O Legado da linguagem visual do Vaporwave: a representação nos estágios tardios do capitalismo

    Gustavo Stephan Rocchetti Luz, Luisa Angélica Paraguai Donati

O LEGADO DA LINGUAGEM VISUAL DO VAPORWAVE:

A REPRESENTAÇÃO NOS ESTÁGIOS TARDIOS DO CAPITALISMO  

 VAPORWAVE’S VISUAL LANGUAGE LEGACY:

REPRESENTATION IN THE LATE STAGES OF CAPITALISM

Gustavo Stephan Rocchetti Luz

Acadêmico de Design Digital pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas ( PUC Campinas) – guluzpato@gmail.com – orcid.org/ 0000-0002-5660-4896

Luisa Angélica Paraguai Donati

Doutora em Multimeios pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – luisaparaguai@gmail.com – orcid.org/ 0000-0002-3886-8118

Resumo

O artigo disserta sobre a visualidade do movimento Vaporwave, fundamentando em Hall (1997) o sistema da linguagem – seus códigos e as construções de sentidos, conformadas pelos signos. Neste sentido, analisa-se a capa do álbum “Floral Shoppe” (2011), identificando os elementos visuais e o contexto de suas mensagens políticas, posteriormente discutidos diante da apropriação por grandes corporações, ainda que se apresentem ideologicamente contrárias.

Palavras-chave:   Artes gráficas - Vaporwave (Música); Memes; Comunicação visual na arte; Linguagem e internet.

Abstract

The article is concerned with the Vaporwave movement’s visuality, grounding in Hall (1997) the system of language - its codes and the construction of meanings, conformed by signs. In this sense, the cover of the album “Floral Shoppe” (2011) is analyzed, identifying the visual elements and the context of their political messages, later discussed in the face of appropriation by large corporations, even if they are ideologically opposed.

Keywords: Graphic arts - Vaporwave (Music); Memes;  Visual communication in art; Language and the Internet.

Recebido em: 10/08/2020

Aceito em: 16/08/2021


1 INTRODUÇÃO

O surgimento e popularização da internet no período entre os séculos XIX e o XX causaram não só uma mudança nas rotinas diárias, mas também o surgimento de novos formatos comunicacionais, modos de trabalhar e dinâmicas sociais que modelizaram a vida no novo século. Mais ainda, no início dos anos 2010, a internet e sua cultura de compartilhamento encontram-se mais otimizadas e organizadas em estruturas que atendem e articulam os mais diversos públicos. Especificamente com o desenvolvimento das redes sociais, artistas e entusiastas com ideias e ideais similares se agregam em comunidades e grupos online para trocas de experiências, tornando-os locais de encontros onde borbulham e organizam as expressões criativas dos movimentos undergrounds: grupos identitários de interesses comuns (semelhantemente aos punks ou os góticos, mas em ambientes digitais).

Uma destas expressões undergrounds com origem no ambiente digital é o Seapunk, uma subcultura intimamente ligada com as redes sociais online. Nomeado a partir da justaposição das palavras sea (mar, em inglês) e punk, entusiastas da subcultura combinam elementos da imagética marinha com cultura punk para criar uma identidade visual e estilística singular, constituída de músicas, roupas, e montagens visuais. O desenvolvimento deste movimento, intimamente ligado às redes sociais, constituiu-se com um grupo secreto no Facebook, visto e frequentado apenas por usuários convidados que dialogicamente formataram os conceitos dessa estética (WEIRDVIBESMTVHIVE, 2013). Entretanto, ainda que majoritariamente voltado para um público underground, artistas populares e de grande público começaram a utilizar da mesma construção visual sem creditar a sua origem, como Lady Gaga, Azealia Banks e, mais notoriamente, Rihanna. Esta se apropriou do estilo em uma performance no programa Saturday Night Live, marcando simbolicamente o fim do que ficou conhecido como o movimento Seapunk por conta da popularização do estilo. Assim, o status underground é desmontado diante do reconhecimento do público massivo a partir da apropriação de uma grande artista mainstream e não dos artistas que o originaram, levando estes então a abandonaram o movimento (VOX, 2016).

