órfã de pai e de mãe e enredada em uma
relação amorosa bastante complicada, Eleonor não esmorece: ajuda a construir a
II Internacional, a Federação Social Democrata, a Liga dos Socialistas, entre outros.
Além disso, apresenta, junto com Clara Zetkin, a importante tese feminista no
encontro da II Internacional em 1886: uma defesa da intrínseca relação entre
libertação feminina e emancipação humana. Nesta via, Eleanor foi uma precursora
do processo de organização das mulheres socialistas ou feministas questão
4
Os fenianos eram irlandeses que defendiam a independência da região e tinham posturas progressistas,
angariando a simpatia de Eleanor, que passa, muito precocemente, a acompanha-los e a apoiá-los.
5
O livro foi lançado pela Expressão Popular contendo o prefácio original feito Eleanor, junto a sua tradução
para o inglês.
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na qual as próprias categorias até hoje são alvo de vasto debate, até hoje (Picq,
2000). Este envolveu tanto o conhecido sufragismo, mas, sobretudo, o feminismo
operário, socialista, que cresceu junto à organização da classe trabalhadora no
final do século XIX. Esta corrente, secundarizada ou mal interpretada pelas leituras
liberais como aponta a autora esteve fortemente ancorada na entrada massiva
das mulheres no mundo do trabalho fabril, na Inglaterra e no mundo, e também
na produção teórica a respeito das desigualdades entre os sexos, ou, como
criticamente chamava Eleanor, os assim chamados direitos das mulheres. Os
embates internos ao campo socialista a respeito das desigualdades que hoje
chamamos “de gênero” expressaram-se em diversos níveis da ação política desde
o século XIX, envolvendo tanto dimensões macro-sociológicas da temática (como
os textos de Flora Tristan, de Auguste Bebel e de Engels), quanto níveis mais
micro-políticos dentro dos meios socialistas, como os que aparecem nem “A
Toca”. A expressão verdadeiramente autoral das proposições de Tussy estão em
A questão da mulher: de um ponto de vista socialista
, que escreve com Edward
Aveling, publicada em 1886. Eleanor não desconsiderava a importância da luta das
sufragistas, mas avaliava que as lutas pelos direitos das mulheres que não
incluíssem a luta de classes eram limitadas. Dizia que as mulheres pequeno-
burguesas haviam se tornaram proletárias em seus próprios lares, sob a
dominação de seus maridos (Fluss e Miller, 2021). Uma série de episódios
envolvendo o tema envolvem Ernest Bax e artigos no jornal
Justice
. Tussy chama-
o para uma espécie de duelo teórico (e público) ao qual, o companheiro Bax não
comparece (p.436).
Da trajetória de Tussy consta uma permanente relação com o teatro,
expressão artística muito popular à época, sobretudo em Londres. A presença de
Shakespeare na família não era inabitual: considera-se que o inglês que Marx
aprendeu iniciou-se na via das leituras shakespearianas, além das obras de
Dickens e de seu amplo repertório literário alemão, compondo um estilo narrativo
muito singular que atravessa todos os seus escritos (Silva, 2012). Este capital
cultural foi transmitido às irmãs Marx, expressando-se anglofonamente em Tussy,
que nascera em solo inglês. Nesta via, Tussy cria, ainda com 20 anos, com amigas,
a
Sociedade dos Dogberries
aludindo a um dos personagens de
Muito Barulho
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por nada
promovendo leituras dramáticas de textos da
Bíblia
forma com a
qual os Marx chamavam a obra do mestre inclusive em reuniões dominicais
realizadas em sua casa. O grupo fez parte de um movimento de retomada de
Shakespeare na Inglaterra naquela ocasião: em “Os Dogberries” podemos ter
acesso a detalhes deste momento, em que decide entrar em cena como atriz, em
1880, com
O flautista de Hamelin
, em um recital dedicado aos c
omunards
refugiados, para logo a seguir descobrir Ibsen, de quem se tornará e tradutora.
Ela também se junta aos grupos literários ligados à Shelley, adensando seu contato
com os grupos artísticos que “furavam” a moral vitoriana supostamente imbatível.
Diferentemente da tradução de
Madame Bovary
do francês para o inglês, que
finaliza em 1886 ajudada pela familiaridade com a língua, Tussy aprende o
norueguês com o objetivo específico de fazer as traduções de Ibsen, como
O
Inimigo do Povo
,
A dama do mar
e
O Pato selvagem
. Estes temas aparecem nos
capítulos “Visão peculiar sobre o amor e outros assuntos”, “Nora Helmer, Emma
Bovary e a questão da mulher” e “Interlúdio ibseniano”. Tussy vai interpretar junto
a seu próprio marido o papel de Nora, em 1891, na versão de sua autoria de
Casa
de Bonecas
uma das inúmeras adaptações que a peça ganhou.
