Apresentação do
Dossiê
Esporte e tecnologia: pensando corpos, práticas e artefatos
Organizadores do Dossiê
Michelle Carreirão Gonçalves
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Rio de Janeiro - RJ, Brasil
lattes.cnpq.br/2472089707664972
michelle_carreirao@yahoo.com.br
Wagner Xavier de Camargo
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
São Carlos - SP, Brasil
lattes.cnpq.br/8062918408696939
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Enquanto fenômeno paradigmático da modernidade (Elias; Dunning, 1992) e que se reinventa na chamada pós-modernidade (Araújo, 2012), o esporte segue influenciando, e sendo influenciado, pelo desenvolvimento técnico e tecnológico da sociedade contemporânea (Magdalinsky, 2009; Moreno; Machado, 2004). Do consumo de espetáculos esportivos ao uso de aplicativos de celular para a prática de exercícios físicos, passando pelas mudanças na precisão de pontuação de alguns esportes, ou mesmo a invenção de técnicas de melhoramento genético para incremento da performance, encontramos sua interface com a tecnologia. As exemplificações e considerações são abundantes e nos provocam a pensar mais profundamente a relação estabelecida entre ambos.
Seguindo nessa esteira, e impulsionados pelo ano olímpico e paralímpico de 2024, propusemos o presente dossiê para a Revista PerCursos, considerando a íntima relação entre campo esportivo e tecnologia, tema que ganha maiores holofotes em momentos de megaeventos, mas que segue como farol a iluminar o cotidiano de atletas, técnicas/os, preparadoras/es físicas/os, fisiologistas, árbitras/os, torcedoras/es e mais um sem-número de pessoas envolvidas diretamente com o esporte, seja produzindo-o ou consumindo-o. Mas apesar da longeva parceria entre esporte e tecnologia, esta não se dá sem tensões: problemáticas ligadas aos limites do que pode a intervenção tecnológica no campo do fazer esportivo, notadamente em sua atuação sobre a dimensão corporal, são assunto constante nos debates internos, e também na opinião pública (Vaz, 2017).
Por um lado, encontramos o uso legítimo e oficialmente regulamentado de dispositivos que auxiliam tanto no treinamento quanto na competição esportiva. Os exemplos são muitos: próteses mecânicas no lugar de membros amputados em paratletas; recursos audiovisuais que auxiliam e dão maior precisão à arbitragem (ao “corrigir” o aparato sensível – e impreciso – humano de árbitras/os e juízas/es, especialmente seus olhos); óculos tecnológicos que treinam o olhar de atletas para competições que exigem elevada concentração em um alvo (um obturador intermitente estimula o cérebro e melhora a visão); além de infindáveis registros e aferições via mecanismos externos, como tempo de reação, velocidade da bola, capacidade cardiorrespiratória, jogadas mais executadas, direção do vento, medidas dos implementos, etc.
Por outro, um conjunto de interditos, proibições e impedimentos que, supostamente, romperia com as condições formais de chances entre competidoras/es e mancharia o fair play (Tamburrini; Tännjo, 2000). Exemplar, neste sentido, são as próteses químicas, conhecidas como doping, configurado pelo uso de substâncias de origem farmacológica, que funcionam como um “veneno-remédio” na vida esportiva. Lembrando que medicações são necessárias para o restabelecimento das condições orgânicas de competidoras/es, na medida em que o treinamento implica em produção artificial de enfermidade, com objetivo de adaptação morfofisiológica e consequente fortalecimento corporal (Gleeson, 2002). No mesmo espectro, o debate sobre os níveis de testosterona em atletas serve como indicativo de regulação e normatização de corpos permitidos ou banidos das arenas esportivas (Jordan-Young; Karkasis, 2019). E aqui temos não apenas a questão do doping, mas todo um aparato de controle que coloca em suspensão todas as pessoas (notadamente mulheres) com disposições corporais dissonantes no que concerne à identidade de gênero, como é o caso de atletas trans e intersexo (Pires, 2021).
Vemos que os tensionamentos são muitos e constantes, na medida em que artificial e orgânico se misturam em uma prática que tem, em sua base e lógica interna, resistência às misturas e tendência ao seu apagamento. O ordenamento das competições esportivas por categorias, seja por “sexo” (dimensão apenas biológica), idade, tipo de deficiência e funcionalidade motora, por exemplo, tendem a demarcar uma ideia de natureza que garantiria disputas mais justas. Porém, a tecnologia compõe o esporte desde seus primórdios, tanto nos aparatos de controle e medição, quanto nas técnicas de produção do próprio corpo (Mauss, 2003).
Considerando a problemática geral, este dossiê traz contribuições que tomam o binômio esporte-tecnologia a partir de distintos enfoques para tentar responder (e aprofundar) algumas das inquietações explicitadas anteriormente. Um primeiro bloco de debates circunscreve a questão teoricamente, tendo a crítica ao neoliberalismo como guia. A pergunta se o esporte, mediado pela técnica, é um mecanismo de controle e gestão da vida no capitalismo contemporâneo é o que dá a tônica do artigo Problematizaciones biopolíticas en torno al capitalismo, el deporte y la técnica, de autoria de Santiago Pich, Virginia Alonso, Raumar Rodríguez e Fabio Zoboli. Ainda nessa esteira, o manuscrito Incorporaciones técnicas en el deporte de playa para el empresariamiento de sí, de Macarena Elzaurdia, mostra como a biopolítica opera no nível do indivíduo, através do “empresariamento de si”, e como as técnicas esportivas são incorporadas para transformar o atleta em um empreendedor de seu próprio corpo e imagem, otimizando-o para o mercado.