Dentro do mesmo contexto e de maneira semelhante, surge o Vaporwave, movimento artístico online no qual as possibilidades de criação e referências existentes são compartilhadas na internet pelos artistas para a concepção de imagens e sons. A produção é marcada principalmente pelas cores incomuns, uso de samples (fragmentos de obras já existentes utilizados como elemento modular na criação de novas obras) sonoros e imagéticos nostálgicos e uso marcante de reverb (efeito sonoro semelhante a uma câmera de eco) na música (HEELS, 2015). Diferentemente do Seapunk, o Vaporwave tem início de maneira dispersa com entusiastas reunindo e apreciando obras com elementos semelhantes. Entre elas estão os álbuns “Eccojams Vol. 1”, lançado pelo artista "Chuck Person” (pseudônimo), em 2010, e "Far Side Virtual", lançado por James Ferraro em 2011. O primeiro álbum utiliza samples de músicas dos anos 80 para criar uma sonoridade própria e marcante pelo efeito de eco, que se articula com a "memória cultural e utopismo enterrado nas comodidades capitalistas, especialmente aquelas relacionadas com tecnologias de consumo na área de computação e de entretenimento audiovisual" (DOLL apud ESQUIRE, 2016, nossa tradução[1]). O segundo álbum, “Far Side Virtual”, demonstra uma atitude visual utopista e retro-futurista, revisitando e se apropriando do entusiasmo da cultura da internet em seu início nos anos 90, com faixas com títulos como "Global Lunch" e "Palm Trees, Wi-Fi and Dream Sushi" (ESQUIRE, 2016). Estas obras foram posteriormente definidas como precursoras do movimento e iniciaram “o gênero desacelerado, remixado e apropriativo definido pelo menos em parte por uma obsessão pela cultura consumista dos anos 1980 e 1990 - o primeiro gênero nascido e que viveu sua vida inteira na internet” (ESQUIRE, 2016, nossa tradução[2]).

O movimento foi consolidado, entretanto, com o álbum “Floral Shoppe” (2011), lançado pela artista Ramona Xavier sob o pseudônimo Macintosh Plus. O álbum estabeleceu padrões musicais, visuais e estéticos emblemáticos que seriam posteriormente seguidos por outros produtores (MONTEIRO; AMARAL; RIOS, 2017). Assim, o movimento expandiu-se e se diversificou, gerando trabalhos que passariam a divergir musical e visualmente em subgêneros (como o VaporTrap, que combina elementos Vaporwave com elementos do Trap, representado principalmente pelo álbum auto-intitulado do artista Blank Banshee) que compartilhavam elementos sonoros, visuais e ideológicos. Podemos citar destes elementos principalmente o uso de técnicas digitais para a criação de imagem, a sonoridade característica do ritmo desacelerado e o uso de câmera de eco nas músicas, além do já mencionado apelo pela nostalgia através dos samples de canções dos anos 1980 e 1990 e da iconografia de tecnologia típica deste período.

Inicialmente, havia uma postura cética em relação ao consumo exacerbado e às crises do capitalismo tardio, compreendido como um estágio do sistema econômico no qual a fortificação de contradições internas marca um declínio do mesmo apesar da alta nos lucros (SILVA, 2012). O nome Vaporwave vem simultaneamente da expressão vaporware, usada para designar produtos que eram anunciados, mas nunca lançados, e do conceito de “ondas de vapor”, derivado da frase de Marx & Engels (1848, nossa tradução[3]): “(...) todas as novas opiniões formadas se tornam antiquadas antes que possam se ossificar, tudo que é sólido se desmancha no ar, tudo que é sagrado é tornado profano (...)”.

Assim, assumindo o princípio anti-consumista do Vaporwave, começou-se a discutir uma suposta morte do movimento quando o mesmo deixou de frequentar somente os ambientes undergrounds da internet. Essa ideia dava-se pelo fato de grandes corporações apropriarem-se do estilo visual do movimento para promoverem seus próprios produtos, mais notoriamente a emissora de televisão MTV e a rede social Tumblr. Ainda que ambas estivessem conectadas ao movimento (com a emissora de televisão americana constituindo-se como uma das referências recorrentes à cultura consumista dos anos 90 e a rede social sendo um espaço de divulgação diante do compartilhamento de trabalhos e imagens de artistas), com a apropriação da estética e estilo visual para fins lucrativos pelas empresas a ambiguidade entre a nostalgia e crítica ao consumismo mostrou-se violada, como descrito por Pearson (2015) no artigo intitulado “Como o Tumblr e a MTV Mataram a Estética Neon Anti-Corporativa do Vaporwave”:

E aqui é onde os limites sagrados do gênero são passados. Aqui é onde o impulso cínico que animava o Vaporwave e a estética baseada no Tumblr que é associada com ele é cooptada e apagada em ambos os lados - onde o material se origina e onde ele mora. (PEARSON, 2015, nossa tradução[4]).