Podemos ver em suas obras traços do que Lúcia Romano (2018) chama de
sacações protofeministas.
Madame Bovary
e
Casa de Bonecas
, em especial,
tratavam da vida de mulheres pequeno-burguesas, para as quais a vida adulta era
restrita a casa, a família, ao marido. Mesmo sem remeter às desigualdades mais
profundas vividas pelas mulheres trabalhadoras, Ibsen, que era próximo dos
círculos socialistas e feministas de seu país, coloca em cena de forma
contundente a possibilidade de uma mulher romper com aquele destino sem cor,
“batendo a porta” e deixando para trás uma vida entediante ao lado do marido.
Assim, estas obras podem ser vistas, mesmo com limites, como críticas de
primeira hora à moral burguesa que se instituía junto ao avanço do capitalismo na
Europa. Essa moral estava fundada no modelo família nuclear (do qual a mulher
era a principal vítima), bem distante das formas de organização familiar das
classes populares naquele século em que a família nuclear burguesa se impunha.
Mas é um modelo que se impõe – com violência – como norma na Europa e logo
a seguir, na periferia (Fonseca, 1989; Donzelot, 1980): a díade pai provedor/mãe
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nutriz da família nuclear não apenas destoava da cultura popular predominante
em vastas regiões, mas, era, ademais, inviabilizado pelas violentas condições de
vida que atiravam amplas massas do povo à condição de desumanidade absoluta
- como descrevera Engels, em 1845, em sua obra de juventude sobre a classe
operária na Inglaterra (Engels, 2010) e como denunciara Flora Tristan, em sua União
dos operários, de 1844 (Tristan, 2017). Marx também tecera importantes
considerações sobre relatos do escrivão parisiense
Pêcheux
, de 1846, sobre
mulheres que frequentemente recorriam ao suicídio para suspender uma
promessa de vida medíocre e servil, fazendo do Rio Sena um espaço sinistro, mais
que “encantador” (Marx, 2006). Os casos de suicídio, porém, não acometiam
apenas mulheres e derivavam de situações que expressavam, segundo Marx, a
moral da burguesia no âmbito familiar e conjugal. Marx expressa aí a ideia de que
a dominação é ruim também para o próprio dominador, ou seja, a tese expressa
no
Manifesto Comunista
de que emancipação proletária servirá como uma
alavanca para a emancipação da humanidade como um todo., carregando junto
consigo um avanço civilizatório de caráter universal.
Tanto o romance de Flaubert quanto a peça de Ibsen colocam em questão o
confinamento das mulheres ao mundo opressivo do lar, em detrimento de seu
acesso ao trabalho, ao estudo, à criatividade e à busca de uma existência singular
uma existência humana, enfim como dirá Simone de Beauvoir, no século
seguinte e como Nora argumenta com o marido Torvald, antes de bater a porta de
sua
Casa de Bonecas
, em busca de liberdade.
Num interessante artigo em que analisa detalhadamente espetáculos
recentes que retomam o texto e o argumento
Casa de Bonecas
a peça preferida
de Tussy Lúcia Romano (2018) nos mostra o quanto o dilema de Nora se mantém
na base das aflições do contemporâneo. O que leva a autora a valorizar as
perguntas feitas pelos artistas interessados em encenar a obra mais de cem anos
depois de sua criação e os limites das ditas conquistas das mulheres. É que os
dilemas de Nora e de Eleanor - eram dilemas da era do capital. E, bem, ainda
estamos em sua época.