Um segundo conjunto de artigos trata das tecnologias de controle e normatização dos corpos no contexto esportivo. O material produzido por Raquel Sousa, Tecnologias de vigilância no futebol: uma análise sobre os processos de datificação dos Torcedores Brasileiros, amplia o foco dos corpos de atletas para os de torcedores, demonstrando como a tecnologia (datificação e permanente vigilância) atua sobre eles na arquibancada, transformando emoção e paixão em dados para consumo e controle. Já o artigo intitulado Las técnicas de la gimnasia artística como tecnologías de género: el proceso de formación de gimnastas-mujeres, de Martina Pastorino e Viviane Silveira, foca em uma tecnologia “invisível”, porém poderosa e sempre presente: as questões de gênero e suas diferenciações na ginástica artística, argumentando que as próprias técnicas esportivas são tecnologias que moldam corpos e subjetividades de acordo com normas de gênero, particularmente na modalidade referida.
Temos ainda um bloco composto por três contribuições que tratam sobre os limites da norma, seus tensionamentos, transgressões e redefinições. Em Transumanismo, esporte e tecnologia: os tensionamentos contemporâneos sobre os limites do corpo, assinado por João Victor Mazzucatto, Caio Henrique Cirillo e Wagner Xavier de Camargo, encontramos a discussão sobre o controle do corpo indo para outra direção, já que ao questionar o próprio paradigma de “humano”, o transumanismo tensiona as fronteiras entre o natural e o artificial, o terapêutico e o aprimoramento dos corpos. Já Danielle Torri e Alexandre Vaz trazem a questão do esporte paralímpico em Corpos tecnificados, eficientes, deficientes: notas sobre o esporte convencional e paralímpico, colocando a “deficiência” em diálogo crítico com a normatividade do corpo “eficiente” do esporte convencional, exemplificando como a tecnologia é ambivalente: pode ser um instrumento de normalização de corpos deficientes para um padrão de eficiência, mas também pode ser o que permite a existência desses corpos atléticos. Compondo ainda este apartado, há o artigo Entre subversões e regulações: o caso do paraskate e o uso de tecnologias em corpos com deficiências, de Gisele Gonçalves, Lumiar Bakker e Michelle Gonçalves, que argumenta, a partir do exemplo do paraskate (ou skate adaptado a pessoas com deficiência), pelo lugar das resistências e agenciamentos dos múltiplos corpos, na medida em que nesse esporte novo, as/os atletas usam a tecnologia de forma criativa, desafiando regulações e criando novas possibilidades corporais e esportivas.
Por fim, temos no material de autoria de Silvan Menezes, Gustavo Sanfelice e Cristiano Mezzaroba, Reflexões quanto ao esporte como artefato estético no contexto midiático-esportivo brasileiro, a saída do eixo político e produtivo (controle, eficiência, normatização) e entrada no campo do simbólico e do estético. Depois de discutir controle, vigilância, gênero, transumanismo e deficiência, há a pergunta: “E a beleza? E a emoção?” Este artigo lembra que o esporte, mesmo hiper-tecnologizado, é também um fenômeno estético, um produtor de sentidos e afetos que não se esgotam na lógica do controle, apontando para a complexidade irredutível do fenômeno esportivo.
Em suma, as contribuições reunidas neste dossiê evidenciam a emergência da relação entre corpo e tecnologia na arena esportiva a partir de suas múltiplas facetas. Controle, resistência, subversão e beleza constituem o esporte, fenômeno que bem expressa a complexidade da sociedade contemporânea atravessada pelo tema da tecnologia e suas vicissitudes.
Referências
ARAÚJO, Allyson Carvalho. Transformações do esporte: estética e regime de visibilidade (pós)moderno. Pensar a Prática, Goiânia, v. 15, n. 3, p. 773-788, 2012. DOI: 10.5216/rpp.v15i3.13687. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fef/article/view/13687. Acesso em: 17 nov. 2025.
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacional. Lisboa: Difel, 1992.
GLEESON, Michael. Biochemical and immunological markers of over-training. Journal of Sports Science & Medicine, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 31, 2002.
JORDAN-YOUNG, Rebecca; KARKASIS, Katrina. Testosterone: an unauthorized biography. Cambridge: Harvard University Press, 2019.
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
MORENO, Bruno Stramandinoli; MACHADO, Afonso Antonio. Esporte e a sociedade global: as subjetividades na contemporaneidade. Revista Educação Física UEM, Maringá, v. 15, n. 1, p. 1, p. 81-87, 2004.
PIRES, Barbara Gomes. Pânicos de gênero, tecnologias de corpo: regulações da feminilidade no esporte. Revista Estudos Feministas, [s. l.], v. 29, e7932, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/nYz7P78Hcpk4xgh9dRVkgHK/?format=html&lang=pt. Acesso em: 18 nov. 2025.
MAGDALINSKI, Tara. Sport, technology and the body: the nature of performance. London: Routledge, 2009.
TAMBURRINI, Claudio Marcello; TANNSJO, Torbjorn (eds.). Values in sport: elitism, nationalism, gender equality, and scientific manufacture of winners. London: E & FN Spon, 2000.
VAZ, Alexandre Fernandez. Esporte: encontro entre corpo, técnica e tecnologia. Cadernos de Formação RBCE, [s. l.], v. 7, n. 2, p. 88-96, 2017.
Michelle Carreirão Gonçalves
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Wagner Xavier de Camargo
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