Diferentemente do que ocorreu com a subcultura Seapunk, a suposta morte do Vaporwave foi lamentada e trouxe a percepção do movimento como um fantasma, que passa a perambular pela cultura mainstream – um espectro ou uma assombração de suas ideias originais. Ainda assim, por mais que o Vaporwave como movimento tenha ficado à deriva, seu estilo é encontrado até os dias de hoje em diferentes expressões, comerciais e estilísticas, mas pouco associado com suas origens anti-consumista e crítica ao capitalismo tardio. Entre outros exemplos citam-se o uso de iluminação neon em filmes (em Atomic Blonde (2017) e Nerve (2016), por exemplo) e o revivalismo dos anos 80 e 90 (como na série Stranger Things (2016) e no videoclipe de Juice (2019), da artista Lizzo). Uma produção audiovisual que se opõe à mensagem do Vaporwave ao mesmo tempo que se apropria de sua visualidade é o clipe da música 7 rings da cantora Ariana Grande, no qual a artista utliza de elementos visuais do movimento enquanto a letra da canção descreve e ostenta aspectos luxuosos e de consumo em sua vida pessoal (GENIUS, 2019).

Assim, reconhecendo que todo signo utilizado na composição/estrutura visual interfere na significação da mensagem, apresenta-se pertinente uma análise visual do movimento para a compreensão desta expressão e o processo de tradução entre as obras originais e as apropriações formalizadas em diversos contextos midiáticos.

2 FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA

Primeiramente apontamos os conceitos de linguagem, representação e semiótica propostos por Hall (1997), a fim de entender o processo de criação de significados nas produções culturais e seus diferentes impactos na sociedade. O autor coloca a linguagem como um conjunto de signos organizados entre outros capazes de carregar e expressar sentidos – funcionando através de um sistema que combina os seguintes elementos:

A partir desta categorização, Hall (1997, p. 1, nossa tradução) elabora o conceito de representação, expresso como o processo no qual estes elementos são interconectados para produzir significado: “Representação significa usar a linguagem para se dizer algo significativo sobre, ou para representar, o mundo com significado, para outras pessoas”[5]. Interpretando a cultura a partir de seus mapas conceituais e sistemas de signos compartilhados, além dos códigos que norteiam as relações na tradução entre os processos de representação, Hall (1997) entende os códigos como caminhos, que permitem certos conceitos e ideias serem expressos e interpretados. Assim, é possível compreender a linguagem visual do Vaporwave como uma configuração codificada que se insere na sociedade pelo fenômeno da globalização e consolidação da internet diante da dissolução das fronteiras geográficas e do compartilhamento de experiências semelhantes.  

Deste modo, assumindo que os objetivos comunicacionais originais do Vaporwave apresentavam de fato uma perspectiva anti-consumista e crítica ao capitalismo tardio, é pertinente analisar sua linguagem visual para compreender como estes códigos se estabelecem no processo de representação, como seus signos visuais relacionam-se aos conceitos estabelecidos em nossos mapas mentais e de significação. Visando uma aproximação semiótica, a partir de Hall (1997), contextualiza-se o movimento Vaporwave e seus objetos midiáticos como práticas culturais de compartilhamento e criação visual. É proveitoso então utilizar-se de uma base teórica que fundamente estrutura e elementos básicos para o alfabetismo visual, como sugere Dondis (2003), ao indicar os princípios básicos da comunicação visual:

A caixa de ferramentas de todas as comunicações visuais são os elementos básicos, a fonte compositiva de todo tipo de materiais e mensagens visuais, além de objetos e experiências: o ponto, a unidade visual mínima, o indicador e marcador de espaço; a linha, o articulador fluido e incansável da forma, seja na soltura vacilante do esboço seja na rigidez de um projeto técnico; a forma, as formas básicas, o círculo, o quadrado, o triângulo e todas as suas infinitas variações, combinações, permutações de planos e dimensões; a direção, o impulso de movimento que incorpora e reflete o caráter das formas básicas, circulares, diagonais, perpendiculares; o tom, a presença ou a ausência de luz, através da qual enxergamos; a cor, a contraparte do tom com o acréscimo do componente cromático, o elemento visual mais expressivo e emocional; a textura, óptica ou tátil, o caráter de superfície dos materiais visuais; a escala ou proporção, a medida e o tamanho relativos; a dimensão e o movimento, ambos implícitos e expressos com a mesma frequência. São esses os elementos visuais; a partir deles obtemos matéria prima para todos os níveis de inteligência visual, e é a partir deles que se planejam e expressam todas as variedades de manifestações visuais, objetos, ambientes e experiências (DONDIS, 2003, p. 23).