A biografia de Rachel Holmes bem como o esforço das tradutoras em
socializá-la expressa a meu juízo, vários processos dignos de nota: o primeiro,
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se refere à revisitação mais recente que a vida e a obra de Marx vem conhecendo
nos últimos anos, que se expressa em uma entrada em cena de jovens militantes
e estudiosos nas hostes do que podemos chamar de socialismo marxista,
tanto na academia como em espaços públicos e redes sociais. Pode ser visto
também em produções artísticas recentes como o filme
O Jovem Karl Marx
pelo
cineasta haitiano Raoul Peck (de 2017) trazendo elementos biográficos ainda que
com significativa licença poética que contribuem para leituras menos
preconceituosas de Marx e de seus camaradas, e mais adequadas acerca das
contradições pessoais de seres humanos que viveram na sua própria pele as
contradições do capitalismo e de todo o edifício social que ele alavancou – como
a moral burguesa no momento de sua emergência. Contribui e muito para
isto os esforços de intelectuais e organizações do campo marxista que tem
recuperado e revisitado a gigantesca obra de Marx e Engels, sobretudo com os
trabalhos de MEGA II (Musto, 2012) e que nos remete, de novo, ao tema das
traduções e edições nos quais já se moviam Eleanor, Marx, Engels e camaradas do
século XIX. Momento agônico, grávido de possibilidades e de paradoxos, entre os
quais evidentemente, o peso do patriarcado, muito maior sobre as mulheres, mas
também real para os próprios homens. Muito mais brutal, em definitivo, para as
mulheres trabalhadoras do que para as burguesas, evidentemente, mas a elas
articulados. Assim, a Tussy que se descortina ao longo do livro cuja morte
violenta espanta e indigna é ao mesmo tempo “santa e mundana” humana,
portanto como seu pai, como Engels, e etc. Outro aspecto são os dilemas que
Tussy e tantas outras mulheres viveram naquela época, que não estão para nada
distantes do que vivemos hoje. Para além das recorrentes depressões – que viveu
na própria pele, mas que viu na própria mãe também o que viveu, no delicado
mundo do amor, no qual - pelo que descortina Holmes ao longo do livro e
sobretudo em “A pausa mais audaciosa” e “Vestido branco no inverno” (capítulos
finais) - nos sugere ser seu marido uma versão à la antiga do conhecido cafajeste,
ou, em termos atuais, o chamado “esquerdo-macho”. O escopo com que esta
dimensão da vida de Tussy adquire no livro, salvo melhor juízo, permite que não
deixemos de pensar que sua vida, por mais heroica que tenha sido e ela foi
não deixou de ser humana, atravessada de contradições decorrentes de ter sido
“filha de uma era coletiva e de Marx” (p.306). Ou, como ela escreve a sua irmã
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Laura, em 1892: “Não é surpreendente que quando encaramos as coisas de frente,
quão raramente parecemos praticar todas as coisas que pregamos para os
outros?”.
Um anexo contendo preciosas fotos também compõe o livro, além de um
pequeno posfácio da autora. Quanto a este, um comentário que deve ser feito: a
autora recorre a uma argumentação no mínimo polêmica e anacrônica: ao
expressar sua forma de interpretar o legado de Eleanor para a atualidade,
simbolizado em seu lema de vida (“Vá em frente”) mobiliza a categoria de social-
democracia em suas versões contemporâneas, muito distantes das que estiveram
presentes na “social democracia” do século XIX, cujo projeto envolvia uma ruptura
radical com a ordem e tinha teor revolucionário. Também sentimos falta de um
maior detalhamento das relações entre as feministas socialistas em especial
com Clara Zetkin, referida em varias ocasiões na obra particularmente, a
histórico discurso feito no I Congresso da II Internacional, em 1889, escrito por
Clara e traduzido por Tussy. Observa-se na obra, ainda, alguns problemas de
tradução que não diminuem o exitoso resultado obtido pelo coletivo de mulheres
tradutoras, entusiasmadas com a difusão da rica e inspiradora vida de Tussy e
que garantiu que a obra chegasse neste momento às nossas mãos.
6
Neste sentido,
reverberam o dilema manifestado pela própria Eleanor entre a necessidade de
rigor e cuidado com o trabalho editorial e urgência em difundir a uma ampla massa
de trabalhadores obras científicas e artísticas de ponta, à luz da boa tradição
socialista levada muito a sério por seu pai, e presente sobretudo na difusão de O
capital
7
(Tarcus, 2018). No prefácio ao livro de Lissagaray, sobre a Comuna, ela
expressa este tipo de preocupação optando por manter passagens originais ao
longo da longa obra, evitando “confundir os leitores” (Aveling, 2021, p.20).
A obra contribui seguramente com o louvável esforço feito por outras
pesquisadoras e militantes em superar as leituras liberais que fazem do feminismo
uma luta recente ou descolada da classe trabalhadora o que envolveu a questão
6
Nesta via, destacamos a importância do debate realizado com toda a equipe envolvida, no lançamento do
livro realizado em 5 agosto de 2021, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Y0kBq5VQGKs.
Acesso em: 10 jan. 2022.
7
Referimo-nos aqui, em particular, ao esforço empreendido por Marx e Engels em difundir os tomos de
O capital em varias línguas e de forma acessível à classe trabalhadora, para quem se destinava
prioritariamente a obra.
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Florianópolis, v.1, n.43, p.1-15, abr. 2022
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Recebido em: 13/01/2022
Aprovado em: 30/01/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
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