Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246   Apresentação do Dossiê

VII Seminário de Desenvolvimento Regional, Estado e Sociedade (SEDRES)

 

       Editora-Chefe

 

Renata Rogowski Pozzo

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Florianópolis, SC – Brasil

lattes.cnpq.br/9796037801500104   

imageorcid.org/0000-0003-3965-4813      

renata.pozzo@udesc.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Percursos horizontais do desenvolvimento regional

Entre 25 e 28 de setembro 2024, o Programa de Pós-graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGPLAN-UDESC) realizou o VII SEDRES - Seminário de Desenvolvimento Regional, Estado e Sociedade, com o tema “Os desafios do desenvolvimento socioambiental e as horizontalidades: pontes entre a região, o Estado e o cotidiano”[1]. O SEDRES é um seminário itinerante articulado e organizado por programas de pós-graduação filiados à ANPUR (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional) e que tem por objetivo estabelecer um canal de interlocução em torno da temática específica do desenvolvimento regional. Desde a primeira edição já passou pelas cidades de Rio de Janeiro/RJ (2012) Campina Grande/PB (2014), Blumenau/SC (2016), Palmas/TO (2018), Taubaté/SP (2021) e Crato/CE (2022). Após Florianópolis/SC sediar o evento em 2024, ele será realizado em Marabá/PA em 2026.

Ao trazer a potência das horizontalidades e do cotidiano, presente na temática do evento, o VI SEDRES nos convida a revisitar as contribuições e heranças do geógrafo Milton Santos para o campo do Planejamento e do Desenvolvimento Regional.

Tendo se aproximado do planejamento a partir de seu estado natal, a Bahia, as ideias críticas de Milton Santos sobre o campo moldam-se em perspectiva internacional, especialmente a partir de sua experiência do exílio, entre 1964 e 1977. Em seu trânsito por universidade e instituições na França, EUA, Canadá, Peru, Venezuela e Tanzânia, desenvolve sua crítica mais contundente ao planejamento territorial, ao observar como o processo de internacionalização da economia subordina as regiões a interesses externos, tornando-as derivadas de necessidades alheias às suas populações, e assevera: "da mesma maneira que nós planejamos o desenvolvimento, há aqueles que estão nos planejando o subdesenvolvimento, porque não temos o comando” (Santos, 1972, p. 323 apud Leite, 2019, p. 152).

Ao retornar ao Brasil, em 1977, Milton Santos se engaja profundamente na discussão da constituinte, e o tema da cidadania passa a orientar sua concepção de planejamento e de desenvolvimento, resultando na formulação de conceitos como o de espaço banal, horizontalidades e verticalidades, saber local e, como síntese, de território usado.

Através do olhar deste geógrafo, entendemos que as correntes hegemônicas do Planejamento Urbano e Regional são funcionais à política das grandes empresas, ou seja, o planejamento territorial capitalista significa "a produção da ordem para as empresas e da desordem para todos os outros agentes, e para o próprio território” (Santos, 1999, p. 21). É justamente na contraposição de um planejamento que trabalha com o “espaço econômico” que Milton Santos elabora um novo conceito de partida, o de “espaço banal”.

O espaço econômico (que Santos apropria de Perroux) é o espaço dos fluxos dominantes, dos comandos externos, ou seja, é o circuito superior da economia. É um espaço de pontos e redes, seletivo e excludente. Santos o associa às “verticalidades” – forças que conectam o lugar verticalmente aos circuitos globais, frequentemente impondo lógicas externas. É o espaço privilegiado pelo planejamento tradicional.

Em oposição, o espaço banal é o espaço de todos. É o espaço da contiguidade, da vida cotidiana, da comunhão e da comunicação. É o território vivido por "todos os homens, não importam as suas diferenças; de todas as instituições, não importa a sua força; de todas as empresas, não importa o seu poder” (Santos, 1996, p. 9). Santos o associa às horizontalidades – o conjunto de relações e fluxos que se estabelecem entre os atores locais co-presentes no território.