Assim, explicita-se a organização, como colocado a seguir (Tabela 1), em pares opostos de técnicas de contraste e harmonia, ainda que expressos simultaneamente.

Tabela 1: Técnicas visuais de comunicação de Contraste x Harmonia.

Contraste

Harmonia

Instabilidade

Equilíbrio

Assimetria

Simetria

Irregularidade

Regularidade

Complexidade

Simplicidade

Fragmentação

Unidade

Profusão

Economia

Exagero

Minimização

Espontaneidade

Previsibilidade

Atividade

Estase

Ousadia

Sutileza

Ênfase

Neutralidade

Transparência

Opacidade

Variação

Estabilidade

Distorção

Exatidão

Profundidade

Planura

Justaposição

Singularidade

Acaso

Sequenciedade

Agudeza

Difusão

Episociedade

Repetição

 Fonte: (DONDIS, 2003, p. 24).

Entendemos que a partir do uso de dinâmicas inter-relacionadas fortalece-se e converge a comunicação da informação visual. Para uma compreensão do movimento Vaporwave é pertinente apropriar-se destas técnicas para compreender visualidades e significados da capa do emblemático álbum Floral Shoppe (2011), posteriormente comparado com o clipe de 7 Rings, como um estudo de caso exploratório, questionador da linguagem visual e dos significados contraditórios encontrados nas diferentes obras.

3 ÁLBUM FLORAL SHOPPE

Pretende-se discorrer sobre as obras mencionadas acima a fim de entender seus códigos no processo de representação e significação. O álbum Floral Shoppe (Figura 1), lançado em 2011 pela artista sob o pseudônimo Macintosh Plus, tem uma importância fundamental no movimento, caracterizado pelo uso extensivo de samples distorcidos, do efeito reverb e do tempo (batidas por minuto da música) desacelerado. “Nenhum outro álbum em memória recente captura tão bem o início do século XXI como um mundo acelerado e antrodecêntrico rapidamente se tornando mais simulado e mais digitalizado a cada ano que passa” (TANNES, 2016, p. 35, nossa tradução[6]).

Figura 1: Capa do álbum Floral Shoppe, por Macintosh Plus. Fonte: Screenshot do vídeo MACINTOSH PLUS - FLORAL SHOPPE - 02 リサフランク 420 - 現代のコンピュー

image3.png

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=bAgmGZ9iQ2Y. Acesso em julho de 2020.

A capa sobrepõe a imagem de um busto de uma estátua greco-romana sobre uma grade xadrez em preto, em perspectiva e transparente, compondo de maneira justaposta assimétrica juntamente a uma imagem de uma paisagem urbana e a tipografia em japonês e em verde, sobre um background preenchido inteiramente na cor rosa. A técnica de colagem digital é, por si só, um código a ser interpretado, visto que remete a diferentes movimentos artísticos (Surrealismo e Dadaísmo) e suportes materiais. Sendo que, a partir da justaposição e da fragmentação formam-se diferentes planos em conflitos, desafiando os elementos de profundidade e de bidimensionalidade, explicitados pela grade em xadrez em perspectiva, o volume tridimensional encontrado no busto e na planura da imagem urbana e dos escritos. Em seu referencial surrealista, a colagem “está intimamente relacionada ao jogo, à brincadeira e, por isso, a relação direta da colagem com a infância no trabalho de muitos artistas modernos e contemporâneos” (STEZAKER apud BERNARDO, 2012, p. 105). Como Bernardo (2012) coloca:

Além disso, o artista destaca o caráter nostálgico da colagem, fator que levaria a um ‘exílio do real' e a uma ‘saudade de um mundo perdido', que reflete o 'sentimento universal de perda’ nas vidas moderna e pós-moderna. É como se, através de um buraco na realidade, decorrente das associações inesperadas, nos abríssemos para o mundo dos sonhos e do inconsciente, construindo novos significados (BERNARDO, 2012, p. 105).

A nostalgia, “saudade de um mundo perdido” e o escapismo observados na herança surrealista da colagem são também temáticas recorrentes em obras do Vaporwave. O escapismo pode ser percebido através da criação de um espaço virtual fantasioso, no qual se observam aspectos físicos impossíveis, como as cores muito saturadas, o contraste entre os elementos que estabelecem planura e profundidade, as diferenças de escala, o exagero e a complexidade de estilos. Assim, estabelece-se um ponto de fuga da realidade concreta, podendo articular com o ambiente online – o habitar um espaço digital desconexo das regras do mundo físico. Outro aspecto visual é a grafia japonesa, um idioma ilegível e pouco experienciado para a maioria do público ocidental, mas também relacionado com a nostalgia, “saudades de um futuro perdido”, a partir da memória do consumo de produções nipônicas (como animes e mangás) e suas tecnologias futuristas, muitas vezes presentes nestas mídias. Procura-se reviver o otimismo em relação ao futuro, presente nestas referências, no qual se prometia um desenvolvimento tecnológico e uma melhora substancial na qualidade de vida, principalmente com a vitória do capitalismo em tempos finais à Guerra-Fria.

Entretanto, na atualidade, a intensificação das contradições e crises do capitalismo começam a demonstrar suas consequências em seu estágio tardio e emerge o sentimento de quebra das promessas de futuros melhores, resultando na nostalgia por um passado não vivido. Um exemplo é a paisagem urbana encontrada logo acima da grade em xadrez e identificada como um screenshot de uma gravação em VHS no qual é possível ver a cidade de Nova Iorque nos anos 80, com as torres do World Trade Center antes dos ataques do 11 de setembro (Figura 2).

Figura 2: Screenshot de comercial de fitas VHS da marca FUJI.

image2.png

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=SB6ss14MWDc&t=6m58s. Acesso em julho de 2020.

A representação desta cena mostra-se emblemática, uma vez que os ataques ao World Trade Center marcam o início do século XXI de uma maneira chocante como uma das consequências da violência do capitalismo que existem em camadas mascaradas do cotidiano (TANNES, 2016). Os impactos dos ataques ecoam por diversos anos, iniciando o período de “Guerra ao Terror” (FISHER, 2009) nos Estados Unidos, no qual o apelo ao patriotismo e reconstrução do imaginário de sua nação, coloca o Islamismo e as nações árabes associadas como um inimigo ou até mesmo um vilão que havia de ser urgentemente derrotado. Para o autor, a “Guerra ao Terror” causou a normalização de crise, tornando inimaginável a reversão das medidas tomadas para se lidar com uma emergência. A partir disso, ele desenvolve o conceito de "capitalismo realista", descrevendo o estado no qual é quase impossível imaginar um mundo sem ele, relacionando-se com a popular fala de Margaret Thatcher "não há alternativa" (Ibidem, p. 8), para argumentar que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo (JAMESON apud FISHER, 2009).

Esta atitude é então encontrada no movimento Vaporwave para retratar um espaço irreal, fantasioso, externo ao espaço físico e separado da temporalidade atual, no qual se revive as promessas otimistas de um passado que assombra o presente com suas falhas acentuadas. O elemento indicado para abordar as falhas do sistema e dos imaginários do passado é a introdução de elementos derivados da Glitch Art., uma apropriação intencional do erro das máquinas digitais a fim de explorar esteticamente os sintomas sobre fracasso, memória, nostalgia e entropia (GLI.TC/H, 201-?). No álbum em questão o glitch é perceptível através da desaceleração dos samples e de suas repetições, que aplicadas ao efeito da câmera de eco simulam repetições travadas, interrupções e o mal funcionamento de um rádio ou um vinil. O recurso visual do glitch acontece em diversas obras do movimento e até em releituras desta capa como mostra a figura 3. A partir deste recurso codificado, percebe-se a postura crítica do movimento à cultura de consumo, assumida como fracassada, que implica em uma mensagem política.

Figura 3: Releitura da capa do álbum Floral Shoppe (2011).

image1.png

Fonte: https://letsglitchit.tumblr.com/post/91816899466/i-bet-hope-the-vaporwave-people-are-still-awake.

Acesso em: julho de 2020.