A opção pelo espaço banal implica, necessariamente, em valorizar a escala do cotidiano. Para Milton Santos, é na vida cotidiana, no lugar, que se encontram as sementes para a construção de futuros alternativos. É aqui que sua obra adquire um tom profundamente esperançoso e original. Ele inverte a lógica convencional sobre quem detém o poder de moldar o futuro.

Santos argumenta que os atores hegemônicos (os "rápidos", que detêm a mobilidade e a velocidade dos fluxos globais) estão, na verdade, aprisionados em um imaginário perverso de imagens pré-fabricadas. Sua comunhão com este mundo virtual é sua perdição, pois os impede de ver verdadeiramente a cidade e o mundo (Santos, 1994). Em contrapartida, os "lentos" – os pobres, os migrantes, as minorias, aqueles cuja experiência é marcada pela imobilidade ou lentidão corporal – desenvolvem uma aguçada percepção da realidade. Por não poderem se manter em sintonia com as fabulações hegemônicas, são forçados a descobrir as fabulações. Sua lentidão corporal contrastaria com a "celeridade dos espíritos".

Portanto, a força é dos lentos. A periferia se torna o centro. Os “mais fracos, no espaço, [...] têm a força de portar o futuro” (Santos, 1996, p. 12). O papel da ciência socioespacial, nesse contexto, pode ser o de revelar essas potencialidades do lugar, buscando “entender os mecanismos de uma nova solidariedade fundada nos tempos lentos da metrópole, que desafia a perversidade dos tempos rápidos da competitividade” (Santos, 1994, p. 82).

A valorização do lugar e dos lentos está diretamente ligada à defesa do saber local. Para Milton Santos, o sábio local é aquele que, respirando o lugar, consegue conectar a experiência cotidiana com a compreensão das dinâmicas globais. "O sábio local não é aquele que somente sabe sobre o local propriamente dito; tem de saber, mais e mais, sobre o mundo” (Santos, 1999, p. 21). A partir desse conceito, Santos propõe uma epistemologia que se torna também uma crítica contundente à produção acadêmica convencional. Se o objetivo da pesquisa em planejamento é fomentar o desenvolvimento social, é necessária outra a forma de produção do saber. Essa nova forma deve ser aberta, engajada e voltada para a valorização dos saberes territoriais existentes fora da academia, bem como pautada na necessidade de desenvolvimento de pesquisas fundamentais que ofereçam conceitos válidos para o planejamento local (Leite, 2019, p. 123).

Por fim, propõe que o instrumento de análise para este novo planejamento deve ser o "território usado" (Santos, 1999). Isso significa que a análise não pode se limitar a uma descrição física ou econômica do espaço, mas deve considerar como as pessoas realmente o usam, como o vivem e como o transformam no seu dia a dia. Cabe ao planejamento, portanto, direcionar suas atenções para baixo, para as brechas e para os interstícios. Desse modo, propõe-se a reconfiguração de futuros possíveis, nos quais o social não esteja subordinado a economia, pelo contrário a economia deve estar sujeito ao social.

Inspirados por essas ideias, a comissão organizadora do evento elaborou as ementas das Sessões Temáticas, organizadas em torno de 7 eixos, coordenados por professores e professoras de diversas instituições:

1 Questões teóricas e metodológicas do desenvolvimento

Coordenadoras: Renata Rogowiski Pozzo – UDESC; Larissa da Silva Ferreira Alvez - PLANDITES-UERN; Luciana Butzke - FURB

2 Dinâmicas socioeconômicas regionais

Coordenadores/as: Isa de Oliveira Rocha - UDESC; Ivo Marcos Theis - FURB; José Messias Bastos - UFSC; Maria de Lourdes Bernatt - UTFPR

3 Populações, migrações e desenvolvimento

Coordenadores/as: Gláucia de Oliveira Assis - UDESC; Wilson Fusco – FUNDAJ; Temis Gomes Parente – UFT.