Retoma-se então a herança Dadaísta da colagem, no qual “o objetivo estético [...] era idealizar a realidade, ao passo que o montador de fotografias Dadá pretendia dar algo totalmente irreal toda a aparência de algo real” (HÖCH apud BERNARDO, 2012, p. 32). Os artistas deste movimento tinham a intenção de materializar ideias, sabendo que os temas abordados em suas obras tinham um grande potencial ideológico e propagandístico, por isso as referências sarcásticas diretas aos eventos políticos da época (BERNARDES, 2012), enquanto os artistas do Vaporwave parecem operar em uma maneira diferente, procurando apresentar ideias com uma construção visual abstrata. É possível reconhecer no Vaporwave o mesmo teor político, como discutido neste artigo, porém não há um valor propagandístico bem explorado, uma vez que seus signos e códigos apresentam-se mais claramente perceptíveis pelo valor estético, diferentemente do grupo Dada, que apresentava maior interesse na expressão material de novos conteúdos e menos no estabelecimento de uma nova estética (Ibidem).

Por fim, pode-se concluir que os elementos visuais do Vaporwave demonstram de fato uma postura cética e até crítica ao capitalismo, favorecendo elementos visuais de contraste ao invés de harmonia (Tabela 1), que ditam uma criação desconcertante que explicita a falha, o erro e conecta o declínio do capitalismo tardio com o fracasso de suas promessas, revivendo-as. Entretanto, a perspectiva pessimista, sem apresentar alternativas concretas em oposição e apenas destacando falhas e sendo incapaz de imaginar, prioriza os signos visuais em detrimento ao conteúdo, tornando possível a apropriação pelas grandes corporações.

4 CONCLUSÃO

O Vaporwave insere-se então no fenômeno identificado por Lipovetsky e Serroy (2015) como “Capitalismo Artista”, um estágio do modo de produção no qual o seu foco dá-se na criação de desejos de consumo e na estética de prazeres, sonhos e emoções dos seus consumidores, estabelecendo uma forte relação entre a economia e a arte. Os autores caracterizam a sociedade em um período de super-estetização centrada na distribuição do mercado e na “elaboração dos objetos e serviços, as formas de comunicação, da distribuição e do consumo” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 40). Assim, percebe-se o Vaporwave enquanto vítima dos meios de produção estéticos, sendo apropriado e tendo sua identidade ideológica apagada para atender as demandas do mercado de uma economia imaterial que se aproveita dos entusiastas, como colocado:

(...) a exploração das expectativas emocionais dos consumidores: um capitalismo centrado na produção foi substituído por um capitalismo de sedução focalizado nos prazeres dos consumidores por meio das imagens e dos sonhos, das formas e dos relatos (LIPOVETSKY e SERROY, 2015, p. 42).

Assim, o movimento assemelha-se a uma comunidade colaborativa que, assim como outras subculturas, foi tirada do meio underground tomada pela cultura mainstream, assim como elementos do punk, por exemplo, foram apropriados equivocadamente pela cultura skinhead. Além disso, quando a própria comunidade anuncia sua morte entende-se como uma expressão contra-cultural, que busca negar sua vida comercial desvirtuada. Esta situação assemelha-se ao que Fisher (2009) diz a respeito de Kurt Cobain:

Cobain sabia que ele era apenas outra peça de espetáculo, que nada funcionava melhor do que um protesto contra a MTV, sabia que todos seus movimentos eram um clichê roteirizado previamente, sabia que até perceber isso era um clichê (FISHER, 2009, p. 9).

Os artistas independentes e criadores da estética visual e sonora do Vaporwave, controlando os códigos, transformaram o movimento em fantasma antes de seu devido fim para instituir um ponto de cisalhamento entre as obras concebidas ou influenciadas pelo movimento e as geradas por uma apropriação inautêntica e distante de seus ideais originais.

REFERÊNCIAS

BERNARDO, J. F. Colagem nos meios imagéticos contemporâneos. 2012.  Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Universidade Estadual Paulista, 2012. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/86944. Acesso em:  5 jul. 2020.

DONDIS, D. A.  Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ESQUIRE. How Vaporwave Was Created and Destroyed by the Internet: An exploration of the anti-consumerism music that died the way it lived.  [S. l.: s. n.], Aug. 2016. Disponível em: https://www.esquire.com/entertainment/music/a47793/what-happened-to-vaporwave. Acesso em: 5 jul. 2020.

FISHER, M. Capitalist realism: Is there no alternative? Reino Unido: John Hunt Publishing, 2009.

GENIUS . 7 Rings. Intérprete: Ariana Grande.  [s. l.] : Universal Music Group, 2019.   Disponível em:  https://genius.com/Ariana-grande-7-rings-lyrics. Acesso em: 2 jul. 2020.

GLI.TC/H - the F.A.Q. Page . [S. l.: s. n.], [201-?]. Disponível em: http://gli.tc/h/faq/. Acesso em: 5 jul. 2020.

HALL, S. (ed.). The work of representation.  In:  HALL, S. (ed.). Representation: Cultural representations and signifying practice.  London : Sage, 1997. ,  p. 13-74.  v. 2. Disponível em: https://pages.mtu.edu/~jdslack/readings/CSReadings/Hall%20-%20Representation.pdf. Acesso em: 1 jun. 2020.

HEELS, B. History of Vaporwave.  [S. l.: s. n.], 2015.   Ben Heels Music . Disponível em https://benheelsmusic.wordpress.com/2015/10/01/history-of-vaporwave/ . Acesso em: 2 jul. 2020.

LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto of the Communist Party. [S. l.: s. n.],  1848.  In:  YOUNGE, R.;  PARTNOY, F. Activist Manifesto. [S. l.: s. n.], 2018. Disponível em http://activistmanifesto.org/assets/original-communist-manifesto.pdf.  Acesso em: 4 jul. 2020.

MONTEIRO, G. H.; AMARAL, L. V. do; RIOS, J. R. A. C. “está tudo em suas mãos”: o desenvolvimento do movimento vaporwave na internet. In:  CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO NORDESTE. 19., 2017, Fortaleza. Anais eletrônicos [...] .Fortaleza : INTERCOM, 2017. Disponível em: http://www.portalintercom.org.br/anais/nordeste2017/resumos/R57-0360 1.pdf?fbclid=IwAR0huO1dVM_0_-hJ0AIb-bFsJpUhL9H3dLVLpxEExz0C1rZr34sR2osHg7U. Acesso em: 4 jul.  2020.

PEARSON, J. How Tumblr and MTV Killed the Neon Anti-Corporate Aesthetic of Vaporwave.  [S. l.: s. n.], 26 jun. 2015.  VICE . Disponível em: https://motherboard.vice.com/en_us/article/539v9a/tumblr-and-mtv-killed-vaporwave. Acesso em: 11 jul. 2020.

SILVA, A. de A. O capitalismo tardio e sua crise: estudo das interpretações de Ernest Mandel e a de Jürgen Habermas. 2012. Dissertação (Mestrado em Sociologia) -  Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.

TANNES, G. Babbling Corpse: Vaporwave and the commodification of Ghosts. Croydon: Editora Zero Books, 2016.

VOX. How seapunk went from meme to mainstream.  Produção: Estelle Caswell, Carlos Waters. [S. l.: s. n.],  29 fev. 2016.  1 vídeo (4min31s).  YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lxn-6DAuqyk. Acesso em: 2 jul. 2020.

WEIRDVIBESMTVHIVE. The Birth of seapunk. Produção: Shirley Braha. [S. l.: s. n.], 28 fev. 2013. 1 vídeo (2min14s).  Ep14 (p2).  YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mkSxFDYEklg. Acesso em: 1 jul.  2020.

DAPesquisa, Florianópolis, v. 16,  p. 01-15, out. 2021.

DOI: http://dx.doi.org/10.5965/18083129152021e0027


[1] “relate to cultural memory and the buried utopianism within capitalist commodities, especially those related to consumer technology in the computing and audio-video entertainment area” (DOLL apud ESQUIRE, 2016)

[2] “(…) the slowdown, remixed, and appropriative music genre defined at least in part by an obsession with '80s and '90s consumer culture—the first genre to be born and live its life entirely on the Internet” ESQUIRE, 2016)

[3] “(…) all new-formed ones become antiquated before they can ossify. All that is solid melts into air, all that is holy is profaned (…)” (MARX;  ENGELS, 1848)

[4] “And this is where the genre's holy boundary is crossed. This is where the cynical impulse that animated vaporwave and its associated Tumblr-based aesthetics is co-opted and erased on both sides—where its source material originates, and where it lives” (PEARSON, 2015)

[5] “Representation means using language to say something meaningful about, or to represent, the world meaningfully, to other people” (HALL, 1997, p. 1)

[6] “Indeed, no other album in recent memory so well captures the early twenty-first century as an accelerated, anthrodecentric world quickly becoming more simulated and more digitized with every passing year”  (TANNES, 2016, p. 35)