4 Estado, políticas públicas e desenvolvimento regional

Coordenadores/as: Samira Kauchakje – UDESC; Valério Alécio Turnes- UDESC; Tomas Moreira- USP

5 Gestão e desenvolvimento socioambiental

Coordenadores: David Valença Dantas – UDESC; Jairo Valdati - UDESC; Rafael Albuquerque Xavier - UEPB

6 Território, cultura e identidades

Coordenadores/as: Douglas Ladik Antunes – UDESC; Maria Rita Ivo de Melo Machado – UFRPE; Luciano Félix Florit - FURB

7 A espacialidade no planejamento e na gestão territorial

Coordenadores/as: Ana Clara Mourão Moura – UFMG; Francisco Henrique de Oliveira - UDESC; Flavio Boscatto IFSC

Como parte da programação do evento, a  PerCursos  participou  da  mesa  redonda  sobre  os Desafios em Comum enfrentados pelas revistas do campo do Desenvolvimento Regional. Na ocasião, reconheceu-se o “ser-editor/a” como um  trabalho  técnico-político,  e  refletiu-se  sobre  o  papel  das  revistas  no  processo  de revelação  e  ocultamento  de  debates  científicos.  Também,  foi  expressado  o  desejo  de posicionar a PerCursos em um lugar de solidariedade no contexto da produção científica, em  oposição  à  uma  postura  de  competição,  e  de  contribuir  com  a  construção  de  um circuito  latino-americano  de  produção  e  circulação  do  conhecimento,  ou  seja,  consolidar um  projeto  de  internacionalização  comprometido  com  o  bem  comum.

Consolidando a adesão da PerCursos ao PPGPlan e sua aproximação com o campo do Planejamento Urbano e Regional, abrimos espaço para que os coordenadores indicassem 3 artigos de cada sessão, para submissão a um dossiê temático dedicado ao evento, que vem a ser publicado neste ano de 2025. Os artigos, então, seguiram novo fluxo avaliativo, de acordo com a política editorial da revista. Assim, dentre as dezenas de trabalhos publicados nos Anais do evento[2], 17 foram destinados ao dossiê da PerCursos.

Enquadrados na temática Questões teóricas e metodológicas do desenvolvimento, foram publicados os artigos “Uma mirada no desenvolvimento regional desde o Movimento Zapatista (México)”, de Diego Boehlke Vargas, Ivo Marcos Theis e Rosario Rogel-Salazar; “Ecodesenvolvimento e agroecologia: caminhos para a afirmação da natureza”, de autoria de Wandoir Sehn, Erica Karnopp, Evandro de Oliveira Lucas e Régis Dattein Solano e; “Aspectos destacados para uma epistemologia política do desenvolvimento: utopia, ideologia, neoliberalismo e desenvolvimento” de Sandro Luiz Bazzanella, Cintia Neves Godoi e Jairo Marchesan.

Sobre a temática Dinâmicas Socioeconômicas Regionais, trazemos três artigos. “Moda feminina e políticas de inovação: desigualdades no Polo de Confecções do Agreste Pernambucano”, de Franciclézia de Sousa Barreto Silva; “A financeirização e os seus reflexos sobre grandes grupos têxteis de Blumenau e Brusque”, de Vanessa Follmann Jurgenfeld e; “Dinâmicas territoriais e crise no transporte público regional catarinense”, de autoria de João Henrique Zoehler Lemos.

O tema das Populações, migrações e desenvolvimento foi abordado pelos autores Lucas Matias da Silveira, Michelle Maria Stakonski Cechinel e Tafarel Cassaniga no artigo “Amparo legal e inserção social de imigrantes internacionais em Santa Catarina: uma análise do SISMIGRA (2000-2022)”. Também, enquadrou-se nessa temática o artigo “Ser mulher já é difícil. Ser mulher na rua é ainda mais”: a violência contra mulheres em situação de rua/sem-abrigo no Brasil, Portugal e França” de Lidiane Maria Maciel e Thamires Vieira Martins de Melo. Por fim, compõe a temática o artigo “Interiorização e trabalho na Operação Acolhida: uma análise da migração venezuelana no Oeste de Santa Catarina (2018-2024)”, de Vicente Ribeiro e Camila Betoni.

A sessão “Estado, Políticas públicas e desenvolvimento regional” está representada pelo artigo “Década do envelhecimento saudável nas Américas: principais contribuições para formulações de políticas públicas”, de Guilherme Mocelin, Douglas Silva do Prado e Maria de Lourdes Bernartt.

Já o campo da “Gestão e desenvolvimento socioambiental” foi contemplado pelos artigos “Proteção da sociobiodiversidade nos instrumentos de planejamento e gestão territorial: o caso dos butiazais de Imbituba (SC)”, de Elisa Serena Gandolfo, João Henrique Quoos e Douglas Ladik Antunes; “Tragédia socioambiental: o afundamento do solo em cinco bairros de Maceió/AL” de Cid Olival Feitosa e Augusto da Silva Romeiro e; “Desafios na efetivação da gestão das unidades de conservação: uma análise das UCs no estado da Paraíba”, de Valéria Raquel Porto de Lima e Laura Wanessa Trevas Marinho.

Outros três artigos foram selecionados dentre os que se propuseram a debater “Território, cultura e identidades” no desenvolvimento regional. “Conflitos de pertencimento: os aglomerados rurais fronteiriços localizados entre os municípios de Apodi e Severiano Melo (RN)”, de autoria de Antonia Teankydys Leymange Silva Nunes e Josué Alencar Bezerra; “Há (P)lanejamentos e (p)lanejamentos – por uma gramática da participação social na produção de cartografias participativas”, de Marcelo Cunha Varella, Letícia Ayumi Duarte e Roberto Martins de Souza e; “Reutilização do patrimônio industrial em Florianópolis/SC”, de Bernardo Brasil Bielschowsky e Felipe Y Castro Camillo.

Por fim, a temática “A Espacialidade no planejamento e na gestão territorial” figura com os  artigos “Demarcação dos terrenos de marinha: aspectos históricos”, de Cesar Rogério Cabral e Francisco Henrique de Oliveira e “Paisagem cultural do Vale do Rio da Luz (SC): gestão a partir de dados geoespaciais”, de Isabela Benedet Bardini e Guilherme Linheira.

O dossiê ainda apresenta uma entrevista realizada com a professora Raquel Gutiérrez Aguilar, doutora em sociologia com uma longa carreira militante e ativista, intitulada “Hacer, Sostener, Luchar:  Produção do comum, feminismos e território como Ato Político”. Como pesquisadora da Universidade Autônoma de Puebla e da UNAM, Raquel Aguilar estudou e documentou os processos constituintes do Equador e da Bolívia. Entre seus livros, destacam-se: “Horizontes comunitário-populares” e “¡A desordenar! Por una historia abierta de la lucha social”. A professora Raquel realizou a Conferência de Abertura do Evento, e, durante sua estadia em Florianópolis dedicou seu tempo à uma conversa com os estudantes de pós-graduação do PPGPLAN Fabiano Bernardes da Silveira e Liliane Moreira Brignol.

Esperamos que este dossiê constitua uma boa amostra do conteúdo das discussões elaboradas durante o VII SEDRES, apontando direções para a ampliação da ideia de desenvolvimento regional, no sentido da construção da cidadania e da justiça socioambiental.

 

Referências

LEITE, Gabriel Carvalho da Silva. Por um ordenamento cívico do território: uma reflexão crítica sobre o planejamento urbano e regional a partir da obra de Milton Santos. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido) – Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.

SANTOS, Milton. Metrópole: a força dos fracos é seu tempo lento. In: Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994.

SANTOS, Milton. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência, Boletim Gaúcho de Geografia, [s. l.], n. 21, p. 7-14, 1996.

SANTOS, Milton. O território e o saber local: algumas categorias de análise. Cadernos IPPUR, [Rio de Janeiro]: UFRJ, ano III, n. 2, p. 15-26, ago./dez. 1999.

 

 

 

Profa. Renata Rogowski Pozzo

Editora-chefe da Revista PerCursos

 



[1] Para mais informações sobre o evento, acessar: https://doity.com.br/vii-seminario-de-desenvolvimento-regional-estado-e-sociedade. Acesso em 16 dez. 2025.

[2] Os Anais do VII Sedres encontram-se disponíveis em: https://doity.com.br/anais/viisedres. Acesso em 16 dez. 2025.